Ó PAI, Ó
Monique Gardenberg, Ó Pai, Ó, Brasil, 2007

Bárbaro e Nosso

E que culpa poderia ter Ó Paí, Ó por cair nas mãos de Monique Gardenberg? Estamos aqui diante da mesma variante cinematográfica já percebida em Trair e Coçar É Só Começar, aquilo que lá chamamos de “cinema brasileiro espontâneo”, onde a simples ocorrência de uma câmera com negativo e de alguns atores diante dela já consegue produzir, automaticamente, imagens para um filme, sem precisar de qualquer mente humana por trás disso. Esse desleixo absoluto com a construção das imagens, fruto de certa agilidade de produção nos trabalhos de Moacyr Góes e Diler Trindade, atinge aqui também o “cinema de autor”, do qual Gardenberg é uma titubeante personagem. Não são poucas as vezes em que nos perguntamos, diante de Ó Paí, Ó, se havia de fato alguém olhando no visor da câmera enquanto tal plano era filmado, ou se devemos engolir toda a indigência com que o filme se apresenta como “traço estilístico”. A simples operação de acertar o foco numa cena em que dois personagens estejam conversando (e não deixá-lo perdido no fundo do cenário, onde não há interesse dramatúrgico nenhum), saber enquadrar os rostos dos atores no mais simples mecanismo de campo e contracampo, ou mesmo conseguir rodar planos que tenham consciência de que não são independentes, de que precisarão se ligar a outros na montagem, tudo isto completamente negligenciado por Gardenberg e sua equipe, e nos perguntamos se seremos obrigados a ouvir que tudo não passa de “radicalismo de linguagem”, ou “experimentação dramática”, ultra-consciente de si. Não: não há consciência em Ó Paí, Ó, em nenhuma das partes.

Atrás das câmeras, isso não dá em outra coisa senão num completo desastre. Vemos que o filme tem questões, que se preocupa em elencar problemas (sejam eles temáticos ou estéticos), mas, em nenhum momento, interessa a Ó Paí, Ó pensar neles, trabalhá-los dentro de um discurso próprio, que equilibre aquilo que se quer dizer com um modo de dizê-lo, usando as armas que o cinema – ele mesmo, tão abandonado aqui – oferece. Sabemos que o “embranquecimento” do Pelourinho baiano é um assunto para a diretora e para o grupo de teatro que trabalha com ela aqui, mas nunca teremos a certeza se o filme sabe disso, porque tudo o que vemos é uma careta feita por uma atendente de loja quando recebe um cliente branco, depois mais um plano de um gringo loiríssimo fazendo trancinhas afro em seu cabelo, e no meio disso a explosão injustificada do personagem de Wagner Moura contra Lázaro Ramos, tirando da cartola insultos de “negro!”, quando a questão da raça nem sequer havia sido aventada até então pelos dois. Aqui corremos o risco de ouvir a resposta de que “a realidade é assim mesmo, e o racismo aparece mesmo naqueles que nunca suspeitamos conter tal sentimento”, mas outra coisa da qual Ó Paí, Ó se afasta terminantemente é de qualquer traço de realidade.

Porém, novamente, Monique Gardenberg tem um desejo e seu filme outro completamente diferente, como se instâncias independentes fossem. A diretora quer sim fazer de todo esse painel da personalidade festiva baiana a plataforma de um chamamento à responsabilidade, elevando a adrenalina de seus personagens ao longo do filme de maneira tão cúmplice para, no final, aplicar-lhes um belo choque anafilático: responder à overdose de alegria com um golpe duro de realidade, crianças assassinadas cruelmente na mesma ladeira em que, poucos minutos antes, a malandragem pulava carnaval. Nisso, no entanto, Ó Paí, Ó não está sozinho, sendo uma característica tão própria do cinema brasileiro contemporâneo essa incapacidade de lidar com a alegria, com a felicidade e com a fantasia sem, em algum momento, se deixar abater por uma culpa súbita e fatal por não contaminar este universo idílico de algum traço da realidade nacional gritante (pensemos em Proibido Proibir e em Cafuné como os exemplares que menos se comprometem com esta culpa, mas onde ela ainda existe, no meio disso um Ódique? e um Cama de Gato, que a parasitam, ou ainda num insuspeito O Casamento de Romeu e Julieta, obrigando-se a falar da divisão social nas torcidas de futebol quase por um fetiche paternalista).

A Ó Paí, Ó, universo que acontece por debaixo daquilo que Gardenberg filma, interessa mesmo é o irreal, a tinta carregada, o estereótipo, e nisso vai muito bem. Logo numa das primeiras seqüências do filme vemos um grupo de foliões tropeçando pela rua, e a câmera alta permite apenas que vejamos o asfalto no fundo, para que então vá se descobrir que aquele carnaval todo acontecia ao mesmo tempo em que a cidade, lá no fundo, seguia seu curso normal de tarefas e obrigações. Ora, o plano (e todo o filme) parece ter saltado daquela primeira imagem de Dona Flor e Seus Dois Maridos, ali onde Vadinho morria e um tipo boêmio novo, o Roque de Lázaro Ramos, parecia pegar seu bastão. A referência não é casual: em Ó Paí, Ó temos sempre a impressão de estar diante do mundo de um Jorge Amado viajando em ácido, tudo sempre dois ou três tons acima, muito além da tipificação, mas já lidando com a própria mitologia da personalidade baiana. Esse caráter alucinógeno sobrevive duramente, mas está lá num Wagner Moura encarnando um bandidinho pernicioso e retardado patológico, no número musical que toma todos os personagens da trama e que é conduzido por uma horrorosamente divertida Virgínia Rodrigues, ou mesmo na incorporação sem politicagem correta do universo homossexual. Tudo isso, no entanto, parece ser constrangido por uma presença que deveria, ao contrário, impulsionar esse barato todo. Ó Paí, Ó talvez se saísse melhor se não houvesse uma câmera ali a oprimi-lo tão implacavelmente – na verdade, não uma câmera, mas esta câmera específica, careta e “socialmente responsável”, de Monique Gardenberg.

Rodrigo de Oliveira