Há, em Baixio das Bestas,
novo filme de Cláudio Assis, uma contradição insuperável,
que, levada ao limite pelo diretor, explica boa parte
dos problemas do filme e revela o fracasso de seu projeto.
De um lado, temos a necessidade de “denúncia social”,
da revelação da existência de um local desgastado e
destruído no Brasil, onde a podridão da natureza humana,
justificada por nossa enorme desigualdade econômica,
aflora de forma inconteste e chocante. De outro, a
vontade de afirmar-se de vez como um “bom diretor”,
através de ângulos e movimentos de câmera inusitados,
da luz meticulosamente calculada de Walter Carvalho,
de chamadas metalingüísticas “inteligentes”, de atores
previamente marcados de forma quase coreográfica no
espaço do quadro. Isto poderia não funcionar como uma
contradição caso, no processo do filme, estivesse presente
um questionamento sobre como representar uma realidade
perturbadora e inédita aos olhos da maioria dos espectadores,
sobre os limites possíveis dessa representação e sobre
o quanto desta realidade pode realmente chegar, distante
física e temporalmente, marcada pelo filtro da criação
ficcional, aos nossos cinemas. Mas Baixio das Bestas
não é um filme de questionamentos, e sim de imposições.
Dito isto, cabe, agora, ao crítico perguntar: ao ter
como objetivo maior denunciar um mundo existente, como
o filme pode construir este mundo de acordo com a vontade
suprema do diretor?
Pois não interessa nesta crítica se é mesmo verdade
que na Zona da Mata playboys de classe média passam seus finais de semana estuprando
prostitutas simplesmente porque podem, ou se menores
de idade são levadas ao caminho da prostituição por
seus parentes para ajudar no sustento da família, ou
mesmo se essa situação recorrente parece não ter uma
solução imediata. As estatísticas, as pesquisas de jornal
ou alguns artigos acadêmicos podem confirmar essa situação
ou não. O que importa é que, para que Claudio Assis pudesse mergulhar realmente neste mundo de degradação
humana que ocorre ao nosso lado, para que pudesse tratar
desta realidade com um mínimo de profundidade e respeito,
seria necessário que se entregasse a ela. Mas, talvez
por falta de coragem (pois existe uma dificuldade enorme
em penetrar naquilo que não oferece subterfúgios, e
é a aceitação e confrontação desta dificuldade que muitas
vezes nos dá o melhor cinema) ou mesmo por soberba,
o cineasta prefere o caminho mais simples: se existe
uma realidade chocante, devemos manter o choque, não
a realidade. E essa estética distanciada do choque como
caminho único para se chegar à sordidez do homem normalmente
envolve escolhas muito rasas.
É nesse sentido que Baixio das Bestas não procura
investigar um mundo, já que revela em sua construção
o mais absoluto didatismo. Claudio
Assis não se arrisca, ele já sabe, de antemão, tudo
o que vai acontecer. Por isso, os personagens precisam
ser sempre tipos imóveis, que, desde suas primeiras
falas, já podem ser identificados: o jovem agroboy
que passa os finais de semana bebendo, transando com
prostitutas e se utilizando de seu poder econômico e social; o amigo mais velho,
que faz as mesmas ações sob um discurso de liberdade
e de quebra de convenções; o avô moralista e safado
que protege e prostitui a neta; a prostituta pudica;
a prostituta safada; e por assim vai. Não há mudança,
não pode haver. Não porque esta realidade seja estagnada,
mas porque cada tipo não pode fugir àquilo que deveria
servir: o mundo de Cláudio Assis. E não bastam os supostos
improvisos nas falas e movimentos dos atores. É preciso
que eles funcionem sempre nesse tableau criado
pelo cineasta, onde existem aqueles que merecem simpatia,
e aqueles simplesmente nojentos, num juízo de valor
anterior ao filme, pois temos de ser didáticos, sempre.
Talvez por ser uma não-personagem que Auxiliadora, a
protagonista, se saia melhor. Ao ficar impávida e impassível do início ao fim, ela continua a funcionar
como um tipo imóvel, mas menos identificável. O controle
é o mesmo, a resposta não cai
em tanta obviedade.
Infelizmente, todo o resto do filme cai. Por isso, também,
os diálogos, que deveriam levar à reflexão, normalmente
não passam de um amontoado de frases de efeito, que,
ou reforçam aquilo que já vemos na tela (como nas conversas
entre o tio e seu amigo antagônico), ou parecem simples
brincadeiras de criança (como nos momentos em que Matheus
Nachtergaele resolve dizer
algo profundo, de preferência de frente para a
câmera). Por isso, o diretor pode repetir, de
forma um tanto gratuita, seus tiques de estilo, que
em dois longas já podem ser
reconhecidos (o mundo é dele, naturalmente, e, portanto,
nada muda). Por isso, várias cenas parecem coreografias,
onde cada ator tem de ficar em um lugar específico,
para que a luz bata de forma perfeita em seu corpo,
de forma que o momento tenha a força e o choque necessários.
Desde o primeiro plano de ação do filme, no qual o afastamento
da câmera a partir do corpo nu e semi-iluminado de uma
menina revela um bando de homens se masturbando, até
chegar ao rosto de Caio Blat, delirando, para finalizar com um novo movimento de câmera
até a igreja, é este formalismo paralisante e parasita
que marca o filme inteiro.
Pois a maior das distâncias entre a realidade que se
quer denunciar e a vontade demiúrgica
de Claudio Assis talvez resida
na plasticidade da fotografia de Walter Carvalho. Ao
optar por trabalhar novamente com esta fotografia de
“grife” (até porque, ao contrário do trabalho que desenvolveu
com um Karim Ainouz, por exemplo, em Baixio o fotógrafo repete as
características que o deixou famoso e renomado), o cineasta
talvez não tenha se atentado para o fato de que, em
seu projeto, essas características não caibam. Não por
utilizar o “belo” para chegar ao sórdido, mas porque
os planos estetizantes,
com luzes previamente marcadas em cada canto
da tela, movimentos de câmera totalmente estudados,
enquadramentos marcantes, reforçam de forma ainda mais
clara o controle sobre um mundo que precisa ser sempre
visto de fora para ser filmado. Não existe vida possível
em Baixio das Bestas, pois o filme não se importa
em chegar a ela. É preciso que a realidade
– complexa, difícil, feia e inexplicável – não
atrapalhe o caminho do cineasta de se chegar à realidade.
Quando muito, aceita-se um
plano mais documental, uma cena um pouco mais livre,
desde que isso não influencie de forma negativa aquilo
que se quer mostrar.
Para Assis, o homem é um bicho escroto. Para Assis,
a sociedade brasileira, em sua desigualdade, revela,
diariamente, os frutos dessa miséria. Não importa se
em Recife, na Zona da Mata ou onde quer que filme,
é isso que ele vai afirmar. Infelizmente, em
Baixio das Bestas, nem nos cabe discutir a validade
desta afirmação. Situada fora do mundo, não passa de
um pensamento egocêntrico do diretor. Se, como forma
de entender o mundo, portanto, Baixio interessa
pouco, como cinema, infelizmente, interessa menos ainda.
Um filme acima da humanidade não tem como alcançar humanidade
alguma.
Leonardo Levis
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