GEOMETRIA DA FORÇA
Simone Weil e Abel Ferrara

O verdadeiro herói, o verdadeiro tema, o centro da Ilíada é a força. A força empregada pelo homem, a força que escraviza o homem, a força diante da qual a carne do homem diminui. Nessa obra, em todos os momentos, o espírito humano aparece modificado por suas relações com a força, como que varrido, tornado cego, pela própria força que ele imaginou que poderia controlar, deformado pelo peso da força a qual ele se submete. (...)

Definir força – é aquele x que transforma qualquer um que se submete a ela em uma coisa. (...) Ela o transforma num cadáver. Alguém esteve aqui, e no minuto seguinte não há absolutamente ninguém. (...) Da primeira propriedade [da força] (a capacidade de transformar um ser humano numa coisa pelo simples método de matá-lo) brota outra..., a capacidade de transformar um ser humano numa coisa enquanto ele ainda está vivo. Ele está vivo, ele tem uma alma; e, ao mesmo tempo, ele é uma coisa... E no que diz respeito à alma, que casa extraordinária a força encontra nela! Quem pode dizer o quanto custa, a cada momento, acomodar-se a essa residência, contorcer-se e curvar-se, quanto dobrar-se e enrugar-se são necessários para isso? Ela não foi feita para morar dentro de uma coisa; se ela o faz, diante da pressão da necessidade, não há um único elemento de sua natureza que não seja violentado...

Talvez todos os homens, pelo simples fato de nascerem, destinam-se a sofrer violência; ainda assim, esta é uma verdade para a qual a circunstância fecha os olhos dos homens. (...) Eles têm em comum uma recusa em acreditar que ambos pertencem à mesma espécie: os fracos não vêem relação entre si mesmos e os fortes, e vice-versa. (...) [Os fortes], empunhando o poder, não suspeitam do fato que as conseqüências de seus feitos vão finalmente retornar a eles. (...) [Mas eventualmente isso acontece, e] nada, nenhum escudo, pode manter-se entre eles e as lágrimas.

Essa retribuição, que tem um rigor geométrico, que opera automaticamente para penalizar o abuso da força, foi o tema principal do pensamento grego. É a alma do épico. (...) Para os pitagóricos, para Sócrates e para Platão, foi o ponto de partida da especulação sobre a natureza do homem e do universo. (...) Nos países orientais que estão impregnados pelo budismo, é talvez essa idéia que tem existido sob o nome de karma. (...) O Ocidente, entretanto, perdeu isso, e nem tem mais uma palavra para expressá-lo em nenhuma de suas línguas: concepções de limite, medida, equilíbrio, que deveriam determinar a conduta de vida são, no Ocidente, restritas a uma função servil no vocabulário de técnicos. Nós somos apenas geômetras da matéria; os gregos eram, mais do que tudo, geômetras em seu aprendizado da virtude...

Assim, a violência oblitera qualquer um que sinta seu toque. Ela parece tão externa àquele que a emprega quanto ao que dela é vítima. E daí brota a idéia de um destino diante do qual tanto o executor quanto a vítima encontram-se igualmente inocentes. (...), irmãos na mesma miséria. (...)

A amargura [da Ilíada] é a única amargura justificável, pois ela brota das sujeições do espírito humano à força, ou seja, em última análise, à matéria. Essa sujeição é o que une a todos. (...) Ninguém na Ilíada é poupado dela, assim como ninguém na Terra. (...) O sentido da miséria humana é uma pré-condição da justiça e do amor... Apenas aquele que mediu o domínio da força, e sabe como não respeitá-la, é capaz de amor e justiça.

Aqueles que crêem que o próprio Deus, desde que se tornou humano, não pôde manter a severidade de seu destino diante de seus olhos sem tremer de angústia, deveriam entender que as únicas pessoas que podem parecer que se elevam acima da miséria humana são aqueles que mascaram a severidade do destino de seus próprios olhos com a ajuda da ilusão, da embriaguez ou do fanatismo. Ninguém que não esteja protegido pela armadura de uma mentira pode sofrer a força sem ser atingido até a alma por ela. A graça pode prevenir que esse sopro nos corrompa, mas não pode prevenir a ferida.

Simone Weil, "A Ilïada ou O poema da força". Escrito em 1939, a propósito da iminente guerra. Assinado com um anagrama, Émile Novis, porque um judeu não podia ser publicado1.

* * *

Ms. 45, no filme de 1981 que leva o mesmo nome [em português: Sedução e Vingança, ndt], é uma jovem inócua, até que ela é estuprada duas vezes. Então ela pega uma 45 e sai à busca de homens para executar. Como em Desejo de Matar (Death Wish, EUA, 1974). Exceto que, neste, Charles Bronson não é afetado por seus assassinatos, ao passo que a Ms. 45 muda de roupa com cada assassinato, progredindo de doce garota de convento, a modelo sofisticada, a prostituta de alta classe, a dominatrix, e não o faz para servir de isca à presa, mas para dar vazão à luxúria em seu próprio sadismo, nas preliminares da atração. Podemos evitar sujar as mãos com a força e a moralidade com Bronson, mas não com Abel Ferrara. Prazer, no mundo de seus filmes, geralmente transforma-se em dor, sexo transforma-se em violência, a virtude vício; o vencedor é destruído com tanta certeza quanto a vítima. A identidade climática de Ms. 45 é como uma freira, pela qual ela tenciona representar não sua própria repressão sexual, mas antes desejo e morte, a violência do feminino que atrai apenas para negar, o vício na virtude. Ainda assim, ela mesma chegou a um ponto em que o prazer pode ser alcançado apenas através da dor intensa, em que nenhuma satisfação e nem mesmo liberação é atingível. A maior parte dos heróis de Ferrara vão atingir um ponto semelhante, insaciavelmente viciados à força.

A vida é um inferno em Ferrara, tortura sem saída, sem um momento de liberação. Seus filmes sem dúvida devem muito, conceitualmente, a Nicholas St. John, amigo e roteirista de muitos deles. Mas eles são menos sobre conceitos do que sobre sentimentos – como se sente ao viver sem a graça, ser a vítima da força. A alienação é retratada de forma tão intensa, em cores, formas, superfícies, luzes e corpos, que chegamos a pensar no Murnau de Aurora (Sunrise, EUA, 1927), vivo nos dias de hoje e fazendo filmes de exploitation. Os filmes de Ferrara são bad trips, bad trips terríveis, intransigentemente morais.

Diz Ferrara: "É mais sentimentos e emoções e como as cores a texturas trazem certos sentimentos. Não é o tema – eu não penso sobre o tema do filme. O objetivo não é o filme; o objetivo é estar completo, é estar envolvido como ser humano – conhecimento, auto-conhecimento, conhecimento de grupo, isso aí"2.

Cidade do Medo (Fear City, EUA, 1984) é sobre strip-tease e as mulheres de Ferrara (e os homens) são ainda mais eróticas do que as de Hawks. Elas adoram fazer cada mínimo gesto como uma excitação erótica. Mas as mulheres de Ferrara não se comportam como profissionais, elas estão realmente se divertindo. Na forma como Melanie Griffith – vestida apenas com um fio-dental – exerce um evidente prazer contorcendo seu corpo para uma platéia pagante masculina, não existe a menor insinuação de "provocação", nenhuma insinuação do "pecado" com o qual Sirk encena uma cena mais comportada em Imitação da Vida (Imitation of Life, EUA, 1959), apenas um tipo de contentamento que poderia ter existido num Éden em que nunca tivesse havido uma maçã.

Mas, entrecortado com Melanie Griffith e fora do Éden, os homens reagem como monstros depravados em fúria, sem dignidade, enquanto um homem segurando uma faca, numa viela do lado de fora, com uma violência quase impossível de ver, retalha e mutila uma stripper fora de expediente.

O retalhamento é tanto uma reação ao segundo grupo de material intercortado (os homens monstruosos) quanto ao primeiro (Melanie erótica). O retalhador é um jovem que passa os dias fazendo treinamento (erótico) de artes marciais, nu, com uma dignidade extraordinária. Ele é totalmente impiedoso em relação à dor que ele inflige com sua faca, uma característica de todos os "vampiros" de Ferrara. Nós compreendemos que ele quer que sua vida seja uma demonstração de sua habilidade de reter a dignidade masculina (erotismo masculino) por mulheres desafiadoras, ternura e as emoções degradantes que elas inspiram. Mas, como Ms. 45, ele fez de si mesmo um escravo de seu próprio erotismo, consumiu sua vida em sua pulsão sexual, vendeu sua alma à força, de forma que cada uma de suas vitórias faz com que ele seja cada vez mais uma vítima da força.

As mulheres são responsáveis pelas reações dos homens? Seriam elas somente serpentes? Ferrara parece dizer, como Murnau em Tabu (idem, EUA, 1931), que ninguém está livre daquilo que Simone Weil chama de "gravidade" da sociedade humana, na qual a beleza torna-se dor, o amor torna-se violência, a dignidade torna-se brutalidade3. Os temas de Ferrara são os sentimentos: aqui a polifonia de três reações contrastantes ao jogo erótico.

China Girl

Consequentemente, os melhores momentos de Ferrara são seus momentos mais estilizados. Ficamos com a impressão de idéias entusiasmadamente trabalhadas por alguém cuja suprema alegria é fazer cinema. Em China Girl (idem, EUA, 1987), sua produção preferida, ele estende quase ao filme todo o alto tom de estilização encontrado em uma das melhores cenas de Sedução e Vingança, em que quatro estupradores rodam de forma demoníaca em torno de sua presa com um brio ritualístico, com suas sombras precedendo-os. Como nos filmes de Murnau, a escrita cinematográfica em abstrato tem algo da riqueza da música em abstrato. Assim, superfícies geométricas, texturas, cores, luzes e sombras tendem a mitificar qualquer situação, como acontece com Murnau, Eisenstein ou Ford. Os planos de Ferrara são compostos com uma geometria consciente, inventivamente equilibrado em linhas internas, planos e ângulos, sempre para atingir algum efeito expressivo, sempre com deleite para o efeito fotográfico de profundidade limitada, sfumato, objetos em primeiro plano, pedaços de luz brilhante, sombras passando. Um plano de uma rua pode ter um hidrante como arco de proscênio; como em Sirk ou Ford, objetos impõem o mundo com que nos relacionamos e contra o qual os personagens lutam. Os objetos podem fazer com que nós mesmos nos tornemos objetos, coisas. Todos os padrões são inimigos em China Girl; a sociedade é estruturada tão rigidamente quanto as grades das ruas em Little Italy e Chinatown. Assim, qualquer situação genérica é estilizada: os caras ficam fazendo pose, as facas giram, as gangues tomam as tuas como corps de ballet. Todos se vestem de preto na discoteca, exceto os dois rebeldes, os iconoclastas, Tony e Tyen, os adolescentes Romeu-e-Julieta em roupas brancas, destacados – da mesma forma com que Jean Renoir chama pela primeira vez a nossa atenção para Nini em French Cancan (idem, França, 1954) – não apenas para nos fazer prestar atenção nos personagens, mas para criar empatia com eles, entrar no mundo da história do filme com eles, onde, de fato, encontraremos esses jovens cheios de empatia (e nós mesmos, numa certa medida: um personagem de cinema sendo um locus de emoções) constantemente ameaçados por estruturas geométricas, pela força do olhar de outro personagem em direção a eles, pela força da câmera se movimentando para perto deles, pela força de nosso próprio olhar, o que faz com que partilhemos a auto-consciência que eles têm de sua situação.

Fora da dança, Tyen nunca faz valer seu próprio ponto de vista, e Tony o faz somente no funeral de Alby, quando ele acusa o chefe da máfia de vender sua alma à força. O choque geométrico que resulta disso nos diz que o violento momento-da-verdade de Tony só o deixa mais atado às estruturas de destruição. Assim é a força. A câmera nos faz experimentar a força fisicamente. Ela torna-se a força quando Ferrara move a câmera do assassino e faz um travelling até Tyen e Tony, que imitam a bala de revólver. Em contraste, depois que todos os três estão mortos, a câmera refaz a distância com temor, com o foco na rua, até que alcança Tony e Tyen, faz espirais para cima, até o céu, não mais o ponto de vista do personagem, mas agora o de um narrador imaginário, que eu imagino estar dizendo, "Nunca houve história tão penosa / quanto esta de Julieta e de seu Romeu".






Três umagens de um travelling



Ah, sim, a textura. Não é sempre "O que acontece em seguida?", mas o que há? Qual a história? O que é Frank White – sabemos sobre ele a partir das roupas que ele usa ou pelas pessoas que vivem ao seu redor. Os objetos físicos – o que você pode fazer num filme é tirar os objetos físicos e estudá-los. Você está filmando objetos – o que mais se pode fazer? Pessoas como objetos4.

Existe uma rica especificidade. Em China Girl, Tony chega em seu quarto, tira a camisa, se joga na cama e vê um vídeo erótico; o plongé no rapaz lembra os estranhos plongés da mesa de jantar no primeiro rolo de Aurora, dando um sentido de teatro e do sagrado em ambos os filmes: assim, a pequena cruz marrom na parede branca da casa desse rapaz italiano é tão poderosa quanto o erotismo da atriz no vídeo.



Ela também gosta de excitar os rapazes e invadir seus corpos, e talvez suas almas. Ferrara tem uma característica vívida ao mostrar pessoas que vemos só por alguns segundos; como Ford (Ferrara é meio irlandês), até breves contra-planos são participações especiais de caracterização, com começos, meios e fins. O drama é definido, durante a seqüência inicial, numa série de curtas imagens de sete italianos vendo uma padaria italiana ser transformada num restaurante chinês, tendo como clímax Alby socando o próprio pulso e então um fade-out.

A luz oferece uma atitude moral. Personagens se transformam em suas sombras passando pelas paredes, ou partes de si mesmos, ou fantasmas, à medida que a força se apossa deles. Sombras passam a persegui-los, quando eles querem pensar em si mesmos como heróis eróticos passeando por ancestrais rituais de violência e sedução, o que significa quase o tempo todo para os homens de Ferrara, e suas mulheres também, apenas num registro diferente, pois novamente a força se apossa deles e a autenticidade dissolve-se em pose.

As sombras que perseguem transformam as pessoas em figuras, pedaços de si mesmos, vampiros. Uma pessoa em vôo cego na vida, outra em cega perseguição pela glória erótica. Eles passam por piscinas de nada negro ou iluminação encharcada, alternadamente ganhando e perdendo, sem outro propósito. Luz e escuro não indicam bem e mal (e o alívio cômico é monstruoso); pois Ferrara não é maniqueísta, ele está no sétimo círculo do inferno. Então a luz transtorna e a sombra esconde. Todos se eriçam com esperma e perfume. Mas a luxúria é tão raramente satisfeita, até entre aqueles protegidos pela armadura... "da ilusão, embriaguez ou fanatismo" (Weil), que o desejo normalmente é dor, tortura e loucura. A maior parte dos heróis de Ferrara posam se masturbando, e, ao contrário da santidade imantada do prazer de Melanie Griffith ou da libidinosa atração dos amantes em China Girl, eles se masturbam sadística ou masoquisticamente – reencenando neste campo também as vitórias e derrotas nas planícies de Tróia.

O Rei de Nova York

As investigações morais de Ferrara contrastam com um filme profundamente imoral como Instinto Selvagem (Basic Instinct, EUA, 1992), em que o masoquismo é celebrado com mais regozijo do que olhar para menininhas em Renoir. Um materialismo simplista se esconde no título de Instinto Selvagem, enquanto o niilismo nos filmes de Ferrara é o destino de almas que se tornaram coisas quando desviaram-se de Deus.

Na segunda parte de O Rei de Nova York (The King of New York, EUA, 1990), Ferrara reconhece Murnau com um trecho de Nosferatu (idem, Alemanha, 1921) e fazendo seu herói (um sujeito vício/virtude, Ms. 45/freira, vampiro/anjo chamado "White") andar com um longo sobretudo negro idêntico ao do vampiro de Murnau. Mas Murnau já está evidente no primeiro plano do filme: as grades da prisão: a forma sombria que se vira e emerge à meia-luz ensandecida, fadada, já morta e pilhando. Fora, um avião que pira acima da linha do céu como um falo alado. Uma Manhattan cubista se assoma como um desafio, uma missão, um destino; sua luz dá energia, sexualidade, que atrai o vampiro branco para a noite. White se materializa no dia uma vez só, para um funeral, numa limusine preta como o caixão de Nosferatu, com janelas opacas que abrem para sua metralhadora preta ejacular a morte. De forma sobrenatural, ele estala em violência orgásmica e tentação bissexual, seja para enfeitiçar sua fêmea no cio, "advogada de Park Avenue", com promessas de uma trepada necrófila ("Eu quero agarrar você no metrô"), ou caindo na dança para reivindicar a lealdade de seus servos negros, que, como os polinésios de Tabu, remexem com corpos dançando, musicalmente, coreograficamente, teatralmente. Ninguém pára de desejar e de posar, mesmo parado.

Ainda assim, ao lutarem com o pecado, com a blasfêmia, os heróis de Ferrara fazem valer com Lúcifer sua autonomia moral, sua soberania, sua identidade de herói, sua glória, piedosamente. "O mundo inteiro é um cemitério e nós somos aves de rapina", proclama o vampiro Christopher Walken. "A humanidade lutou para existir para além do bem e do mal desde o começo".

Vício Frenético

Esse é o drama de Vício Frenético (Bad Lieutenant, EUA, 1992). A questão é: dada a nossa falta constante de poder diante do outro mundo, e dada nossa própria depravação, que possibilidade resiste para o significado? E para a bondade?

Em resposta, Instinto Selvagem nos convida a nos divertirmos infligindo dor. Mas o "mau policial" (bad lieutenant) de Ferrara nos lembra do mau ladrão crucificado ao lado de Jesus, que reconheceu que merecia o inferno, e assim ganhou o paraíso – como Kathleen, ou como a freira em Vício Frenético que foi estuprada e torturada e culpa a si mesma (a vítima) mais do que aos que a atacaram: "Jesus transformou a água em vinho. Eu deveria ter transformado esperma amargo em esperma fértil, ódio em amor, e talvez ter salvado a alma deles. Eles não me amaram mas eu deveria tê-los amado". Essa não é uma concepção de pureza diferente da de Pio XII, que canonizou uma adolescente que saltou para a morte ao invés de se deixar submeter por um tarado? Os personagens de Vício Frenético estão cansados demais para entregar-se a um tal heroísmo, ou à bravura dos filmes anteriores de Ferrara. Aqui tudo é internalizado. Pensamos aqui menos no hedonista Murnau e num cinema de "presença"; mais no jansenista Bresson e num cinema de ausência: a iluminação severa e implacável; as poses icônicas; o mistério dos rostos; a forma como certos objetos aparecem distintos; a extrema desagradabilidade da existência; um estilo de montagem que implacavelmente insiste em forçar equações através da geometria moral – por exemplo, os cortes citados em Cidade do Medo ou, aqui, o corte de uma claustrofóbica pose, em luz dura, contra uma parede branca, com sons de metrô no fundo, de Zoe Lund delirando numa viagem de haxixe, para uma estátua da Virgem Maria sendo derrubada e a freira sendo estuprada no fundo do quadro (e parecendo com o grito de agonia do quadro de Edvard Munch): uma equação que insiste no lote comum da humanidade decaída, no pecado partilhado que incita a freira a ver seus estupradores como suas vítimas, e que incita Ferrara a repetir o som de metrô quando os estupradores são presos. "Os vampiros têm sorte, eles podem alimentar-se dos outros", declara Zoe Lund (que também fez o roteiro de Vício Frenético, fez o papel de Ms. 45 e talvez estivesse aludindo a O Rei de Nova York). "Os vampiros têm sorte, eles podem alimentar-se dos outros. Nós precisamos nos alimentar de nós mesmos. Comer nossas pernas para que possamos andar, [para que] possamos adquirir a energia para andar. Precisamos vir para ir, nos sugarmos inteiros, precisamos comer tudo de nós mesmos para que não reste nada além do apetite. Damos e damos e damos enlouquecidamente, e a oferta que faz sentido não vale a pena. mas é preciso fazê-lo. Jesus disse "sete vezes setenta" [ou seja, o número de vezes a perdoar o próximo]. Você sabe que ninguém vai entender por que você fez isso. Eles apenas vão esquecer você no futuro".

Não tem nada bressoniano a respeito da atuação de Harvey Keitel. Sua desintegração lembra a de Victor McLaglen em O Delator (The Informer, EUA, 1935 [dir. John Ford, ndt]). Ainda assim, é a mesma histeria que sentimos em Bresson, diante do rosto quase sem expressão de Claude Laydu, o pároco alcoólatra em Diário de um Pároco de Aldeia (Journée d’un curé de campagne, França, 1950); todos esses personagens eventualmente reconhecem a vida como uma via crucis partilhando da agonia divina. O mau policial, ao ansiar pelo perdão, não consegue olhar para uma mulher atraente sem estuprá-la com os olhos. Ele é um vampiro num filme cheio de vampiros.

E ele não está mais livre em termos gráficos. Quando não estão aprisionados em closes de solidão moral, as pessoas-vampiro estão esmagadas em composição, em profundidade de determinismo moral, e compelidos pelas equações geométricas da montagem.



No fundo distante de uma composição exemplar, o policial acorda de um cochilo miserável no sofá da sala; as crianças andam de um lado pro outro; no primeiro plano, a mesa de jantar com o pote de frutas preenche metade do quadro; o mobiliário é de mau gosto e sintético; na televisão que buzina, um desenho da Segunda Guerra Mundial mobiliza os ratos a "se livrarem do gato" enquanto um coro de operários de armamento cantam alegremente, "Nós fizemos antes e faremos de novo!"; e o policial muda de canal para descobrir que ele perdeu 15 mil dólares apostando em beisebol – uma perda que ele vai teimosamente adicionar a uma dívida de 120 mil que vai lhe custar a vida. A cena se segue diretamente à cena de Zoe Lund em viagem de haxixe, com o estupro da freira entre elas; como Humphrey Jennings, Ferrara justapõe de forma surrealista material discordante, e revela que estamos atados até aos mais improváveis de nossos vizinhos por um tecido social que é mais forte que nossas diferenças.

Mesmo assim, enquanto Jennings (como os ratos) vê causa para otimismo na solidariedade, Ferrara vê uma areia movediça massiva tragando todos para o inferno. A série de madonas que indicam o céu ao mau policial são tão drogadas e traumatizadas quanto ele, tão alucinadas quanto os profetas sempre fora, Talvez por essa razão os dois últimos planos de Vício Frenético lembrem os últimos planos de Profissão: Repórter, de Antonioni (The Passenger/Professione: reporter, Itália/França/EUA, 1975). Os dois heróis morrem, tendo completado uma auto-transcendência cuja medida é tão específica, tão incerta, tão problemática e contraditória que nos sentimos esmagados pelo pathos dos barulhos ambientes, o silêncio entre a fé e o desespero.

Um cinema do estilo de Ferrara exige que percebamos de uma forma extraordinariamente vívida a "presença" de um personagem: o modo como as "vibrações" de um personagem tomam posse dos espaços vazios do quadro – como em Tabu, em que o ar e a luz tornam-se emanações dos personagens, como nas pinturas de Vermeer, como no quarto de Tyen, porque aqui ela se sente como não estando lá. Opacidade, como em Tabu, é parte dessa característica vívida; quanto mais sentimos as emoções dos personagens, mais conseguimos entendê-los, mais estamos cientes da interioridade impenetrável, e que Ferrara, como Murnau e Ford e ao contrário de Instinto Selvagem, nos vê como atores da vida, não como suas vítimas. A textura e a cor, a geometria e a composição são tão intensas que parece um milagre que alguém possa suportar uma tal existência por dez minutos; ainda assim, os personagens de Ferrara transcendem seu ambiente até quando sucumbem a ele (basta ver o assustador carrinho-para-frente em China Girl com ela



sentada a esmo em sua cama): eles nunca são apenas manequins. Eles podem ser escravos de sua paixão, mas eles escolhem sua paixão. Eles não simplesmente sucumbem, eles decidem sucumbir. Ferrara acredita mais no pecado do que em Freud. Se não temos responsabilidade, se não temos culpa, então somos apenas marionetes numa apresentação de títeres, nossa dor é uma farsa, e só a força é real, puxando os fios. É o que concluem os heróis de Sedução e Vingança e O Rei de Nova York, que tentam matar todos os maus, pensando que podem controlar a força, como os vampiros de Christopher Walken em The Addiction (EUA, 1995) e Enigma do Poder (New Rose Hotel, EUA, 1998).

The Addiction

Ao contrário de Instinto Selvagem, Ferrara não está numa punheta; ele está insistindo no fato de que a vidaé genuinamente trágica. Seus heróis se degradam em Vício Frenético e Driller Killer (EUA, 1979), The Addiction e Enigma do Poder, humilhando suas vítimas ou as torturando até a morte com uma furadeira (meramente por masturbação), ou comendo-as vivas, ou matando-os em massa. Um filme de exploração, por definição, nos convida a desfrutar do sangue, violência e crueldade. Mas Ferrara deseja que nosso desgosto supere nossa fascinação, de forma que, como The Addiction propõe, experimentemos metanoia – um tipo de catarse pela qual devemos rejeitar nossa cumplicidade de segunda mão com o mal.

Metanoia é uma palavra grega que significa mudança de pensamento (noia) e, mais especificamente, uma conversão religiosa pela iluminação da morte e do renascimento. O maior obstáculo a uma tal mudança de pensamento é o conhecimento que achamos que já temos. Como diz Simone Weil, nossos pensamentos bloqueiam a graça divina, que só pode entrar quando há um vazio. E Kathleen Conklin em The Addiction diz algo parecido quando observa "Nós bebemos para escapar do fato de que somos alcoólatras" sem perceber (ainda) que sua filosofia é seu alcoolismo. O que ela acha que sabe, argumentado em sua tese de doutorado e baseado em sua vida como uma vampira, é que não podemos nos deixar guiar pela luz porque não temos livre arbítrio. Somos vampiros. Massacres como My Lai acontecem repetidamente porque não podemos dizer ao mal que vá embora, não podemos controlar nossos feitos. "Você não é nada. (...) Você não é uma pessoa. Você não é nada". Somos aquilo que fazemos, ela insiste, escravos da força. Essa é a condição universal da humanidade.

"Olhe o que você fez comigo", grita uma de suas vítimas. "Como você pôde fazer isso? Isso não te afeta de forma nenhuma?"

"Não. Foi sua decisão", retruca Kathleen. "Por que você não me disse para ir embora? (...) A minha indiferença não é o que está em questão aqui. É seu espanto que precisa de estudo."

"Que eco", explica Simone Weil (sobre a Ilíada, mas é o mesmo caso), "podem as tímidas aspirações pela vida encontrar nesses corações quando as vítimas imploram para ver o dia seguinte?" A força nos transforma em coisas. "É a violência da minha vontade contra a deles", explica Kathleen. Não há vítima não-consentida e tampouco distinção entre vencedor e vítima: as vítimas se transformam em vampiros também. A força procria a força; só existe força.

Ferrara configura a geometria da força como ele fez em China Girl. Linhas de movimento são força. Três ataques sucessivos de vampiros são filmados com linhas semelhantes de movimento de fundo para primeiro plano:







o clímax dos ataques no My Lai de Kathleen, a recepção de seu doutorado, uma orgia vampírica dramatizando precisamente a vida de acadêmicos à espreita. Ela se empanturra até o limite do nada. "Lutando contra a angústia", dizia Simone Weil, "nunca se consegue produzir serenidade; a luta contra a angústia só produz novas formas de angústia. (...) Deve haver um arrancar, algo desesperado precisa acontecer, o vazio precisa ser criado: a noite escura. (...) Só aqueles que já caíram no grau mais baixo da humilhação, muito abaixo da mendicância, que não somente não têm consideração social mas são encarados por todos como desprovidos daquela principal dignidade humana, a própria razão – só aquelas pessoas, de fato, são capazes de dizer a verdade. Todos os outros mentem"5.

"Deveríamos todos esperar sentir culpa, sentir dor", falava o professor de Kathleen em uma palestra alguns meses antes a respeito da metanoia, "para que encontremos perdão e, por fim, a liberdade. A culpa é um sinal de que Deus está trabalhando em seu destino e uma pessoa que se recusa a reconhecer isso é tola."

"Ninguém vai deixar você morrer", promete uma enfermeira agora, e Kathleen pede a luz, que mata vampiros – e é isso que ela quer –, mas a luz faz outra coisa ao invés disso, enquanto desce lentamente até ela, do crucifixo acima de sua cama. "Ficamos diante da luz", ela comenta a seguir, "e nossa verdadeira natureza é revelada". A falsa identidade será enterrada, a verdadeira identidade renascida.

Ironicamente é o primeiro vampiro, o que infectou Kathleen, que aparece novamente agora, ostensivamente para negar a responsabilidade ("Que escolhas essas pessoas [como nós] têm? Não é como se tivéssemos opção!") mas inadvertidamente para afirmá-la. "Não somos maus por causa dos males que infligimos", zomba o vampiro, refutando a dissertação de Kathleen, "mas fazemos mal porque somos maus."

Logo, há uma pessoa; não somos apenas o produto de nossos feitos. É a alma que conta em última instância, não os feitos. Podemos ser perdoados, o passado pode ser colocado para trás, a primavera pode chegar.

Consequentemente, corte para o próximo plano, em que a geometria da força é anulada:



Enquanto a vampira se retira progressivamente de quadro, um sacerdote caminha para a frente, um padre humilde como João XXIII, cujo andar casual e conduta receptiva contradizem os passos largos e agressivos dos vampiros. Todos caminham com missões obsessivas, mas os vampiros são conduzidos, ao passo que o sacerdote está fazendo suas próprias escolhas. Ele até acena um adeus ao vampiro que vai-se embora. Aqui, em sua mais humilde forma, está o poder não constrangido à força. Ferrara nos dá 42 segundos para meditar sobre este trânsito, e pode ser o momento mais rico de sua obra, um momento de metanoia. A vida antiga se esvai na distância, a nova vida consegue êxito, tão simples quanto vetores contrastantes em geometria moral. E, simples assim, o mundo é redimido. Nicholas St. John, disse Ferrara, escreveu esse filme "logo depois da morte de seu primeiro filho. No momento mais triste de sua vida, ele encontrou um meio de expressar aquela implacável busca pela verdade e pela luz num mundo que muitas vezes nos paralisa com raiva e escuridão"6.

Enigma do Poder

Depois de O Rei de Nova York, as emoções e o sangue que anteriormente esperávamos de um realizador de filmes de exploração retrocedem para uma simbologia sugestiva, ou deslocam-se inteiramente para fora da cena. Enigma do Poder tem tão pouca "ação" de qualquer tipo, que a verdadeira trama torna-se algo a ser descoberto em repetidas visões do filme. Nós nunca vemos as cenas pelas quais estamos esperando, Sandii seduzindo Hiroshi, seu seqüestro, sua morte. Ferrara as eliminou. O que vemos são apenas os momentos humanos entre os eventos, o que acontece nas mentes das pessoas, e aqui também os momentos chave podem desaparecer, já que passam por um instante pelo rosto de alguém, e só posteriormente são turvamente compreendidos. Esse não é um filme apto a satisfazer qualquer um na primeira visão. Como acontece com Ferrara, parece haver muito menos coisa acontecendo do que realmente há, porque ele corta cenas expositivas e explicações e o diálogo é freqüentemente incoerente, e porque nós, enquanto tentamos procurar aquilo que não está lá, podemos perder aquilo que está. (Temos que criar um vazio para deixar a graça entrar.)

Ainda estamos nas planícies de Tróia, mas a guerra agora é apenas o set num estúdio; só existem três heróis, e sua geometria de força é internalizada. Enigma do Poder é um estudo de personagem, mas o aparente argumento é de tal forma um truque narrativo que talvez não possamos reconhecer qual é o personagem que é mais estudado.

Sinopse: Num futuro próximo, mega-corporações controlam o mundo, que vive tragado pela poluição. Hiroshi, um brilhante biólogo japonês, trabalha para a Maas e rejeita ofertas da Hosaka. Hosaka concorda em pagar a dois criminosos corporativos, Fox (Christopher Walken) e seu ajudante, X (Willem Dafoe), 100 milhões de dólares pela entrega de Hiroshi. Então eles contratam uma prostituta, Sandii (Asia Argento), para servir de isca para Hiroshi com "a única coisa que falta a ele: paixão". X começa a ensinar Sandii como "se apaixonar sem se apaixonar" para que ela consiga fisgar Hiroshi, mas ele mesmo acaba se apaixonando por ela, e ela, aparentemente, retribui. Sandii seduz Hiroshi, o seqüestro funciona, e depois sai pela culatra, quando a Maas solta um vírus que mata todos os biólogos de Hosaka. Sandii desaparece; Fox diz que ela se vendeu para a Maas. Hosaka culpa Fox e X. Fox se mata, e os agentes perseguem X de forma cada vez mais próxima. X passa os últimos vinte minutos do filme escondido num cubículo de aeroporto, o New Rose Hotel, relembrando cenas anteriores, masoquisticamente masturbatórias, e tentando descobrir se, por quê, ou quando Sandii entregou-se para a Maas.

Mesmo quando X reconhece os enganos de Sandii, ele não consegue parar de desejá-la. Isso está explícito na história original de William Gibson. E aparentemente esse foi o ponto que atraiu Ferrara quando ele leu o conto. ("Eu sabia que estava fodido. Porque era genial e eu sabia que tinha que fazer o filme.") No roteiro de Gibson e de Christ Zois, enquanto o helicóptero de Hosaka se aproxima, X delira: "Não posso te odiar, linda. Está tudo bem, linda. Vem aqui, por favor. Segura minha mão."7

Mas o que está explícito para Gibson e Zois transpira uma dolorosa ambivalência em Ferrara. Na versão de Ferrara, X lembra-se de ver no passaporte de Sandii o cartão de computador que disparou o vírus. Mas é tão certeiro assim que Sandii de bom grado os traiu? E não seria culpa de X, já que ela não disse, na mesma noite, que eles deveriam esquecer sobre Hiroshi, que eles deviam fugir, casar e ter filhos, e ele não a mandou de volta para Hiroshi ao invés disso? Para sua morte?

Então o filme termina com X repetindo duas vezes, a primeira em sua cabeça, e depois num flashback para Sandii, enquanto ele se deita na cama ao lado dela, "Se você realmente quiser, nós vamos fugir, ou seja, esquecer sobre Hiroshi". E ela sorri. Isso aconteceu de fato? Ou trata-se apenas da fantasia de X sobre o que ele deveria ter dito?

E, qualquer uma das duas opções, isso teria verdadeiramente feito diferença? Sandii está sorrindo diante das palavras de X porque eles vão se casar? Ou porque ele caiu no jogo dela? Seu sorriso é doce? Ou vil?

A câmera sugere que a cena aconteceu, porque o sorriso de Sandii acontece fora da visão de X. E quanto mais meditamos a partir da evidência, incluindo aquele sorriso, mais percebemos que X ainda não aceitou o horror completo de tudo aquilo que ele percebeu, as dimensões da traição da Sandii. No momento que ela propõe casamento, ela já tem o cartão do computador, ela já consentiu com o assassinato de X; na verdade, ela inclusive já concordou em cometer assassinato em massa. Ela começou a mentir ainda antes de se encontrar com Hiroshi. (Primeiro seu pai era italiano e trabalhava para Hosaka. Depois de Hiroshi, seu pai é francês.) Ela se passa por uma prostituta barata, escondendo uma segunda identidade como uma aluna de doutorado (como Kathleen) – outro sinal de perigo que X encontra em sua bolsa e ignora. Ela pede a X que se case com ela para provocá-lo, torturá-lo, porque ele ressente-se de ela ter "chupado o pau de Hiroshi" – depois de ele mesmo ter treinado ela para fazê-lo. Ela não está com raiva, e fica imediatamente maternal, pela razão que X deseja acreditar, no entanto. Ela lhe dará o beijo de despedida poucas horas depois, com ele meio dormindo e ela partindo para chupar o pau de Hiroshi. Não foi à toa que Ferrara começou essa cena de cama com um barulho alto de trovão.

Sandii busca sexo indiscriminadamente, de forma insaciável. Para Gibson e Zois, ela destrói a Hosaka porque a Hosaka matou seu pai. Para Ferrara, ela não tem nenhuma motivação discernível, jamais, exceto o prazer pessoal. Fox estava certo. "Ela é uma apostadora", dizia ele. "Ensine ela a se apaixonar sem se apaixonar você mesmo", disse ele. "É pra já", respondeu X, enquanto, se afastava para dar uns amassos em Sandii com Fox olhando. A idéia para Sandii de uma boa saída noturna, em seu caso de amor com X, é levá-lo a um sex club onde ela o ignora e entra na orgia, enquanto ele observa masoquisticamente em silhueta negra, convencido de que ele é o cavaleiro e que ela é seu brinquedo.

Claro, ele é dela. Ele pensa que está "ensinando" a ela, quando ele faz com que ela sussurre "Hiroshi!", enquanto transa com ela. Mas ela está "praticando" nele. "Eu choraria, morreria, voaria por você" (com viagens da língua para dentro de sua boca). Para X, "Hiroshi" torna-se a terceira pessoa essencial ao amor romântico, a que cresce em rejeição, em geometrias triangulares de força, e Sandii usa os ciúmes de X para manipulá-lo. Para ela, não há rejeições, então ela pode se apaixonar sem se apaixonar. X não. "Você tem que ficar com a cabeça fria para se safar dessa", Fox tinha lhe alertado. Mas X não estava com a cabeça fria, e agora todos estão mortos, assim como ele brevemente estará também.

Fox e X constantemente subestimam Sandii, e essa é a razão pela qual ela os mata. É o jogo. Eles acham que ela está bastante aquém deles, um objeto de compra; eles são tolos. Eles não percebem a forma macho com a qual ela acende o cigarro, deixando-o em sua boca, como um pau, tão logo ela percebe que há um jogo a ser jogado. Fox tem hybris demais: ele tagarela que sua profissão "não é por dinheiro. É por ação! Não é fazer uma coisinha e pronto", mas ele não consegue perceber que Sandii sente da mesma forma e não tem necessidade de tagarelar. "Ela é uma verdadeira puta", alguém diz a ele. Não é uma falsa! É um jogo para cada um, chefes do tráfico e governos. Os campos de Tróia. A força reina em todos os lugares; não há mais boas intenções como as que o rei de Nova York ou o "mau policial" tinham. Agora somos todos vampiros de almas, sugaram nossos corpos. O filme começa com todos em luz vermelha ou sombra negra: estamos no inferno. A luz vermelha, como a chuva de Homero, cai em todos da mesma forma: apetite, luxúria, poder. "Não é apropriado a um cavalheiro ficar introspectivo", Fox declara. "Nós somos os lobos. De estepe. Isolados. Solitários, Concentrados. Você é o lobo perfeito: olhos gélidos, lábios arreganhados, costelas salientes. Faminto!"8 E é o que ele parece: um lobo, um vampiro, gélido, perverso, totalmente egoísta, cruel. Ele até grunhe. É um choque quando ele sorri. Sua felicidade é diferente da minha? O prazer tem moralidade?

Fox é feio, repugnante. Sandii é bela, aconchegante, interessante, uma vampira mais interessante (e perigosa) do que qualquer dos vampiros anteriores de Ferrara, um tratamento mais interessante (e realista) do mal do que qualquer dos outros ensaios morais de Ferrara, porque ela é atraente. Ela deleita-se com carícias, com sexo animal, e nos faz querer juntar-se ao prazer dela – que será o de nos destruir. Os lobos machos esquecem o jogo; ela é apenas uma menina, um brinquedo. Fox chega a apontar para ela como um carro novo: "Esse foi meu toque de gênio! Olha só! Lá vamos nós!"

É por meio das vitórias aparentes de Fox, X e Hiroshi sobre ela que Sandii faz deles peões. Essa é a geometria da força. Como Hallie no geométrico O Homem Que Matou o Facínora, de Ford (The Man Who Shot Liberty Valance, EUA, 1962), Sandii destrói três homens no curso de sua conquista. Ela é um lobo melhor do que Fox ou X, porque ela gosta de ser um lobo. Ela sente prazer em ser uma prostituta. Ela adora ser uma dominatrix. X acha que está "ensinando-a" a se apaixonar sem se apaixonar, ela, a mestre da interpretação, a festa a fantasia que nunca termina. Suas aparições são uma série de papéis típicos, como Marlene Dietrich em Vênus Loira (Blonde Venus, EUA, 1932), de Joseph Von Sternberg: cantora, prostituta, doce moça da casa ao lado, rainha pornográfica, covarde, ninfomaníaca, virgem inocente, exibicionista, cientista, mãe, sedutora. Ela sempre batalha rumo ao topo: afundando X na piscina, subindo a escada, fodendo na cama, jogando o Grande Jogo. Em retrospecto, tudo fica claro: foi tudo decidido nos primeiros minutos, quando Fox chamou-a de tapada. "Caso você não tenha percebido", grunhiu ele, "você está morta, você apenas ainda não teve a percepção de deitar [como faria um lobo]." Acontece num instante, quando ela levanta os olhos e olha para ele. Juramento de vingança.

É possível que não vejamos isso. Mas é impossível não ver seu ressentimento. Ferrara filma emoções, não explicações para aquilo que as pessoas eventualmente fazem. Seu roteirista, Christ Zois, cita um desses exemplos (em seu comentário de DVD), reclamando que Ferrara cortou uma cena fora do sex club mostrando que Sandii leva X contra a vontade dele. Na verdade a cena é clara, mas apenas se prestamos atenção na linguagem corporal. E também é claro o que a cena diz sobre a natureza do relacionamento "amoroso" deles, mas só se nós pensamos sobre as emoções; ou então, como Fox, vamos preferir acreditar, ao final, em nossa própria auto-desconfiança. Nós vamos ouvir sua voz nos sonhos de X – "Muitos meses atrás eu era tão bonita e adorável quando você me viu pela primeira vez... e eu estava de preto." Vamos perceber o egoísmo, a dominatrix; mas nós não compreenderemos.

Nós vamos observá-la, uma menininha na cama, dizendo "Sim! Sim! Quando eu voltar!" (depois que X diz que eles vão discutir casamento quando ela voltar de Hiroshi), e nós vamos preferir ouvir uma aceitação alegre ao sarcasmo sádico. (Kathleen, em The Addiction, usa o mesmo tom quando ela tranqüiliza uma vítima desejada, "Claro, vou passar aqui.") E nós veremos o vil sorriso de Sandii ao fim do filme (inequivocamente vil no roteiro de Zois), e vamos preferir imaginar que ela é doce. "Imaginação", dizia Simone Weil, "é sempre o tecido da vida social e o motor da história. A influência das necessidades reais e compulsões, de materiais reais e interesses, é indireta porque a multidão nunca está consciente disso".9

X saboreia os movimentos de Sandii, seu jeito e sua voz, até quando ele percebe seu cálculo letal. Opacidade é a tortura dela: nos deixa continuar nos enganando a nós mesmos. Será que ela está sempre jogando um jogo? Existe alguma autenticidade nela? Em alguém? X adere à dúvida para aderir a Sandii, para aderir ao amor, para aderir à humanidade, à lealdade, princípio, amizade, num mundo de arranha-céus disseminados, de um cinza sujo, podre de poluição, do qual nenhum deus ex machina chega para salvar desta vez, e a mais sangrenta vampira reina: Sandii. O masoquismo de X é a melhor esperança que Ferrara pode encontrar para redimir o mundo. O que dá uma certa glória a Sandii: uma glória na vitória, em satisfação sádica, como na Ilíada quando Aquiles corta a garganta de uma dúzia de troianos na pira funerária de Pátroclo, ou a alegria de matar "Japas" nos filmes de Howard Hawks. Essa fêmea é claramente a escolha evolucionária para dominar neste mundo, em que o macho é uma figura ridícula, cujo desaparecimento é sua própria introversão (como em Raoul Walsh). Como Fox, Sandii rejeita a introspecção. Só a vitória. Existe heroísmo aí. Enigma do Poder insiste para que admiremos Sandii, assim como The Addiction insiste para que admiremos o vampirismo, My Lai, Hiroshima e Auschwitz. "Agora eu entendo como tudo isso foi possível!", exclama Kathleen.

Comentários finais

De fato, encontrei uma vez com Arabella de Milão, uma das maiores fãs de Ferrara, que admira seus vampiros ao ponto da emulação. Como Sandii, Arabella se decorava para sair andando na rua e ouvir as pessoas dizerem "Gostosa!" (e sempre diziam). Ela adorava John Woo também, e não podia entender minhas objeções aos clímax de Woo, em que o herói paira sobre o vilão indefeso e, depois de considerável meditação, atira em sua cabeça como se fosse um objeto. É excitante reduzir as pessoas a figuras e estourar seus miolos. Arabella adorava jogos. "Sou apenas uma pobre menininha", diria ela: mas como Sandii, como Kathleen, ela jogava cada momento para ganhar e não tinha tempo para vítimas, a não ser como peões. "Não é deontológico", ela explicaria, girando uma trança e citando Hegel. The Addiction era uma obra-prima, ela disse, mas eu não consegui fazer com que ela me dissesse o que acontece nas últimas cenas; os vampiros eram seus "deuses". Para Arabella, o intoxicante era ser cativante, como Fox chama a força. Então, há mais de uma maneira de gostar de Ferrara.

Mas, como os heróis desnaturados de Homero, com todo esse "heroísmo", que lugar haveria para qualquer outra coisa? "Não é apropriado a um cavalheiro ficar introspectivo", tagarela Fox, cujo salto para a morte é assumidamente magnífico – ao contrário de X, encolhido num útero. Ainda assim, "não é possível amar e ser justo", Simone Weil escreve, "exceto quando se conhece o império da força e como não respeitá-lo". A força é tão impiedosa para a pessoa que é possuidora dela, ou acha que é, quanto o é para suas vítimas; a segunda ela arrasa, a primeira ela intoxica. A verdade é que ninguém realmente a possui.

Sandii desaparece, caminha para fora do quadro; ninguém sabe seu nome de família ou de onde ela é. A fala de Sandii para X é sobre si mesma: "Ninguém nunca vai saber seu nome. Ninguém nunca vai chorar por você. É assim que você quer morrer?" Ela não tem existência para além de suas façanhas, sua força, seus poderes enganadores.

("Quem é essa ‘Lenore’?", Ferrara interpola em seu CD de leitura do poema "The raven", de Edgar Allan Poe.)10

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(Tradução de Ruy Gardnier)



1. Cahiers du sud, XIX, 230, December 1940. O artigo "A Ilïada ou O poema da força" está publicado na compilação Simone Weil: a condição operária e outros estudos sobre a opressão, organizada por Ecléa Bosi e editada pela editora Paz e Terra, Rio de Janeiro. A segunda edição é de 1996.

2. "Moon in the Gutter: Abel Ferrara interviewed by Gavin Smith," Film Comment 24, no. 4 (Jul-ago 1990), p. 44.

3. Existe uma "boa" história de amor em Cidade do Medo, na qual Melanie e suas colegas de trabalho são salvas por seu agente de talentos, que, entretanto, precisa primeiro reencontrar sua vontade de lutar (como John Wayne em Depois do Vendaval [Ford, EUA, 1952, ndt]). "Você acha que é um herói? Bom, talvez você seja," diz um policial a ele no fim. mas, à exceção da ressurreição de Kathleen Conklin em The Addiction, qualquer coisa semelhante a um final feliz parece, num filme de Ferrara, implausível, impossível e inconsistente. A falta de comprometimento do cineasta é evidente na relativa falta de estilização com a qual diversas cenas de subtrama são encenadas, neste e em outros filmes nos quais as decisões foram impostas pelos produtores.

4. Smith, Film Comment, p. 44.

5. Esboço de carta para Andre Weil, 1940 in Richard Rees, org., Seventy letters (London: Oxford University Press, 1965). "Accepter la vide," La pesanteur et la grace (Paris: Agora pocket, 1991), p. 19. Carta a seus pais, 4 de agosto de 1943.

6. Gavin Smith, "Interview with Abel Ferrara and Nicholas St. John." Essa citação é do site promocional de internet, que não está mais disponível.

7. A. G. Basoli, "Abel Ferrara jams with ‘New Rose Hotel’", www.indiewire.com/film/interviews/int_Ferrara_Abel_981019.html. Gibson, "New Rose Hotel", na coletânea Burning Chrome (Nova York: Ace Paperback, 1987), p. 116. O roteiro de Zois está incluído no DVD, mas é acessível somente para PCs com Windows e DVD player.

8. Muito do diálogo de Christopher Walken é improvisado e Ferrara reteve até suas incoerências ocasionais: por exemplo, "Para cada gota de chuva que cai, uma nuvem cresce".

9. "Méditations sur un cadavre 1937" Œuvres complètes, tome II, v. 3 (Paris: Gallimard, 1998) 74-75.

10. No concerto de Halloween na Igreja de St. Ann, Brooklyn (1996), encartado no CD Closed on account of rabies: poems and tales of Edgar Allan Poe, produzido por Hal Willner. Paris Records/Mouth Almighty Records/Mercury Records 314-536-480-2.