O ÉBRIO
Gilda Abreu, Brasil, 1946

O processo de recuperação de importantes obras da cinematografia brasileira tem, nos últimos anos, conseguido prestígio público. Projetos de restauro estão sendo aprovados, novos editais abrindo, e os resultados estão sendo satisfatórios, mesmo que ainda haja um limitador tecnológico (e acho que nunca se escapa de um limitador financeiro). Porém, creio que não há viv’alma que não se emocione com as cores recuperadas de Macunaíma (Joaquim Pedro de Andrade, 1969); com a recente re-exibição de Como era Gostoso meu Francês (Nelson Pereira do Santos, 1971); ou com o retorno de Terra em Transe (Glauber Rocha, 1967) às salas de cinema. Apesar de algumas lacunas ainda existirem em relação à nossa historiografia, os projetos estão se multiplicando, visto o surgimento de novos estúdios de restauro possibilitados pelas novas tecnologias. A restauração de O Ébrio surge aí - entre a disponibilização tecnológica e uma volta de atenção dada ao cinema de maneira geral -, e se apresentou entre os pioneiros desta fase, com seu relançamento, em 1998, numa nova cópia, em 35mm. Isto, na verdade, reflete uma progressiva conscientização sobre a importância da preservação audiovisual. Apreende-se a memória como uma parte integrante da cultura que se relaciona intrinsecamente com o contemporâneo. Um novo olhar sobre O Ébrio suscita diversas noções, tanto do ponto de vista da historiografia - a partir da própria trajetória do filme -, quanto como parâmetro a se relacionar com as questões e o contexto da reflexão recente.

A começar, com o material inédito esta versão conta com 120 minutos, enquanto a versão original de 1946, com o corte pressionado pelos exibidores, contava com 87 minutos. Desenvolveu-se o novo corte com base no roteiro original e com sobras de negativo recuperadas, e seu resultado permite apontar, segundo Hernani Heffner, para uma reavaliação de Gilda Abreu perante a historiografia. A remontagem "repara" erros anteriormente atribuídos a uma falha na direção, e a restauração permitiu uma valorização da fotografia e do som que há muito tinham se perdido: através de um processo que aliava meios digitais e analógicos, conseguiu-se recuperar o som e os meios-tons da imagem, perdidos pela exaustiva copiagem do negativo original.

A preservação da cultura também se dá perante o material extra-fílmico. Partindo da premissa que o objetivo das cinematecas ultrapassa os filmes, e seu universo de trabalho alcança tudo que é próprio do Cinema, se repassa, ao DVD, esta preocupação, tratando os extras com seriedade, com o comprometimento da difusão não só do filme, mas de uma reflexão e de um trabalho que cercou a obra. E isto está, por exemplo, em O Ébrio, uma homenagem, no qual, ao som da faixa-título, vemos uma ampla amostragem de fotos de cena, recortes de jornais, revista, pôsteres, etc., demonstrando-se assim um rico patrimônio que sobreviveu ao longo dos últimos 60 anos. Ao se propor uma revisão, e lançar bases para um novo olhar sobre o filme, os extras incluem entrevistas que se voltam tanto para situar o filme em seu contexto, quanto às condições que propiciaram o seu restauro. São entrevistados: Alice Gonzaga, continuadora da Cinédia; Hernani Heffner, pesquisador responsável pelo processo de restauração; Antônio Urano, diretor comercial da Riofilme; e José Carlos Avellar, crítico de cinema. O DVD ainda disponibiliza o curta-documentário Canção de Amor, de Gilda Abreu, uma cine-biografia de Vicente Celestino composta também de imagens de arquivo e recortes de jornais, e algumas tomadas feitas para o filme. A preocupação biográfica se estende a entrevista de Gilda Abreu a Miguel Pereira e, ainda mais importante, ao depoimento de Adhemar Gonzaga (22 de agosto de 1974, MIS-RJ).

A industrialização era, para Gonzaga, menos uma opção estética do que uma necessidade para a produção do cinema no Brasil. Para manter-se produzindo, em um fluxo contínuo, o Brasil precisaria aprender a se estruturar segundo as regras do modelo industrial. Só isto transformaria os esporádicos surtos de produção em uma realidade ininterrupta. E, tendo O Ébrio atingido o número recorde de 8 milhões de espectadores em seus muitos anos de relançamentos, resta analisá-lo por este viés. O viés do filme que possibilitou a continuidade da produção da Cinédia.

Ao contrário da Vera Cruz, que apostava primordialmente que a qualidade dos filmes garantiria o público, aqui se trata de desenvolver os recursos cinematográficos. Mais um enfoque de linguagem no estético, permitido pela industrialização, do que um enfoque técnico, sobre o signo da "qualidade". Em termos narrativos, o cinema hollywoodiano surge como modelo, não sob uma ótica de subserviência, mas de um reconhecimento do cinema como uma linguagem universal. E apesar de poder se reconhecer sim um mimetismo, isto por si só não elucida o seu grande sucesso, visto outros tantos filmes que fracassaram, e principalmente - como a crítica entusiasta da época insiste em dizer - sua superação na bilheteria de outro filme com data de lançamento próximo e com uma temática parecida, Farrapo Humano (Billy Wilder, 1945).

Muitos críticos da época, e pesquisadores de hoje, costumam apontar para a vulgaridade da chanchada, e seu contato com a cultura brasileira, como pólo de atração de seu público. Títulos como Tristezas não Pagam Dívidas (José Carlos Burle, 1944) demonstram o tom que o filme deveria ter para estabelecer este contato. O interessante é como toda esta especulação se esvazia ao se tomar o imenso sucesso de O Ébrio como exemplo. A fita de Gilda Abreu é, sobretudo, um melodrama - seu pessimismo, as motivações de seus personagens, seu caráter cíclico, a fraqueza humana e a fatalidade do destino que já estão impressas no seu início. Isto é o que predomina, apesar dos alívios cômicos, de teor tão ingênuo que se torna difícil para nós perceber como se agradou um público já mais do que acostumado a consumir as divertidas baixarias da Atlântida.

Como as chanchadas, o filme embarca no poder do rádio na sociedade brasileira da década de 40. Considerando a difusão do rádio dentro dos lares e sua influência na cultura brasileira - que ganha ainda mais força a partir do modelo getulista -, a proximidade do cinema com o rádio já vinha rendendo frutos e havia possibilitado o reerguimento da produção brasileira desde Coisas Nossas (Wallace Downey, 1931). Aí já estavam presentes todos os ingredientes que vigoram até hoje na transposição mercadológica dentro da mídia. Mas se num momento o cinema era mais um veículo dos artistas radiofônicos, ancorado na ansiedade de se ver os famosos músicos e comediantes, e uma antecipação das marchinhas de carnaval, o seu contato com O Ébrio é ainda mais complexo. O filme é pois uma adaptação a partir da famosa música homônima do astro Vicente Celestino, e contou também com uma prévia encenação nos populares teatros de revista, com ele mesmo como protagonista. Não se tem um filme que difusamente aproveita a rádio, mas que tem, concentrado em um só artista, toda a base de sua motivação. E ainda conta com uma estrutura que se espelha naquela de uma novela radiofônica (diferente pois do molde de auditório, de por exemplo, Alô Alô Carnaval, Adhemar Gonzaga, 1936), o que está bem expresso na sua estética - a narrativa, o narrador e inclusive o modo de falar de seus personagens estão impregnados por uma linguagem já afinada com o público.

Analisando o trailer (por ele ser fundamentalmente uma peça promocional) , já percebemos exatamente a que O Ébrio se propõe, principalmente em termos de filão do mercado. Sob a prática americana dos"8 aos 80", idealiza-se o filme para abranger o maior público possível, e ainda que isto esteja, ou não, na cópia final, isto é pelo menos o que se anuncia, o que se vende. Afinal, os letreiros são os mais diversos: realista, alegre, ação, ternura. Isto demonstra não só uma implantação do modelo estético e de produção hollywoodiana, mas implica também no abraçamento pleno da idéia de indústria. Seu imenso sucesso vem disso, de se propor e conseguir a atenção não de um grande público, entendido como massa uniforme, mas de embarcar os diversos pequenos públicos que fazem este grande público. Seja pela pluralidade de seus anseios, por seus momentos cômicos, pelas lágrimas de seu fim, pela presença da música, o contexto do rádio, as figuras famosas, O Ébrio não precisou recorrer ao velho texto de que sexo vende, nem se encaixar nas fórmulas correntes da produção cinematográfica. Se sua trama resiste ou não ao tempo (o que na pior das hipóteses apenas indica uma mudança natural do espectador) isto não diminui a importância de sua recuperação, nem a validade da discussão que este DVD, com seus extras, suscita.


Lucas Barbi

(DVD Versátil)