MARIA ANTONIETA
Sofia Coppola, Marie Antoinette, EUA, 2006

Teen movie de época, baile new wave na corte de Versalhes, desfile de moda com o tema “História da vida privada”... Os rótulos possíveis são muitos, e acabam dizendo alguma coisa sobre Maria Antonieta, mesmo que negligenciem o essencial. Nem propriamente um filme histórico, e nem somente uma melancolia fashion esvaziada de intenções políticas, o que Sofia Coppola oferece antes de tudo é uma prova de fidelidade a seu universo de esteta. Com este terceiro longa, ela chega a uma mescla interessante dos dois registros anteriores: a atmosfera evanescente de Virgens Suicidas se reveza com a mise en scène-intensidade de Encontros e Desencontros para produzir um filme em que a leveza é só o atributo provisório – e dilatado na sua duração – de uma brutalidade extra-campo, que cobra seu lugar no fim de tudo. Se há um rigor sendo posto em prática em Maria Antonieta, é o de fazer um filme o mais superficial possível, de confiar aos signos plásticos não apenas a beleza de uma sensibilidade artística que a diretora sem dúvida alguma esbanja, mas a capacidade do próprio filme de se apresentar como conceito, como obra questionadora. As aparências – as superfícies – são os únicos portadores de enunciados “confiáveis” do filme. Todo o resto é muito impreciso e passageiro para fornecer algum relato sólido. Coppola marginaliza o conteúdo histórico em seu sentido convencional, concentrando-se na reconstituição – criativa, pessoal, minimalista – de cores e costumes de época (século XVIII? década de 80?).

Maria Antonieta é um filme de figurantes. Em parte porque a trama – ou o que resta dela após a liquefação narrativa a que o filme é submetido – se dá a compreender nos rostos de anônimos, nas expressões e falas fugidias de personagens secundários, nos cochichos que chegam pelas laterais do filme (sobretudo na sua primeira metade). E em parte porque o figurante (ou o “extra”) é aquele que participa de uma cena emprestando nada mais que seu semblante, sua aparência, ou seja, justamente o que mais importa a Coppola neste projeto. O filme que se cria a partir disso irá precisar, como nenhum outro, das falas e das posturas dos coadjuvantes para dar conta da narrativa: Judy Davis, Asia Argento, Jason Schwartzman (o Luís XVI tornado coadjuvante em seu próprio reino), Mathieu Amalric (singela e divertida participação na cena do baile de máscaras), Steve Coogan... todos menos Kirsten Dunst devem fazer a história andar. A ela, protagonista, é reservado um lugar de pura presença luminosa – nada de invasões psicológicas, apenas ações que buscam partilhar conosco os afetos da personagem. Isso rende ao filme um aspecto insólito e até mesmo cool. Poses e sensações se espalham por seu miolo, que transcorre como uma brisa, já que as elipses, mesmo quando suprimem meses ou até anos, são sempre suaves. Esse formato elíptico suscita também uma indefinição temporal de todo conveniente à diegese, que opera uma espécie de pregueamento histórico de hedonismo e decadentismo (sinta-se o espectador conectado aos livros de História ou a uma festa temática anos 80, ambos os cenários são válidos pro filme).

Mas o estilo posado é para ser visto com cuidado, pois Coppola é também uma esteta que cultiva um certo desequilíbrio, uma perda de controle sobre o material do filme, um transbordamento da cena. Se em Encontros e Desencontros havia aquela cena do karaokê para nos avisar desse transbordamento, dessa guinada sentimental, em Maria Antonieta o hype foi amortecido. Boa parte do filme é constituída de elementos puramente plásticos que se proliferam em detalhes, efeitos de escritura não necessariamente implicados pela demanda narrativa, gerando uma falsa impressão de que Maria Antonieta existe em função do exercício de um estilo, ou de uma precoce construção em abismo. Precisamente nesse ponto o jogo de superfícies impõe sua dificuldade: como alcançar a força e a fineza de uma reflexão sobre o poder, a política e tudo aquilo que está subjacente no deslumbre visual, na frivolidade, nas músicas? Sob esse prisma, o projeto não pode ser taxado nem de fracassado nem de brilhante.

Sofia Coppola sacrifica o enredo em favor de insistências autorais? Sim e não. Algumas recorrências estéticas (a exemplo do tipo de utilização da trilha sonora) e alguns motivos visuais parecem de fato preceder qualquer destino narrativo ou qualquer construção de sentido dentro do filme. É assim que vemos a cineasta se reatar temática e estilisticamente a seus trabalhos anteriores: por trás do reflexo do vidro da carruagem, vemos o rosto de Maria Antonieta observando a paisagem e refazendo a pose de uma jovem tomada na sua solidão em relação ao mundo incompreensível que a cerca, exatamente como em Encontros e Desencontros (saem as luzes infinitas de Tóquio, entram os jardins infinitos de Versalhes); banhada pelo sol da tarde ou pela sombra de uma árvore, Kirsten Dunst reencontra sua personagem de Virgens Suicidas, desfrutando um lirismo às raias da morbidez.

A necessidade de assinatura, entretanto, não parasita o filme. Se Maria Antonieta passa o tempo quase todo sorrindo para seu destino fatal, e se por ventura nós mesmos esquecemos o que a aguarda, há o momento em que a História bate na porta e impõe sua participação à força, momento extraordinário que obriga toda uma reavaliação do que tinha sido mostrado até ali. Versalhes era uma festa, mas Paris definitivamente não era. Apesar da queda de popularidade que os gastos abusivos e as declarações controversas (boatos?) acarretaram a Maria Antonieta, nada previa aquilo no filme, e a chegada do povo a Versalhes é um golpe abrupto. É uma segunda perda de inocência para a personagem, em nada aliviante como havia sido a primeira (lembrar dela deitada na grama, sorrindo após perder a virgindade). A História vaza do fora-de-campo e se instala violentamente no filme, ainda que permaneça como um zumbido de fundo – a exemplo dos gritos da turba que quer invadir o castelo assombrando o silêncio perturbador do jantar do casal real. Maria Antonieta, então, com uma graça e uma tristeza inesquecíveis, vai à sacada oferecer sua cabeça à guilhotina, ou melhor, à História.

Antes da reviravolta histórica, o tom de efemeridade e hedonismo se rivalizava com um cotidiano de protocolos estúpidos, por vezes malignos. No limiar das revoluções burguesas em marcha, o filme aborda uma era pré-tablóide, mas na qual a falta de privacidade, o acesso deturpado aos bastidores da vida de uma celebridade (pois Maria Antonieta é exatamente isso no filme) já é aspecto constituinte do seu dia-a-dia. Maria Antonieta é mostrada num estado de curiosa e proposital leviandade em relação a seu papel político: adolescente rica imersa num aquário multicolorido (mais para As Patricinhas de Beverly Hills do que para Segundas Intenções), vivendo uma ficção ancorada tão-somente a suas pulsões e seus êxtases momentâneos, totalmente desconectada do sentido histórico a que seu cargo está destinado. Sofia Coppola extrai disso um bonito filme, pleno de luz e de vitalidade – mas no qual se infiltra, como reverso sombrio, o desespero mudo da História.


Luiz Carlos Oliveira Jr.

 

 






Kirsten Dunst brilhando em Maria Antonieta