CARTOLA
Hilton Lacerda e Lírio Ferreira, Brasil, 2006

Houve sempre nos filmes de Lírio Ferreira um sentido muito forte de reafirmação de um certo passado cultural e popular do país, algo que na passagem de Baile Perfumado para Árido Movie se anuncia primordialmente com o retorno a dois momentos fundantes da idéia que do Brasil se criou, no século passado, a literatura regionalista dos anos 30 e o cinema moderno dos anos 60. Retorno, e não revisão: repetiam-se certas fórmulas anteriores, aplicadas à contemporaneidade sem qualquer critério, como se a simples aproximação parasitária de um pensamento canônico pudesse fazer reagir naturalmente, no interior dos filmes, os elementos ali dispostos em nome dessa recuperação cultural. O projeto de Cartola tem essa mesma direção, mas se nos filmes anteriores era dela que se partia, aqui ela será o fim.

Assim, a figura do sambista carioca é tomada como uma espécie de sumário da tradição popular brasileira, naquilo que todos esses ícones culturais teriam de recipientes (voluntários e conscientes, ou não) dessa nossa identidade forjada na comunicação entre expressões diversas. A trajetória de Cartola se inicia pelo fim, e sobre as imagens em preto e branco de seu funeral, ouvimos Jards Macalé recuperar a primeira frase das Memórias Póstumas. Importa para o filme que Cartola tenha nascido no ano da morte de Machado de Assis, e que a estrutura narrativa que adote (do funeral se retorna ao nascimento do sambista, para que então se avance linearmente) esteja ligada à de Brás Cubas, mas não apenas como uma curiosidade que se transforme em matriz dramática. Lírio Ferreira e Hilton Lacerda querem, de fato, colar a experiência machadiana à de Cartola, nem diminuir uma da outra, nem muito menos sobrepor, mas fazê-las dialogar. Os dois foram, afinal, definidores daquilo que percebemos hoje como cultura brasileira.

Definidor também é o próprio cinema, e se a arqueologia natural desse tipo de projeto já inclui a recuperação de imagens de arquivo que ajudem a construir este personagem perdido, Cartola buscará também na história do audiovisual brasileiro este diálogo formador. São sim as imagens das participações de Cartola em filmes e programas de tevê, mas também aquelas de seus companheiros de geração (Nelson Cavaquinho, Carlos Cachaça), e ainda outras onde não haja qualquer ligação direta, trechos da memória visual do país que, retirados de seu contexto e postos em comunicação, dizem tanto sobre si quanto sobre aquilo que ajudaram a construir enquanto idéia de cultura.

O que poderia sugerir um biografismo simples, revelando informações e histórias de que não se tinha conhecimento, construindo esse Cartola menos mítico, mais humano, acaba se frustrando diante de várias negativas do filme em mergulhar e expor os detalhes dessa personalidade. Ferreira e Lacerda insistem, na verdade, na própria mitologia já estabelecida, desfazendo seu caráter conformador de sentidos (a grande diferença do que Árido Movie faz com o Cinema Novo, por exemplo). Mito, mas talvez sem a real dimensão e profundidade de sua própria história, e desse modo colar à Cartola todo o Humberto Mauro, Glauber Rocha, Carlos Manga e Julio Bressane que se tem disponível, e também os clipes de Welles e Carmen Miranda com um bombardeio da II Guerra, ou a colagem de Mutantes, Roberto Carlos, Pelé e uma tropa militar da ditadura, tendo partido, lá no começo, do pecador original que foi Machado, é ratificar, agora “com provas”, a imanência do sambista sobre nossa formação cultural, um papel de formador maior do que a falta de memória e perspectiva histórica acabou por perder.

Neste filme, Cartola sempre é. Se As Rosas Não Falam aparece montada como tema eterno e de domínio público, que sai da flauta cretina de um músico andino numa praça para Beth Carvalho ao violão, e depois para Altemar Dutra diante duma orquestra em um show de tevê, até que finalmente se complete com o próprio compositor, esta diversidade é a própria materialização do gênio popular pela conjugação da imagem. Há nessas afirmações todas um risco gigantesco, mas é dessa coragem de dizer efetivamente algo sobre sua fonte de inspiração/atuação que os filmes anteriores de Lírio Ferreira mais se ressentiam. Lida-se sim com o mito, mas não para sugar desesperadamente suas últimas forças. Cartola tem fôlego próprio, e é por isso que consegue, se arriscando, mas ainda assim com muita integridade, respirar na cadência superlativa de seu personagem.

Rodrigo de Oliveira