BORAT - O SEGUNDO MELHOR REPÓRTER DO GLORIOSO PAÍS CAZAQUISTÃO VIAJA À AMÉRICA
Larry Charles, Borat: Cultural Learnings of America for Make Benefit Glorious Nation of Kazakhstan, EUA, 2006


Borat
parece começar a existir naquela seqüência com a entrevista de Charlton Heston em Tiros em Columbine. A disposição é a mesma: o retorno a um símbolo da América branca e próspera, muito bem visto em seu tempo de glória, mas no presente apenas a sombra mórbida daquilo que um dia foi. Esse símbolo, combalido por anos de defesa do conservadorismo num mundo que aparentemente crescia em torno do seu oposto, o liberalismo, chega ao agora como alvo fácil e bastante suscetível às investidas de seus críticos mais radicais, já sem força e energia o bastante para propor as batalhas verbais e físicas que um dia se dispôs a promover, cansado demais, e já seguro demais da justeza cega de seu ponto-de-vista, para se digladiar uma outra vez. Sua situação é intrínseca e evidentemente vexatória, e não importa se através de uma agenda de propósitos bem definidos ou se pelo simples estabelecimento de um canal de registro, o ato de filmá-lo, a disponibilidade do olho da câmera às suas idiossincrasias, torna a imagem daquele símbolo inevitavelmente a imagem de seu constrangimento, de sua diminuição.

Os dispositivos podem ser diferentes, não mais um documentário que se construa ficcionalmente, mas uma ficção que se disfarça de documentário, não mais uma campanha aberta contra um alvo específico, mas a tentativa de uma certa crônica das generalidades, não mais a figura do documentarista como investigador perspicaz que busca na realidade os traços confirmadores de sua crença, mas a paródia disso, o repórter que quer se alimentar de uma realidade que acredita ser melhor que a sua (e a de seu país originário). No fim dessa linha, no entanto, há o mesmo desejo de se flagrar certas convicções da América no exato momento em que apodrecem, e uma vez ali perto, chutar este cachorro morto, para talvez conseguir dele um último ganido hilário de desespero. Michael Moore escondia esse sadismo vingativo sob a nobreza indiscutível dos temas que o interessavam, a cultura armamentista e o império bushista-republicano, e aqui Larry Charles e Sacha Baron Cohen se despem desse messianismo. Há uma aparente falta de compromisso com a apenas suposta e nunca declarada agenda política que liga todos os esquetes mockumentários entre si, e esse desprendimento garante à Borat este passivo da inconseqüência – permitido aqui mas negado à Moore –, torna sua experiência a fruição de uma comédia de costumes ligeiramente mais radical em seu diagnóstico da vida miúda, essa mesma que serve tão bem de metonímia dos pilares deste país: um rodeio no interior, o culto a uma celebridade, um jantar na alta sociedade, uma viagem adolescente de férias, aglomeração de diversos dos leit motivs espalhados por dúzias de outros filmes, só que agora com um pouco mais de fezes dentro do saco.

Mas o que quer Borat com tudo isso, afinal de contas? Parece claro que o Cazaquistão aqui pouco interessa, sendo tão somente a plataforma de lançamento para a América, precisando conter tudo aquilo que de oposto irá se encontrar no país desenvolvido, um Cazaquistão sem singularidades, apenas tudo-aquilo-que-a-América-não-é. Mas, ora, o modo de operação do repórter nos dois espaços diversos é bastante semelhante. Sobre a terra original são elencados uma série de dados culturais “verdadeiros”, que Borat informa ao espectador como características fundantes daquele meio social e histórico (a marginalidade atroz, a sexualização de todas as relações, famílias construídas por incesto, a pobreza como fruto da falibilidade moral dos habitantes). Sua viagem ao país das projeções de sucesso tem como meta o tal make benefit, e portanto é uma viagem de absorção de novos valores. Essa absorção, no entanto, em nenhum momento é efetiva, ela se deixa contaminar por todas aquelas mesmas características que Borat já trazia do Cazaquistão-fantasia, e assim este sonhado aprendizado cultural não passa do restabelecimento das velhas “verdades” marginais, sexuais e falíveis de antes através do acúmulo de nova munição, e se não mais a esposa gorda de bigode, agora a feminista de cabelo curto e postura masculinizada, se não mais o vizinho ganancioso, agora a classe rica do Meio Oeste: outros personagens para as mesmas piadas. Aprender a viver com a cartilha desta América carcomida é aprender a viver sob o regime da deturpação, retirar as incongruências de seu contexto e expô-las isoladas, para daí se fazer o que bem quiser com ela (símbolo máximo dessa estratégia é a retomada da piada do “not”, aprendida com um professor de humor americano, e que Borat usa despropositadamente quando é capturado pelos seguranças de Pamela Anderson: é o americanismo típico assumido como uma reação que não tem nada de americana, cazaque ou javanesa, mas sim de pura gag desterritorializada).

Se de um lado temos tudo-aquilo-que-a-América-não-é, o outro lado é fabricado como sendo somente-aquilo-que-queremos-enxergar-na-América, e aqui, não há dúvida, a América está sobrando, não tem nada a ver com isso. Eis a agenda de Borat: comédia a custo zero, parasitária de certos traços anacrônicos específicos da sociedade americana, piadas por conta própria quando observadas por quem enxerga ali a falência moral de uma ideologia ultrapassada, e talvez por isso o repórter se exima de intervir na efusão espiritual da igreja evangélica lotada, ou então oportunidades para a aventura de um mestre de cerimônias atrevido, como quando canta o hino nacional cazaque na melodia do hino americano, no centro de uma arena de rodeiro igualmente lotada: nada de uma consciência ética aguda na relação com os objetos de interesse, que deixe nas mãos do espectador, e não do personagem da ficção, a escolha pelo riso diante do constrangimento evidente de certas situações. Borat é dado a conveniências, incrivelmente inconstante no tratamento aos diversos episódios que acompanha, tendo na cabeça não outra vontade que não a de exaltar o ridículo daquilo tudo.

É aí que o cultural do título original se pulveriza. Diante da complexidade, a opção pela facilidade (é tão mais simples fazer piada com um vendedor de armas que indica a melhor pistola para acertar judeus, e com o astro de cinema gagá que é padrinho da associação nacional de atiradores, do que com aqueles que sejam capazes de entrar no jogo e combater o sarcasmo e a ironia com a mesma consciência e fôlego do humorista/documentarista). A tentativa de sumário se perde, a cultura americana, e não só seus ruídos mais incômodos, nem mesmo é arranhada. Sobram os solos de comédia, e eles são muitos e bastante interessantes (a substituição do ideário louro e peitudo de Pamela Anderson pela prostituta negra e roliça sendo o melhor deles). Mas no quesito “ó comédia-rainha, faz do meu corpo um instrumento do teu prazer e de tua glória” já temos há muito tempo, e com uma histeria muito menos programática, o grupo de malucos em torno do Jackass. Borat é a comédia física, estúpida e grosseira, escondida dentro do armário da conseqüência. E assim, ali dentro, se empobrece, domável e auto-indulgente.

Rodrigo de Oliveira