O VELHO + O NOVO

O caminho de Joaquim Pedro de Andrade é bastante singular, numa certa perspectiva da cultura brasileira, por conta do seu papel na relação entre dois dos grupos-chave da cultura moderna brasileira: o conjunto dos cinemanovistas, de que ele próprio fez parte, e a turma modernista da Semana de 22, a que era ligado por relações familiares e afetivas. Rodrigo Melo Franco de Andrade, seu pai, manteve relações bastante próximas com os nomes centrais do modernismo, a começar por Manuel Bandeira, Drummond e Mário de Andrade – e foi ele próprio o responsável designado por Capanema para criar o Serviço do Patrimônio Histórico Nacional (hoje IPHAN). Há um paralelo já bastante evidente entre os cinemanovistas e os modernistas, uma vez que, entre todos os seus caminhos, o movimento modernista se caracterizou por buscar representações que não fossem meras imitações da cultura estrangeira hegemônica, ou seja, por produzir obras que buscassem ser o mais "brasileiras" possível – coisa que, a seu modo, também caracterizou o cinemanovismo. Percebe-se tanto nos discursos dos realizadores como nos próprios filmes do Cinema Novo que aquele era um cinema que se pretendia moderno – e, como movimento, era a primeira vez que essa pretensão se instituía no panorama do cinema brasileiro.

Como nota Guilherme Sarmiento noutro texto desta edição, o cinema não esteve em primeiro plano na pauta da primeira geração modernista brasileira: os registros audiovisuais dos artistas e intelectuais do grupo da Semana de 22 existem apenas em alguns cinejornais. Há relativamente poucos filmes em que se pode ver os principais ícones do modernismo, sejam eles os escritores, músicos, pintores ou arquitetos – e mesmo estes poucos filmes foram produzidos a partir dos anos 60. Também é um bocado difícil encontrar influências do movimento modernista no cinema brasileiro pré-cinemanovismo (com algumas exceções, decerto, mas vale lembrar que mesmo um filme raro como Limite foi questionado com relação ao seu grau de influência estrangeira e o de "verdadeira brasilidade"). No entanto, a relação entre as duas patotas, a cinemanovista e a modernista, é natural e evidente. É provável que se possa traçar um bocado de paralelos entre as idéias da geração dos anos 20, 30 e 40 e os filmes feitos pelo grupo que surgiu nos anos 60, mas o trabalho de Joaquim Pedro de Andrade se presta a isso de forma especialmente evidente em diversos momentos do seu percurso – ele foi o realizador de Macunaíma, afinal de contas. Mas isso não se limita à versão do romance de Mário de Andrade – os ecos possíveis dessa relação de proximidade que Joaquim Pedro teve com parte do grupo modernista são bastante interessantes em outros filmes que ele dirigiu. Interessantes, se não por outras razões, porque permitem apontar a revisão que o cineasta fez acerca de algumas das questões fundamentais para o modernismo. A revisão ao mesmo tempo chanchadesca e pessimista de Macunaíma é o caso mais célebre, certamente, mas não é o único. Influências de várias das vertentes modernistas podem ser apontadas nos seus filmes desde o início, para além do fato de ter registrado Manuel Bandeira (que era seu padrinho) e Gilberto Freyre nos seus dois primeiros curtas, O Poeta do Castelo e O Mestre de Apipucos. Depois de fazer Couro de Gato (que talvez seja o filme que mais assume a influência de Rio 40 Graus sobre a geração cinemanovista), o cinema de Joaquim Pedro voltou a se mostrar tomado pelas questões da geração modernista, seja no interesse pela força da cultura popular esportiva (em Garrincha, Alegria do Povo) ou no choque com o atraso social brasileiro e seus tabus (em O Padre e a Moça). E no final dos anos 60, há dois filmes de certa forma complementares na revisão crítica do projeto modernista, os pessimistas Brasília, Contradições de uma Cidade Nova (curta que permaneceu inacessível por anos) e o citado Macunaíma (longa de grande sucesso na bilheteria).

Se esse retorno à fabulação sobre a constituição de um caráter nacional em Macunaíma se mostrava crítico e descrente do Herói e do destino que o futuro lhe guardava (como já foi apontado mais de uma vez, ao final Macunaíma é devorado e desaparece em definitivo, ao contrário do livro, em que se transforma em uma constelação), o seu outro lado da moeda talvez seja esse filme que ficou oculto por anos e que foi adicionado ao DVD do filme: Brasília, Contradições de Uma Cidade Nova, o documentário sobre o que aconteceu com a cidade projetada por Lúcio Costa e Niemeyer nos anos seguintes à sua criação. Em 1969, Macunaíma apresentava a paródia de um mito fundador, atualizando o herói de Mário de Andrade com um certo tom chanchadesco (com direito a uma personagem transformada em guerrilheira, a Ci que o herói amou). Antes disso (em 1967), Brasília tratou do sonho falido de uma organização racional de uma sociedade. O mito inventado de Macunaíma, o romance de Mário de Andrade, foi reapropriado (ou canibalizado, para usar o termo antropofágico), enquanto o fracasso de Brasília foi encarado de frente. E o diagnóstico do fracasso de Brasília, feito por esse filme já em 1967, poucos anos após a criação da cidade, é um sinal bastante claro da leitura crítica que os filmes de Joaquim Pedro de Andrade (como os de boa parte da geração surgida nos anos 60) fazem das propostas dessa geração décadas mais velha – e vale lembrar que Lúcio Costa reconheceu que o filme tinha razão na falha que apontava na tentativa de organização racional de uma pretensa "cidade perfeita" dentro de um país com uma realidade social inteiramente diferente.

Seus filmes seguintes tiveram como temas a disseminação da publicidade (o curta Linguagem da Persuasão); o papel dos intelectuais numa revolução – acovardando-se no momento de repressão, a partir da inspiração dos poemas de Cecília Meireles para fazer Os Inconfidentes; em seguida, quando as discussões sobre a relação com o grande público eram freqüentes, Joaquim Pedro fez uma releitura colorida e amarga da sordidez naturalista, na sua visão do universo de Dalton Trevisan em Guerra Conjugal; e depois fez uma crônica sobre a graça que há no dia-a-dia das pequenas taras e as conseqüentes preocupações prosaicas e resoluções inusitadas, nessa jóia rara que é o curta Vereda Tropical. Todas essas tramas citadas possam ser associadas a correntes e caminhos modernistas, ainda que esse olhar seja apenas um entre muitos a se complementar sobre os filmes – afinal, tanto é preciso passar por Terra em Transe para compreender Os Inconfidentes como vale a pena lembrar do contexto do cinema brasileiro dos anos 70 para perceber as questões de Guerra Conjugal e Vereda Tropical (como faz Estevão Garcia noutro texto dessa edição).

Mas nos dois últimos filmes que Joaquim Pedro de Andrade realizou as idéias dos anos 20 e 30 voltam a estar em primeiro plano. No curta O Aleijadinho (com narração escrita por Lúcio Costa, como nos lembra o texto de Luís Alberto Rocha Melo) retorna-se à valorização do barroco mineiro, uma tradição que permite achar uma "origem" para uma "cultura brasileira" – uma questão que foi muito cara aos modernistas e, no caso do barroco mineiro, em especial a Rodrigo M. F. de Andrade. As próprias obras do Aleijadinho permitem ao filme rever e mostrar uma tradição que a arte brasileira tem em criar ícones com falhas, em se revelar pungente a partir de detalhes que revelam irregularidades, que nas esculturas se mostram através dos personagens de olhares tortos.

E o seu cinema radicalizou a luta contra o poder patriarcal e contra as formas culturais hegemônicas em O Homem do Pau-Brasil, o retorno a Oswald de Andrade, cuja figura é interpretada no filme ao mesmo tempo por um homem e uma mulher (Flávio Galvão e Ítala Nandi). Para além de suas oscilações narrativas (que, de todo modo, fazem parte da própria estrutura do filme), este último filme de Joaquim Pedro de Andrade é intrigante por seu grau de mau-comportamento e bom humor – e também porque essa postura se contrapunha à tendência majoritária da época, que era a de produção de filmes com uma linguagem mais assimilável, num momento de crescimento das bilheterias dos filmes brasileiros. No momento em que todos os seus colegas de geração (como Leon Hirszman, Diegues, David Neves, Jabor, Ruy Guerra e mesmo Nelson Pereira) e também alguns mais jovens (Antonio Calmon, Neville D’Almeida) estavam fazendo ou prestes a fazer filmes de sucesso de público e fácil comunicabilidade narrativa, Joaquim Pedro chegou com O Homem do Pau-Brasil, agredindo explicitamente a cultura patriarcal e o conservadorismo que permeavam os discursos sobre sexualização e ironizando ao mesmo tempo os pressupostos da representação cinematográfica e da representação nacional. Ao contrário de Guerra Conjugal e Vereda Tropical, que criticavam um formato narrativo ao mesmo tempo em que se apropriavam dele, O Homem do Pau-Brasil apresenta imagens que, ao mesmo tempo que existem a partir da grande dose de sexualidade nos filmes da época, em nada se parecem com estes outros filmes.

Vale considerar, de todo modo, que alguns outros cineastas também fizeram obras nada convencionais naquele momento – Bressane e Sganzerla são lembranças óbvias, mas mais significativo é o caso do seu companheiro de geração Glauber Rocha com A Idade da Terra (a quem é dedicado O Homem do Pau-Brasil, inclusive). Porque, assim como o filme de Joaquim Pedro, A Idade da Terra é um filme que recusa a forma narrativa trivial mas, ao mesmo tempo, deixa explícito o seu desejo de se comunicar com seu público, só que de uma forma original e, sobretudo, estimulante (ou seja, em ambos os casos ainda se trata de um cinema utópico). E vale notar ainda que, enquanto o último filme do cineasta baiano partia de uma perspectiva internacionalista (evidenciada tanto pelo próprio tema do(s) Cristo(s) de terceiro-mundo quanto pela fala associando seu projeto ao de Pasolini), O Homem do Pau-Brasil certamente também procurou novos olhares, mas com o escopo limitado pela questão nacional, goste-se ou não. A revisão que havia em A Idade da Terra, esta Glauber fez para romper com o aspecto colonialista do catolicismo, enquanto a de Joaquim Pedro era para atacar o conservadorismo com que a ordem social brasileira lidou com a mudança dos costumes e para rever o papel do artista dentro desta "ordem das transgressões". A volta ao mau-comportamento oswaldiano, nesse caso, fazia sentido diante de um cinema que, não obstante o grande talento mostrado em diversos filmes, corria o risco de se tornar oficialesco na sua lógica de que "mercado é cultura" (para citar uma frase que ficou famosa).

Esta tentativa de uma visão ampla das questões predominantes no ser brasileiro é mais uma vez evidente no último projeto de Joaquim Pedro, o roteiro de Casa-Grande, Senzala & Cia., livre adaptação do clássico de Gilberto Freyre. Editado em livro há poucos anos pela Editora Aeroplano, com organização da viúva do cineasta, Ana Maria Galano, co-roteirista do projeto, este roteiro permite notar mais uma vez a intenção de rever as questões modernistas e seus dogmas. Casa-Grande, Senzala & Cia., através de um enredo ficcional sobre a chegada das primeiras comunidades portuguesas e, depois, africanas ao Brasil, pretendia mostrar as figuras do livro de Freyre se transformando em personagens – e, assim, ressaltar como, ao mesmo tempo em que existiam relações íntimas libidinosas entre colonizadores e colonizados, a violência, tanto física quanto cultural, deu o tom do projeto civilizatório. A antropofagia não é somente simbólica, mas sobretudo real, assim como a colonização. Decapitações, esquartejamentos, assassinatos em massa e canibalismo se fazem presentes constantemente nesse texto que sugere como seria este filme que não se realizou. No seu letreiro final, diz-se que "Desde 1500, colonizadores nacionais e estrangeiros vê se sucedendo no Brasil. Oxalá, em breve, tenhamo-los comido a todos". Oswald de Andrade não teria mudado uma palavra sequer.

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Não pretendo com essas observações sugerir que os filmes de Joaquim Pedro, todos eles, se prestam unicamente (ou sobretudo) a apontamentos sobre a atualização de certas questões dos anos 20 e 30 pela geração cinemanovista. Como já sugeri antes, cada filme tem relações evidentes com outras obras de sua época – mas,mais do que isso, cada filme tem segredos e novidades que lhe são próprios, que só existem no seu próprio momento.

Esquecer isso é esquecer os próprios filmes.

Para além da relação entre amor e tabus sociais de O Padre e a Moça, há os olhares de Helena Ignez para Paulo José, assim como há certos silêncios deste ator, e há também um ar desorientado do personagem de Fauzi Arap, e há a cena de amor, e há o desfecho em que os amantes só terão mais alguns instantes a sós antes de morrerem sufocados – e são coisas assim que fazem este filme ser único, especial.

A dicção de Cláudio Cavalcanti em Vereda Tropical; a cena em que Macunaíma é dominado por Ci no elevador de um edifício-garagem; a transição entre o mundo sonhado de Brasília e a realidade dos seus habitantes mais pobres: todos estes detalhes não apontam relações com outras obras (ou não apenas isso), eles apenas acontecem e fazem os filmes terem seus encantos próprios.

Mas as obras tampouco se limitam à fruição momentânea – elas nos trazem idéias, as idéias de que são compostas e as que vamos compondo. E das muitas idéias que compõem estes filmes citados aqui da carreira de Joaquim Pedro de Andrade, há naturalmente laços em comum e desenvolvimentos traçados ao longo do tempo.

Não há outro cineasta que seja tão diretamente ligado aos modernistas quanto ele (a única possível exceção é Rudá de Andrade – que, no entanto, entre suas várias atividades, participou de poucos filmes e não dirigiu nenhum longa-metragem). E não temos como fugir à constatação de que aquela geração de 22 percebeu (e/ou impôs) uma agenda cultural para o país, com idéias que naturalmente espalharam suas influências.

Assim, os filmes de Joaquim Pedro, embebidos dessas influências, apresentaram críticas e novas idéias sobre estas questões – e estas novas idéias de então, que sugeriam novas posturas diante de velhas oposições, ainda hoje se mostram vigorosas e são parte de sua força, em cada filme a seu modo.


Daniel Caetano