ALGO ACONTECE ENTRE DUAS IMAGENS

O que pode a imagem? Ou, poderíamos perguntar, o que ainda pode uma imagem? Banalizada, desafetada, auto-referente, redundante, a imagem contemporânea, na impossibilidade de construções de sentido simples e ainda assim vigorosas, parece trabalhar hoje através da saturação dos códigos, do aumento das doses de impacto já que a dose normal não mais funciona, do exercício rocambolesco de unir histórias que nada têm a ver (reavivando, de forma banal e um tanto perversa, as piores conseqüências do uso da montagem paralela), enfim, de uma complexificação pro forma que jamais corresponde, em todo caso, a uma real complexificação do pôr-se em questão da imagem e das pessoas e coisas colocadas diante da câmera. A Babel contemporânea é falsa, porque ao invés de uma multiplicidade de línguas ela somente apresenta o aumento do volume, mas de uma mesma e única voz, acreditando que magicamente a multiplicação vai acontecer. Não acontece.

O que pode uma imagem? O que podem duas imagens? O que pode o elo entre elas? No ano cinematográfico, alguns filmes se colocaram seriamente esse problema e apareceram com soluções doces, novas, apaixonantes, ora dando vazão a uma instabilidade do espaço, ora ressaltando a lacuna que existe entre dois corpos, ora revelando o átimo de segundo em que se apaixona perdidamente. Nenhum efeito, nenhuma grandiloqüência de elefante branco. Basta apenas a confiança na imagem, no laço simbólico e lógico que as une, e na força vital em fazer do elo entre imagens um padrão coerente e vigoroso da criação de um universo. Para isso, às vezes, basta tentar retrabalhar em chave nova alguns dos princípios mais batidos do cinema, renová-los não a partir de um achado bombástico, mas através da simples atenção ao processo de trabalho e ao que a obra pede. Assim, um blockbuster americano e um filme de arte de Hong Kong, um filme de ação e um drama, ambos partilhando um devir-fluxo da imagem contemporânea, reinventam a velha prática do campo/contracampo.

Miami Vice e 2046 têm pouco um a ver com o outro, mas eles se perguntam o tempo inteiro: o que faz liga entre uma imagem e outra, e qual é o sentido dessa liga quando estamos falando justamente de fissuras? Ora, o campo/contracampo é a figura de liga por excelência, talvez junto com o padrão mastershot/planos próximos a figura mais recorrente de integração "automática" pela montagem de imagens distintas. Como desarmar esse automatismo, como inscrever a fissura dentro desse efeito de liga que une (geralmente) duas pessoas e seus rostos um ao outro como se nunca tivesse havido duas imagens diferentes? Não se opera aqui nos saltos de percepção provocados pelos jump cuts nem nos efeitos de descontinuidade, e tampouco se burla aqui as regrinhas básicas de 30º e de 180º (ou, pelo menos, o princípio que as sustenta): há uma astúcia suprema, duas molecagens diferentes que, mesmo trabalhando com a idéia de um espaço homogêneo, inscrevem dentro dele uma diversidade, uma perturbação, ou ao menos aquilo que corresponde a um efeito simbólico de um estar-no-mundo complexo. O espaço pode permanecer homogêneo, mas o humano está cindido, e é esse o trabalho que a montagem desses filmes, em momentos precisos, tenta trabalhar.

Miami Vice curto-circuita espaços, sai da Miami de base para a América do Sul, de lá para Cuba, e provoca um sentido de desorientação espacial, ou, melhor dizendo, uma nova reorientação, rápida, confusa, que corresponde à velocidade dos novos tempos, dos mais distintos pontos do mundo ligados em rede e da plena "navegabilidade" (preferencialmente se se é americano, claro) do mundo. Nesse mundo em que o macro massacra o micro, em que o mundo do trabalho domina o terreno pessoal (a recorrente figura do workaholic ou do agente undercover), qual é o espaço para o humano em tudo isso? Sensorial, pujante, marrento, Michael Mann mostra a desorientação do homem mas não faz a separação entre orgânico e sintético, preferindo tirar proveito de tudo que puder atribuir uma forte sensualidade à imagem: visuais paradisíacos, barcos de altíssima velocidade, sexo, cortes bruscos entre locais distantes do mapa, eterna sensação de algo iminente a acontecer proporcionam um coquetel de frissons, fragmentam a unidade narrativa, obrigam a percepção a catar pedaços disparatados de trama e criam uma eterna sensação de vertigem que povoa e dá gosto à obra de Mann. Quando Gong Li e Colin Farrell viajam de iate até Cuba, o campo/contracampo surge como melhor forma de filmar o diálogo e a tensão sexual entre os dois. Contudo, há sempre o pé atrás, a sedução sempre pode ser uma jogada suja na negociação. No mais, a vertigem deve ser mantida a todo custo: o raccord visual entre (1) e (2) permanece límpido, mas a velocidade da troca de planos para filmar dois gestos de personagem fazem com que nossa percepção espacial do deslocamento do barco "salte" da esquerda para a direita, potencializando uma construção "selvagem" do espaço e sugerindo uma separação dos personagens, seus anseios, e a relação com o espaço brutal e sensual que habitam.

2046 parte de outro ponto. Não é o espaço que constrói obstáculos, é a própria relação entre homem e mulher, ou, mais apropriadamente, a relação consigo mesmo de um homem que, na impossibilidade de atualizar um fantasma de amor passado, transita de mulher em mulher, sempre sabendo que nenhuma ocupará o lugar deixado pela originária. Visualmente, o filme soluciona a relação com seu personagem retirando do centro da imagem qualquer ponto de equilíbro, jogando para as extremidades ou para fora da imagem a ênfase visual, utilizando soberbamente o quadro do scope, formato 1:2,35 para rasgá-lo ao meio, obstruir sempre parte do quadro com sombras, paredes, ou então fazendo com que os personagens, com seus olhares e sua posição no quadro, deixem certos campos da imagem "vazios". Mais uma vez, uma conversa, uma troca de olhares, um campo/contracampo, como se usa? Reunir aquilo que de forma alguma se reúne? Wong Kar-wai recorre então a um procedimento requintadíssimo, e de quebra brinca com um dogma do raccord de olhar, em que dois atores num campo/contracampo olhando para o mesmo lado (no caso, para a direita) jamais dariam a impressão de um contato visual. Naturalmente, em (1) e (2) Wong utiliza a posição do quadro panorâmico e a diferença entre extremidades de quadro dos personagens para "encher" e justificar visualmente o contato de olhos dos personagens. Ainda assim, no entanto, o corte sugere um sabor amargo, um olho no olho que pode se dar espacialmente pela construção na montagem, mas que não existe sentimentalmente: a situação no filme corresponde ao momento em que Zhang Ziyi, no começo distante, finalmente revela sua paixão por Tony Leung, e nesse exato instante ele passa a repeli-la, dando a todo seu flerte a característica de um puro jogo de sedução.

Há fissuras que se instalam, há fissuras que – paradoxalmente – ligam. Depois de uma hora de Amantes Constantes, Louis Garrel, numa festa, conhece (ou reconhece, uma vez que se viram nas barricadas de maio de 68) Clotilde Hesme, jovem como ele, partilhando dos mesmos sonhos de liberdade e arte que ele. Empatia imediata, o magnetismo se instala. Mas como distinguir entre uma atração fortuita e um sentimento sólido, como filmar o preciso momento em que a cabeça estala e alguém começa a significar mais do que as outras pessoas à volta, mais que o resto dos mortais? O plano (1) instala a presença, o aconchego, a proximidade física, e daí Garrel corta para um plano estranho, individual de Clotilde Hesme (2), que perscruta ou parece perscrutar sua essência, seu mistério. Por um instante, fração de segundo, pluft, tela preta que corresponde a (3) e faz com que (4), continuação de (2), surja como uma aparição, encantada, brilhante, remetida às sombras e de lá saída com todo o vigor, figura imantada, e em (5) só vai restar a Louis Garrel aparecer no quadro, povoar a solidão da fada e reconhecer a evidência: "Você é muito bonita". Ao fim da seqüência – e a progressão do filme irá corroborar –, perceberemos que de (2) a (4) o que vemos são planos "interiores" de Louis Garrel (em oposição a "subjetivos", que só designam a posição da câmera), seu tempo, o relato do instante em que ele se apaixonou. Detalhe, momento íntimo, sutil, ele só existe pela delicadeza de um retoque mínimo, e isso faz toda a força de sua beleza. Menos engenho que feeling, menos esforço que expressão, menos mimetismo psicológico do que construção de um sentimento de cinema, o efeito provoca um desses momentos de turbilhão que, como em Michael Mann ou Wong Kar-wai, justificam todo o cinema e mostram como ele está intimamente ligado à vida, de forma transitiva, e como alguns encontros num ano aquecem, fortalecem e cantam a vida. T'es vraiment belle!

Ruy Gardnier

 

 





Miami Vice (1)


Miami Vice (2)


2046 (1)


2046 (2)


Amantes Constantes (1)


Amantes Constantes (2)


Amantes Constantes (3)


Amantes Constantes (4)


Amantes Constantes (5)