Dia
6: Conceição – Autor Bom é Autor Morto,
de Daniel Caetano, Guilherme Sarmiento, André Sampaio,
Cynthia Sims e Samantha Ribeiro (Brasil, 2006)
Em vários sentidos, Conceição é uma enganação.
Contra toda mitologia criada em torno dele nos dez
anos que levou para ficar pronto, essa lenda do primeiro
longa-metragem universitário brasileiro, feito em condições
de produção totalmente adversas, sem patrocínios, sem
dinheiro, sem estrutura, o que nos fazia dar como certo
que toda essa precariedade acabaria eventualmente sendo
levada à tela, e que tudo não poderia passar de um
exercício de cinema engraçado-porque-tosco, nos aprontam
uma dessas: um filme incrivelmente bem realizado, em
certos momentos quase virtuoso (ou alguém se lembra
de cena mais bonita que aquela em que o grupo de autores
reunidos em volta de uma mesa de bar fuma um baseado
no escuro, quando o fotógrafo Marcio Menezes tira sua
fonte de luz unicamente do brilho laranja que o cigarro
projeta nos rostos de cada um?). Outra falácia é a
da diluição narrativa nas mãos de cinco diretores diferentes,
o que sugeria um apanhado de esquetes apenas frouxamente
conectadas. Pois Conceição, tão modernamente, é um
filme de projeto, que se dispõe a andar por onde quer
que seus diretores desejem mas que, ainda assim, nunca
perde sua consciência de todo, porque aqui coisas são,
de fato, ditas, há uma vontade de discurso que trará toda
loucura explosiva para um certo caminho já muito bem
traçado. Esse caminho, aliás, é o que nos relativiza
o impacto do subtítulo do filme, porque se o epíteto
irá se confirmar literalmente na chacina final que
dizima todos os jovens autores reunidos, a idéia de
uma autoria, de um pensamento constituído em imagem
a partir de uma plataforma artística consciente de
sua própria construção, nunca foi descartada. Antes
de autores, o cinema em que Conceição acredita é o
dos filmes autorais, que respondam sozinhos por sua
existência.
Essa idéia de inteireza, que desloca a sugestão de
um pensamento do produtor para o próprio produto, é o
que torna Conceição tão unitário e, maior engano
de todos na previsão anterior à visão, tão conseqüente.
Como no ovo frito na chapa suja do boteco em que bebem
os autores, e que serve de ampulheta da narrativa,
atravessando seu preparo por todo o filme, não há inconsistência
que resista ao trabalho do fogo, e na verdade, é pela
possibilidade de consistência no fim do processo que
vale a pena jogar todos esses elementos fluídos numa
chapa e vê-los tomar forma.
Mas, estranhamente, é contra a própria idéia da submissão
que os personagens criados por esse grupo de jovens
se rebela, e há em Conceição, no modo como se
esforça para confirmar seu subtítulo, uma compulsão
parecida. Daí que os melhores momentos do filme sejam
aqueles que conseguem escapar justamente da certeza
de um destino, momentos de insubmissão absoluta (radicalizada
a proposta de autoria orgânica, os filmes que cada
um dos personagens imagina para si, e que são assumidos
por Conceição como se imagens suas fossem, são
mais interessantes que o filme que se faz sobre o momento
em que essa imaginação acontece). Figura-símbolo dessa
pulsação paralela é o justiceiro que Jards Macalé interpreta,
evoluindo por espaços diversos de maneira completamente
escorregadia, um personagem que equilibra a matança
violenta do final com o número musical de voz e violão
sentado numa pedra, sem nunca obrigar-se à síntese
de um com o outro.
Esse jogo de opostos (resistiremos bravamente à idéia
de “dialética”), muito mais que seu modo de produção, é o
que torna Conceição tão estranho àquilo que
vemos no cinema brasileiro atual, algo que confirma
integralmente aquela disposição inicial de localizar
a autoria no próprio filme, de modo que essa lógica
interna cuide de perguntar, responder e provocar um
bloco e outro, sem anulá-los. O discurso unitário e
conseqüente consegue, ainda assim, divertir-se com
aquilo que a dispersão e a inconseqüência trazem à mesa,
eventualmente até se deixando contaminar por ela (os
flashes de um telejornal constante ao longo do filme
pertencem à “realidade”, estão sendo exibidos na tevê do
bar onde estão os autores, e ainda assim provocam as
piadas mais absurdas e engraçadas). E assim, o filme
de culpabilização social se relaciona ao filme militante, a perseguição
fluída de uma steadycam conversa com a rigidez
da decupagem em planos fixos e bem compostos, a piada
escatológica é precedida de um depoimento documental
sinceramente amoroso. Todos esses filmes convivem em Conceição,
e se permitem preencher por todos os outros que o olhar
sobre eles fatalmente gerará. Depois de anos de trabalho,
André Sampaio, Cynthia Sims, Guilherme Sarmiento, Samantha
Ribeiro e o nosso Daniel Caetano, contra aquilo que
todo o projeto e a estrutura narrativa fazem supor,
nos mostram um filme que não está pronto, e que nunca
estará. Porque cada plano é uma chance de outro, porque
cada nova visão é a certeza de chegar onde ainda não
se havia estado, e aqueles que, diante dele, estiverem
de sapato, talvez realmente não sobrem.
Rodrigo
de Oliveira
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