FAHRENHEIT 451
François Truffaut, Inglaterra/França, 1966

Logo no começo de Fahrenheit 451, os créditos de abertura estão lá, mas não os lemos. Um narrador nos informa a ficha completa da equipe, atores, técnicos, diretor, sob imagens coloridas de diversas antenas de tevê espalhadas pelos telhados da cidade. Ali já sabemos que Truffaut quer colar a experiência de seu filme àquela mesma vivida no universo interior da narrativa, e se os personagens deste mundo futurista não podem ter acesso a qualquer tipo de material escrito, também o filme não o terá. Mais do que uma esperteza do diretor (o que não seria uma exceção, pois várias delas estão espalhadas por aqui), esta seqüência de créditos dará o tom da aproximação pretendida a essa história, na época já “mundialmente famosa” através do best-seller de Ray Bradbury. Interessa aqui menos uma fidelização ao relato original, onde acompanhamos o tormento de um agente da repressão que se vê envolvido com o próprio objeto que deveria combater, e mais a captura desta certa atmosfera atormentada que o trajeto do personagem criaria em torno de si. Não é à toa que este mesmo trajeto sofrerá uma alteração fundamental na relação entre livro e adaptação cinematográfica. Se com Bradbury já estaremos desde o começo instalados na perturbação de Guy Montag, ainda sem muitas razões mas claramente apontando para uma grande revolução pessoal (a primeira frase diz “Queimar livros era um prazer”, com o verbo no passado), Truffaut irá apresentar seu protagonista como um legítimo soldado do regime, obediente aos mandos de seu capitão, referindo-se a si mesmo na terceira pessoa, cumprindo o dever de queimar livros com o prazer atualizado pelo tempo presente. Contra a narrativa vertical, o arco: uma transformação percebida pelo filme, de homem cego pela lei equivocada a defensor da causa literária, Fahrenheit 451, dantesco, vai do inferno ao paraíso, quer o elogio da iluminação.

Aquilo que Truffaut percebera como um clima repressor será integralmente absorvido pelo tecido do filme, e a operação conseqüente àqueles créditos iniciais falados será a filiação de Fahrenheit a um gênero clássico, ao suspense. A influência de Alfred Hitchcock é decisiva, e estamos aqui no início da relação pessoal que desembocaria na grande entrevista-livro lançada algum tempo depois, mas nem era preciso tanto. A trilha sonora ostensiva de Bernard Hermann, o modo de encenar seqüências banais como se por trás de cada uma houvesse a chave para o mistério da trama, até mesmo algumas citações literais, tudo está lá para anunciar esta grande influência, e também deixar evidente o quão difícil ela torna a vida do influenciado. Como repetiria dois anos depois na tentativa mais declarada de aproximação com o mestre, em A Noiva Estava de Preto, Truffaut se atrapalha incrivelmente nas cenas de alguma ação, e se em 1968 transformaria a crueldade de Jeanne Moureau ao empurrar um amante sacada abaixo em um momento quase-cômico, aqui torna o ataque vingativo de Oskar Werner contra seu chefe em um exercício de como não se decupar uma rajada de lança-chamas.

E como nesses detalhes de realização, todo o filme estará envolvido por uma série de primarismos; o peso do gênero, afeito a regras e esquemas restritos, será eventualmente grande demais para que qualquer tentativa de respiração própria possa ter algum efeito. Há um paradoxo fundamental no livro de Bradbury que passa ao largo de Truffaut. Contando uma história onde a literatura é perseguida e destruída por sua possibilidade de informação e elevação intelectual, a própria existência do livro no qual esta história aparece já é, por si, uma espécie de resistência, uma afronta a esse regime imaginário e tão assustadoramente possível, uma defesa tácita e eficientíssima daquilo que a trajetória de Montag pretende significar. Em Fahrenheit 451, o filme, somos lembrados o tempo inteiro da grande importância que os livros têm na história da humanidade, num exercício de tautologia pedagógica que beira a histeria (ou como poderíamos entender a cena em que, revoltado com a letargia da esposa e de suas amigas diante da televisão, Montag põe-se a ler um trecho de um romance para que, milagrosamente, uma daquelas mulheres finalmente se emocione e chore, depois dos anos de anestesia de sua sensibilidade pela falta da poesia?).

Diagnosticar o futuro com males que estão na pauta do presente é uma constante na maior parte dos filmes que se arriscam na previsão. Mesmo o Alphaville, do parceiro de geração Jean-Luc Godard, realizado um ano antes de Fahrenheit, sofre desta valorização desmedida de suas próprias profecias sobre o mundo. Mas lá, antes do conteúdo alarmista, da bandeira agitada, estava na linha de frente a própria impossibilidade de uma mise-en-scène do futuro que não se impusesse os problemas do presente (diante de uma longa cena de conflito entre Eddie Constantine e Anna Karina num quarto de hotel, o que parece estar em questão não é o pesar da confirmação destrutiva deste mundo pós-apocalíptico, mas sim se este mesmo pendor para o cataclismo impedirá também a existência de planos-seqüência tão nervosos quanto aquele). Truffaut, ao contrário, é vítima da mensagem. Não perde a piada de ver o Capitão Beatty dizer, com consternação, que todos os livros precisam mesmo ser queimados, até mesmo aqueles que os servem tão bem, como o Minha Luta de Adolf Hitler que segura com uma das mãos nesse momento, porque é importante não deixar em suspenso que todos aqueles bombeiros empertigados são nazistas de primeira classe. Tudo acaba sendo, no fim das contas, uma questão de repertório. Chegando ao trecho final, no paraíso dos homens-livro, que abrigam todo o conhecimento do mundo na memória dos textos que decoraram, vemos que Fahrenheit 451 debateu-se, sempre, com sua própria capacidade de não só saber de cor e salteado certos textos (cinematográficos), mas também de conseguir repeti-los à imagem e semelhança da obra original quando o momento de reabertura chegasse. Precisamos de alguma boa vontade para recordar todos os Beijos Roubados, Os Incompreendidos, Jules e Jim e Duas Inglesas e o Amor de que dispusermos, porque diante de Fahrenheit 451 somos levados a crer que François Truffaut, afora todos esses grandes filmes que já fez, nunca foi propriamente um homem-cinema.


Rodrigo de Oliveira

(DVD Universal)

 

 









Antenas de TV espalhadas pelos telhados da cidade:
a conexão com o mundo não se dá mais por material escrito