PERFUME - A HISTÓRIA DE UM ASSASSINO
Tom Tykwer, Perfume: the story of a murderer, Alemanha/França/Espanha, 2006


Curioso que o subtítulo desta transposição do romance de Patrick Süskind para o cinema seja “a história de um assassino”, visto que o ato de matar tem tão pouca importância para a narrativa de Tom Tykwer – que parece mais interessado em fazer com que a história seja conhecida em seus traços principais do que conceder substância a gestos ou sensações. A narração em terceira pessoa, que conduz o filme boa parte do tempo, busca articular tudo aquilo que, às imagens, custaria muito contar (em duração e em expressão cinematográfica). Não apenas pela grande quantidade de acontecimentos que a prosa pode articular sem problemas e que Tykwer procura manter, como pela própria natureza etérea e impalpável do principal elemento dramático – o olfato do personagem. Assim sendo, todas as informações necessárias para seguir adiante são jogadas em palavras e o diretor se desdobra em histerias da forma, fazendo sua câmera metaforicamente flutuar e percorrer caminhos no ar, para simbolizar os odores que Jean-Baptiste Grenouille percebe.

Conhecemos a sensibilidade do personagem, portanto, não pela dedicação do filme em fazer sentir, mas por sua preocupação em fazer entender. Toda a relação de Grenouille com o mundo (sensorial e socialmente), um dos eixos importantes da história, é, pois, resumida ao que o narrador informa sobre ela. É assim que a obsessão em preservar os odores das mulheres torna-se uma motivação quase óbvia do decorrer da vida do personagem e a narrativa segue sem suspense ou tensão em relação aos acontecimentos, como se seu desenrolar já estivesse prefigurado. Para o triunfo do Grenouille-herói, que deve cumprir estas “predeterminações” intuídas pelo filme, somos inclusive levados a torcer, a despeito do caráter de suas ações.

Há em Perfume este quê incômodo, para além dos expedientes narrativo-formais duvidosos: a obsessão mórbida do personagem tornar-se absolutamente factível e até justificada pelo seu admirável dom, que o afasta da civilização e o aproxima de uma condição quase sobre-humana. Grenouille é retratado como um homem excepcional pela sua proximidade com a natureza e genial pela forma como une a seus impulsos um raciocínio aguçado. Toda a sua frieza, egoísmo e misantropia são relevados em nome de uma espécie de naturalismo, de volta a um estágio primitivo de relação vital com os sentidos e instintos.

O que poderia haver de transgressor nessa figura é anulado, porém, por estas imagens que nos trazem um Grenouille sempre confiante, soberbo, orgulhoso e quase-consciente de seu valor – para a narrativa, antes de tudo. O contraste entre a pobreza e a riqueza, entre o submundo que o originou e a nobreza que ele aspira “capturar”, parece ser apenas uma figuração – um fetiche visual do sujo decadente e do belo asséptico – e nunca um fator sócio-econômico que implica em valores, em forma de viver e relação com o mundo. O que dizer então da seqüência final, em que o esforço aniquilador deste homem é revertido em um momento único de “despertar da natureza” de todos os presentes, que há um segundo queriam ver jorrar seu sangue? Afinal, em nome do sublime – de um segundo no paraíso – e do rompimento com as amarras da civilização (leis de comportamento, sensorialidade prescrita), o que significa a vida de algumas mulheres?

Infelizmente, Tom Tykwer não encontra ironia mais ampla nisto, pois faz Grenouille, esse ser praticamente não-humano, pairar acima de todos os outros. Seu dom, uma inesperada potencialidade extremada de uma característica humana, que, por caminhos tortos, o faz se voltar contra a humanidade, não é sinal de perversão ou de problematização do sentido de humanidade. E o que poderia incorrer em contestação e colocação em crise dos valores da burguesia e da “civilização” (o perfume, símbolo elogiado da manutenção de aparências que são puro efeito, expondo a natureza mais bruta e animal das pessoas), apenas exalta o poderio particular do personagem, vinculado de forma intensa à natureza. Uma natureza, no entanto, estranhamente avessa à vida.


Tatiana Monassa