MAIS ESTRANHO QUE A FICÇÃO
Marc Forster, Stranger than Fiction, EUA, 2006

Quando resolve viver a vida, depois da descoberta de que vai morrer, Harold Crick vai ao cinema. Na tela, vê O Sentido da Vida, do Monty Python. É uma comédia. Uma das mais celebradas já feitas, aliás. Ele ri. Será a única vez que rirá no filme.

Momento sugestivo em um filme que é supostamente também uma comédia. Mas, veja: é uma comédia cujo protagonista acaba de saber que vai morrer. Em que, apesar de mostrar-se feliz nos momentos em que se encontra com sua amada, esse protagonista não ri. No filme, ele ou está perplexo ou está de fato arrasado diante da perspectiva da morte. E, de fato, há pouco do que rir em Mais Estranho que a Ficção. Não por uma suposta ineficiência de sua operação cômica, mas é porque ele é montado mesmo como uma comédia triste. Aliás, de comédia, o filme guarda mais a definição estrutural, a idéia de subversão da lógica do drama e da tragédia. No horizonte, então, coloca-se um conflito sobre que estatuto dar aos acontecimentos, no horizonte de uma padronização: notícias de morte são para fazer chorar, ainda que num ambiente de riso. Enterro de palhaço também traz luto ao circo.

E uma operação metalingüística está não apenas nessa construção estrutural que coloca no filme cenas mais torcidas para o lado do absurdo do que da gag (como a da demolição da fachada do prédio por engano ou os encontros com o professor de literatura ou mesmo a própria apresentação do inusitado plot). Essa metalinguagem transparece também, por exemplo, no casting, ao se utilizar Will Ferrell, sobre quem pesa uma imagem muito mais forte como comediante do que como ator, e Queen Latifah, que tem ocupado papel de alívio cômico em comédias e dramas e fez de seu rosto uma imagem familiar ao riso.

Se essa operação de casting, entretanto, ocupa um lugar de clichê em um universo de elencamento que, no cinema americano, tem feito o trânsito de comédia para drama para atores associados ao primeiro gênero - com Jim Carrey, Adam Sandler e Jack Black como exemplares mais habituais e recentes dessa mecânica -, ela ao mesmo tempo se torna um dos elementos mais determinantes na operação do filme. Chapliniano/keatoniano, Ferrell se dá ao filme como um elemento de um sistema, mais do que como ator. Por mais, inclusive, que ele imprima dramaticidade ao papel - a cena em que ele se resigna a morrer pelo bem do livro é feita sem nenhum exagero e não poderia mesmo ser considerada uma situação cômica -, é pelo jogo duplo de atuação-dramática-de-ator-de-comédia que se dá tal funcionalidade.

É, então, uma metáfora sobre a morte e sobre como sobreviver a sua eminência: em certa medida, Harold Crick poderia ter câncer ou ser um condenado, sua reação em busca da autora não é muito diferente da de um enfermo que busca a cura ou de um executando que busca por clemência. E é uma tentativa de uma narrativa doce - porque fantasiosa - sobre ela. E não porque seja um filme “existencialista”, mas porque ele faz uma eficiente articulação entre vida e mitificação, a partir justamente do jogo com a disparidade entre timing de comédia e timing de drama.

Uma boa demonstração disso é a cena em que a escritora descobre que seu personagem existe. Inconsciente do fato de que escreve a história de um personagem que existe de fato - e sobre cuja vida (e morte) ela desconhece ter poder - ela, ao mesmo tempo, ao escrever a passagem derradeira de seu livro, parece saber, parece participar de um plano determinado: o telefone toca em resposta a sua datilografia. Toca mais uma vez. Mais outra. Ela pede que a assistente não atenda. Ela mesma resolve atender. Autora, mas também determinada por um outro autor.

Trata-se, então, de uma tragédia, no sentido grego. O protagonista se digladia com o destino, com as determinações superiores, sem que haja um antagonista formal. Ao mesmo tempo, sua única fonte de delícia é a mesma fonte de terror: é a morte que lhe abre as portas para o amor. Há, entretanto, um outro hemisfério no filme e que soa inexplicável. A mise en scène aposta em uma visualidade a começar límpida, iluminada e, um passo adiante, por um conjunto de anotações visuais com uma nítida lógica digitalizante. Se colabora para a atmosfera de irrealidade que se quer imprimir para promover a ambigüidade entre narrativa ficcional e narrativa real(ista), o recurso ao mesmo tempo dá ao projeto visual do filme uma forte incoerência. A uma autora que escreve seu livro em uma máquina de escrever, a direção de arte junta ícones de feição computacional. É como se todo o universo do filme estivesse embarcado em um Macintosh. E isso vai além, chega à semiose: produz um efeito semelhando ao de vermos um avião a voar em um filme passado no século XVIII.

Além disso, filme-para-toda-a-família, ele não consegue escapar da conclusão edificante. Por isso, fecha-se ao trágico e, ao mesmo tempo, às possibilidades que a exploração da morte iminente abrem, sobretudo em uma história dotada de licença por se ambientar no plano do fantasioso.

Parece ser o problema desse novo gênero comédia-dramática-americana-do-absurdo (uma fauna de seres como Quero ser John Malkovich, Adaptação e Brilho Eterno de um Mente sem Lembranças, os três roteiros de Charlie Kaufman, ou, anteriormente O Show de Truman): parte-se de um plot absolutamente inusitado, mas não se mantém a coragem de sustentar o absurdo, o plot habitualmente se converte em racionalização. Mesmo que isso não tenha exatamente comprometido nenhuma dessas obras, parece ser o grande problema de Mais Estranho que a Ficção, o que mais radicalmente cede à imposição de limites.


Alexandre Werneck