DIAS SELVAGENS
Wong Kar-wai, A Fei jing juen, Hong Kong, 1991

Logo no começo de Dias Selvagens, Yuddy (Leslie Cheung) seduz Su Lizhen (Maggie Cheung) ao convencê-la de que eles sempre se recordarão daquele minuto que passaram juntos. É a seqüência-chave do filme, aquela que assombra todo o resto da ação. É também a seqüência-chave de todo o cinema de Wong Kar-wai.

Parte do prazer de Dias Selvagens talvez resida justamente na impressão de que a habilidade do cineasta em captar à perfeição a textura de um momento fugidio encontrou pela primeira vez sua completa expressão. É seu segundo longa, mas o primeiro onde teve completa liberdade e começou a experimentar com seu método peculiar de filmar e posteriormente dar forma ao material. Permanece também de certa maneira seu melhor e mais direto filme. A cada seqüência temos a impressão de um momento capturado, observado e imaginado nos seus menores detalhes. Basta ver as cenas de Su Lizhen trabalhando no bar do estádio ou qualquer momento com o personagem de Jackie Cheung, que em poucos minutos de tela registra sua presença de forma tão forte quanto os protagonistas.

Dias Selvagens é um filme cruel. Sua lógica é a do desejo abortado na forma de um círculo de rejeições. Praticamente logo depois que Yuddy e Su Lizhen têm seu minuto, eles já estão a brigar meses depois – seu romance todo perdido numa elipse. Dias Selvagens tem só algum tempo para sedução e nenhum para romance. Apesar de sua reputação de sedutor, o cineasta sempre filma Yuddy pós-coito, exausto, os pensamentos bem distantes de quem quer que seja a mulher ao seu lado. A única que realmente lhe interessa é a mãe cuja identidade desconhece, e que quando ele finalmente localiza se recusa a vê-lo.

Com a possível exceção de Amores Expressos, uma certa atmosfera de desespero sempre foi ingrediente essencial do cinema de Wong Kar-wai, mas apenas aqui e em 2046 (o filme a que Dias Selvagens mais se assemelha) ela encontra expressão total. Até a própria estrutura do filme reforça esta impressão, sugerindo que cada um daqueles momentos isolados, por mais vividos que possam ser, somam-se muito pouco uns nos outros. A Hong Kong de Dias Selvagens é uma metrópole fantasma. Não sei se a lenda de que se trata de uma das produções mais caras do cinema de Hong Kong é verdadeira, mas o cineasta não gastou um centavo com extras; Maggie Cheung e Andy Lau podem caminhar sem rumo pela noite de Hong Kong com a certeza de que não encontrarão uma única alma.

Dias Selvagens é um filme incompleto. De todas as tentativas do cineasta de achar um equivalente cinematográfico para a literatura argentina (em especial Manuel Puig – o montador Patrick Tam apontou que a principal inspiração do cineasta para este filme foi Boquitas Pintadas), Dias Selvagens é o mais bem sucedido com sua ação passeando por um período pouco superior a dois anos, sem que nunca tenhamos certeza de quando o próximo take se passará. Para além das suas múltiplas elipses, o filme é literalmente incompleto, tendo sido originalmente planejado como a primeira metade de um filme em duas partes, projeto cujo complemento nunca chegou a ser filmado devido ao fracasso comercial do primeiro. O que sobrou deste segundo filme é apenas a seqüência final de Dias Selvagens, com um jovem Tony Leung se preparando para sair na noite. É um dos grandes momentos do cinema de Wong Kar-wai, uma silenciosa seqüência de cerca de três minutos que nos emerge por completo neste personagem sem nome enquanto ele faz as unhas, coloca um casaco, pega dinheiro e um baralho e penteia o cabelo. Leung já declarou em entrevistas de que esta é sua melhor atuação, a despeito dele não ter nenhum dialogo, e de tudo que sabemos sobre seu personagem ser comunicado por algumas ações mundanas; mas este é exatamente o apelo concreto da seqüência, que só nos oferece o que está bem diante de nossos olhos.

Ainda assim, Dias Selvagens acabou sendo posteriormente “continuado” com Amor à Flor da Pele e 2046, e agora que os três filmes estão mais facilmente disponíveis para o espectador brasileiro, podemos ganhar muito tentando vê-los em seqüência, já que os filmes se complementam de formas muito interessantes e não apenas na maneira como personagens ressurgem de um filme ao outro (como a Mimi de Dias Selvagens a relembrar Yuddy em 2046). Vale a pena observar como a relação com os anos 60 em Hong Kong, por exemplo, vai lentamente se transformando filme a filme: do período que existe antes de mais nada como uma idéia, em Dias Selvagens, até a imersão completa com a História, em 2046. Vistos juntos, eles formam um vasto e belíssimo épico histórico sobre o sentimento de perda de Hong Kong.

Filipe Furtado