DÉJÀ VU
Tony Scott, EUA, 2006

Dublê de Corpo

Sejamos claros: Déjà Vu é um filme ridículo. Seu andamento dependente de um sem número de absurdos e de uma premissa justificada através de algumas explicações científicas constrangedoras. Déjà Vu é um filme de imagens profundamente deselegantes, imagens de superfície, saturadas, completamente decalcadas. Enfim, é um filme de Tony Scott, este autor marginalizado, criador de corpos virtuais, cujos filmes parecem existir numa espécie de último estágio de putrefação da imagem. O que por vezes se esquece é que existe verdadeira inteligência e obsessão autoral no cinema de Scott; ainda mais importante, há um verdadeiro sentido de integridade estética no seu projeto de cinema que em seus últimos três filmes parece ter alcançado uma perfeita depuração. Por trás de toda sua vulgaridade e grosseria, os filmes de Tony Scott são genuinamente experimentais. O que era o anterior Domino, se não um ensaio avant-garde sobre imagens de mídia e representação feito num orçamento de quase blockbuster? Posso quase ouvir a risada do leitor diante de tal descrição, mas ignorar o trabalho estético de Tony Scott é voltar as costas para alguns dos desenvolvimentos potencialmente mais interessante e experimental da imagem cinematográfica em seu estatuto mais comercial. Já está mais do que na hora de percebermos que Déjà Vu e Domino estão mais próximos de um Peter Tscherkassky – outro grande cinepoeta das imagens decalcadas – do que de um Piratas do Caribe.

Déjà Vu é vários filmes: um romance fantasmagórico à Laura, um sci-fi de viagem no tempo, um ensaio sobre os mecanismos da imagem inspirado em Um Corpo que Cai, um filme nostálgico sobre o trauma do terrorismo e, claro, uma produção de Jerry Bruckheimer cheia de coisas explodindo. No seu centro está um completamente absurdo laboratório de alta tecnologia, nele alguns cientistas do governo americano trabalham com um programa de computador que permite monitorar os acontecimentos quatro dias e seis horas atrás. Uma espécie de máquina do tempo imagética, que permite a quem a opera selecionar o que vê, mas apenas num momento específico. Tudo em Déjà Vu deriva desta máquina. Trata-se de uma idéia simples e engenhosa, de múltiplo valor simbólico, do qual Scott tira o máximo possível.

Uma boa porta de entrada para o filme talvez seja justamente pensarmos seu título. Não há nenhuma alusão direta ou função narrativa para a expressão déjà vu: ela existe exclusivamente como um bom gancho de significado para as diversas operações realizadas por Scott ao longo de seu Déjà Vu. Após um atentado terrorista, a única pista disponível aos agentes governamentais é o assassinato de uma mulher aparentemente ligado ao atentado; seguir o cotidiano dela ao longo dos seus últimos quatro dias de vida se torna o melhor meio de descobrir evidências que levem ao responsável. Durante a maior parte do filme, Denzel Washington apenas senta e assiste a estas imagens geradas pela máquina (ironicamente apelidada Branca de Neve).

Este atentado inicial nos é apresentado por Scott numa seqüência de cerca de dez minutos quase desprovida de diálogos, que funciona como grande momento cinematógrafico mais tradicional antecedendo a entrada do filme no universo típico de seu autor. Em constraste com sua sequência inicial, as imagens de Branca de Neve são filtradas e recortadas no tom bem típico de Scott (não que o atentado fuja por completo da obra do cineasta, mas notamos ali um grande esforço para produzir um tipo de cinema puro pouco habitual em seus filmes). Nos cinqüenta anos que separam Um Corpo que Cai de Déjà Vu, televisão e publicidade substituíram o cinema no nosso imaginário visual, portanto o que vemos nas imagens de Branca de Neve não deixam de fazer muito sentido. Em 2006, talvez a melhor metáfora para o nosso inconsciente visual coletivo seja mesmo uma espécie de televisão ao vivo quatro dias no passado filmada como peça publicitária. Como uma representação de cinema, Branca de Neve não poderia ser mais humilde e mais próxima da impotência do olhar do espectador que do domínio do autor: aos operadores da máquina resta torcer para captarem a imagem precisa no exato instante que ela ocorre, já que é possivel reenquadrá-la, picotá-la, filtrá-la à vontade, mas não voltar o relógio, não transformar o material inicial. Branca de Neve se propõe como uma verdadeira janela para um passado concreto, mas suas imagens estão bem distantes disso e revelam aonde jaz o cinema de Tony Scott. É no estágio da imagem imaterial e virtual que o cinema de Scott reside, tentar se engajar diretamente com os corpos que ela representa significa dar o salto definitivo para o terreno da ficção científica, ainda que um movimento necessário.

A arte de Tony Scott sempre foi uma arte de animar uma imagem morta e desgastada, e encontra aqui portanto seu momento mais expressivo: o cotidiano de uma mulher morta, mas ainda assim viva. Um corpo artificial cadáver tanto numa mesa de autópsia (nossa introdução a ela) quanto ao escovar os dentes no banheiro. Ainda assim por trás de filtros de falso capaz de gerar a fascinação que permite ao filme existir neste terreno do romance fantasmagórico. Que seu espectador fiel se apaixone por ela é conseqüência óbvia (não é como funciona nosso próprio romance com o cinema?). Claro que após abandonar seu truque metalingüístico, Déjà Vu mantém seu jogo de imagens assombradas. Quando Washington, de volta ao passado, finalmente se encontra com a vítima, sua primeira reação é perguntar você não se lembra de que apertamos as mãos uma vez?, referindo-se ao seu encontro na mesa de autópsia, completamente incapaz de articular a diferença entre virtual e real. Os corpos nos filmes de Scott são afinal intercambiáveis como o belíssimo final romântico em que um novo Denzel Washington substitui o antigo. Quando Brian De Palma atualizou Um Corpo que Cai como um thriller softcore ele ainda podia lidar com a idéia de uma mulher que dubla a outra; a Scott mesmo este referente é negado. Este apagar de referência no universo das imagens gera a seqüência mais inspirada do filme (e talvez o momento maior do expressionismo de Tony Scott), uma perseguição de carros que se realiza em duas esferas temporais com Denzel Washington perseguindo a imagem do terrorista no passado enquanto causa progressiva destruição na rodovia no presente. A cada instante menos consciente do estrago que causa à sua volta e mais envolvido com a perseguição de ficção (ponto reforçado quando no meio da sequência Washington perde o referente visual e passa a ser apenas guiado pela narração que recebe via rádio). É como se a segunda metade do subestimado Chamas da Vingança fosse concentrada em gloriosos e selvagens quatro minutos com a obstinência do bom soldado Denzel Washington (com todas as qualidades hawksianas do melhor herói do cinema americano) sendo usada como antena amplificadora do desastre inicial.

A busca por este referente para ancorar estas imagens decalcadas é a ambição final de toda a parte madura da obra de Tony Scott. Desastre é uma regra no Scott tardio, aqui amplificado pela decisão de localizar o filme em Nova Orleans, cuja paisagem, ainda afetada pelo furacão Katrina, serve de lembrete de que desastres contemporâneos nâo se resumem ao terrorismo. Assim como a evocação constante de Oklahoma City devolve à história o fato de que terrorismo não passa apenas pelos suspeitos de sempre do governo americano (por sinal, escalar o nosso Jesus Jim Caviezel como o terrorista de extrema direita do filme só nos lembra como Tony Scott é um mestre do casting). No centro de Déjà Vu se encontra um desejo por um retorno para um momento pré-11 de Setembro, por um mecanismo que permitisse tornar terrorismo reversível. Neste sentido, o filme se assemelha bastante ao Minority Report de Steven Spielberg, mas enquanto Spielberg confude imagem com narrativa e se perde numa individualização da questão, Scott espertamente usa a premissa apenas como uma porta de entrada para uma alegoria sobre responsabilidade. Buscando conciliar suas imagens com história, desastre com responsabilidade. Como ensaio contemporâneo sobre nossa herança imagética coletiva e história, Déjà Vu (e Domino) só tem como rival no cinema americano recente o Femme Fatale de De Palma, mas aquele filme se apresentava num mais digerível ensaio discursivo godardiano. O filme de Scott certamente se sente mais à vontade colocado ao lado do trabalho de nomes como Peter Tscherkassky ou Pat O’Neill, em que um sentido corrente das imagens é apresentado de forma mais abstrata. A crítica cinematográfica brasileira herdou da francesa um histórico de dificuldades de lidar com o genuinamente abstrato em cinema e nisso o cinema de Tony Scott acaba perdido como intercambiável com o resto da obra do seu produtor, mas para apreciá-lo basta ver.


Filipe Furtado