"A PARTIR DE AGORA,
VAMOS FALAR EM ESPANHOL"

Sobre a Mostra Sci-Fi Mexicano no Festival do Rio

A frase acima, utilizada como título desse artigo, foi extraída de uma emblemática seqüência de Santo contra a Invasão dos Marcianos (Alfredo B. Crevenna, 1965). No momento em que os extraterrestres vão aterrissar a espaçonave na Terra, mais precisamente na República do México, o líder ordena aos seus asseclas: “a partir de agora, vamos falar em espanhol”. Nenhuma outra frase proferida nos diálogos dos cinco filmes que foram exibidos na mostra O Futuro nos trópicos – El Futuro más Acá poderia ser mais pertinente para definir a significativa produção do gênero ficção-científica dentro da cinematografia mexicana. Pouco estudada, parcamente citada e praticamente excluída da historiografia clássica do cinema mexicano, essa produção, que chega por volta de 50 títulos, foi um absoluto sucesso popular nas décadas de 50 e 60. O cinema fantástico mexicano, e aqui incluímos o também vastamente explorado filme de Terror, é freqüentemente considerado pela crítica e pela academia mexicana como uma vertente menor, uma fórmula “importada” que aplicada à realidade nacional não teria alcançado, como o melodrama e a comédia, maiores relevâncias. O cinema latino-americano dos anos 40 e 50 é catalogado pela historiografia como essencialmente mimético em relação ao cinema hegemônico norte-americano. As tentativas industriais ocorridas nos estúdios da Cidade do México, de Buenos Aires e de São Paulo foram o resultado de um desejo de transplantar para as nossas principais metrópoles não só o modo de produção hollwoodiano e o star system, mas também um extenso material simbólico e iconográfico. Se gêneros também “importados” como o melodrama e a comédia (que ganhou no México várias roupagens, entre elas a da comédia rancheira) foram capazes de, mesmo partindo do mimetismo, alcançar uma “cor local”, o mesmo, segundo os críticos, não se podia dizer do cinema fantástico.

Antes de qualquer coisa, seria necessário compreender o que esses críticos entendiam como “cor local” e de que forma eles desejavam que ela se expressasse. A partir daí, é lícito percebermos as especificidades de cada gênero cinematográfico e como cada um deles, a seu modo, a expressa. Tanto o melodrama quanto a comédia transitam por registros bastante diferentes dos levados a cabo pelos subgêneros do cinema fantástico. A comédia e o melodrama se inserem em esferas domésticas, se gesticulam no âmbito do cotidiano e os seus personagens protótipos articulam uma linguagem corrente mais próxima do dia-a-dia. A ficção científica e o terror não desfrutariam a priori de tais facilidades. As suas visualidades características não são reconhecidas no cotidiano ou na experiência de se viver em um país chamado México, ou em país algum, e sim através do consumo de objetos culturais estrangeiros. Dificilmente um espectador mexicano encontraria na sua rua um cientista louco com a mesma freqüência em que ele encontrava os tipos populares retratados nos filmes de Cantinflas, porém era só ele ligar a televisão ou ir ao cinema mais próximo que lá, em um seriado americano, estaria a imagem do tal cientista. Se esse personagem não lhe era íntimo no seu cotidiano “ordinário” e “empírico”, o era sem dúvida em seu imaginário de espectador. A plástica, os cenários, os figurinos, os efeitos, estes são os signos identitários do cinema fantástico de um modo geral e da ficção científica em particular. Deslocar a ficção científica de seu “território original” e transplantá-la para um país periférico e de cinematografia periférica implicaria na automática transposição desses mesmos signos. Sem esses signos, a ficção científica, como gênero, não existiria.

E porque esses signos seriam necessariamente “estrangeiros”? E porque ícones que representam o arsenal de uma tecnologia avançada como robôs, computadores, foguetes, raios-laser, seriam de uso exclusivo do cinema norte-americano? Porque o México, um país subdesenvolvido na vida real, não poderia ser no cinema uma nação detentora de uma tecnologia de ponta? No cinema, sempre que os alienígenas penetravam na atmosfera terrestre, o local de pouso obrigatório tinha que ser os EUA. Os astronautas que exploravam o espaço também sempre eram de nacionalidade americana. E quando os ETs travavam um primeiro contato com um terráqueo, o idioma emanado de suas bocas era sempre o inglês. Os EUA eram o sinônimo de planeta Terra. O que a filmografia mexicana de Ficção Cientifica fez desde o seu primeiro título (El Moderno Barba Azul, Jaime Salvador, 1946) foi justamente realizar uma operação de inversão da ordem hegemônica dominante. A partir desse primeiro passo, o México já não era mais um destino ignorado pelos viajantes espaciais, e eles quando lá aterrissavam já tinham aprendido a falar espanhol. Mas para os defensores da tão sonhada “cor local”, colocar os ETs falando em espanhol não era o suficiente, pois para eles era somente isso o que esses filmes faziam. Mesmo que a intenção dos estúdios América, Producciones Sotomayor, Producciones Zacarías, Filmadora Chapultepec, entre outros, fosse apenas importar e copiar um gênero amplamente popular para fins exclusivamente comerciais, na prática as proporções foram outras. Filmar uma Ficção Científica em um país subdesenvolvido e dependente é, por si só, um ato desobediente e político. Os filmes do gênero, produzidos em qualquer país do 3º mundo, são potencialmente críticos, iconoclastas, satíricos e rebeldes. A potencialidade da expressão dessas características não se origina apenas da relação de dependência cultural, política e econômica travada entre esses países e os EUA, mas também da “nossa incapacidade de copiar”. Mesmo querendo copiar, nós transformamos a nosso modo o modelo original. Nascidos e formados por uma invasão, “nada nos é estrangeiro, pois tudo o é”. Aqui, os realizadores articulam elementos nacionais e estrangeiros com a mesma facilidade. O manuseio das mais variadas referências não obedece a limites de fronteira. Tal operação é realizada de maneira espontânea porque o diálogo que encontramos nesses filmes entre cultura local e cultura dominante ultrapassa a intenção antropofágica. Não visualizamos neles um projeto consciente de absorver e deglutir o que vem de fora para a criação de algo totalmente novo e nacional. Para esses realizadores mexicanos, a fusão almejada pela estratégia antropofágica já foi feita, tudo, irremediavelmente, já é uma coisa só. Tudo é ao mesmo tempo nacional e estrangeiro.

Tamanha falta de cerimônia em coletar ícones externos e adaptá-los em um “similar nacional” é, mesmo quando levada a sério, uma atitude de escracho. O tom empolado e austero da narração pseudocientífica que abre A Múmia Asteca contra o Robô Humano (Rafael Portillo, 1957) nos sugere um filme extremamente preocupado em ser fiel à sua matriz. Os seus diálogos hiper-explicativos e didáticos, a sua inclinação para um tom rígido e seco, nos leva a crer que o filme queria desesperadamente se levar a sério. O humor e os efeitos cômicos não foram buscados conscientemente. A Múmia Asteca contra o Robô Humano almejava ser um exemplar puro e genuíno de ficção científica. Interagir com códigos e formas de outros gêneros não era o seu objetivo. No entanto, elementos que provocam comicidade estão ali o tempo inteiro. Isso ocorre porque mesmo quando não querem ser, todos esses filmes são, em sua essência, paródicos. O efeito paródico não surge apenas provocado pela precariedade técnica e pelos parcos recursos financeiros dessas produções. É claro que os efeitos especiais esdrúxulos e os cenários de papelão enfatizam a marca do nosso subdesenvolvimento e indicam a nossa posição de inferioridade técnica em relação ao cinema hegemônico. Porém, os chamados filmes “B” norte-americanos também apresentavam um grande desnivelamento orçamentário ao dos grandes estúdios e não eram por isso propriamente paródicos. Plano 9 do Espaço Sideral (Ed Wood, 1956) não seria uma paródia ao gênero e sim unicamente um filme de ficção científica “mal feito”. Cenários balançando, discos voadores que são pratos puxados por barbantes, toscas maquetes, tudo isso é encontrado no filme de Wood e nesses filmes mexicanos. O riso provocado pela revelação do “precário” e do “tosco” se equivale em ambos os casos. Portanto, o que faz nascer a comicidade/avacalhação paródica (voluntária ou involuntária) de um filme, e o seu escracho crítico apontado na direção de um modelo antecessor, é quando a partir de sua incapacidade de copiar se inicia um processo de reinvenção.

A Nave dos Monstros (Rogélio A. González, 1959) seria um contraponto à Múmia Asteca contra o Robô Humano. O filme de Rogélio González é uma paródia extremamente consciente e isso não se deve ao fato do filme ser uma comédia e de se servir de um carismático cômico popular. As paródias de ficção científica dos Trapalhões: Os Trapalhões no Planeta dos Macacos (J.B Tanko, 1976) e Os Trapalhões na Guerra dos Planetas (Adriano Stuart, 1978) são comédias estreladas por comediantes populares oriundos da televisão, se conectam diretamente aos seus modelos originais (O Planeta dos Macacos, Guerra nas Estrelas), porém, ainda não abandonaram o tentador desejo de copiar. Esses filmes não são paródias conscientes. Os Trapalhões na Guerra dos Planetas, dos dois filmes do grupo citados, é o que mais diretamente comprova essa idéia. O filme não hesita em utilizar os outrora modernos, ou melhor, “mudernos recursos técnicos do videotape e os mais “avançados” efeitos especiais que tinham à disposição, para criar um espetáculo visual o mais próximo possível dos padrões internacionais. É óbvio que ele não consegue e os efeitos “mudernos” utilizados, ao serem comparados aos usados em Guerra nas Estrelas nos parecem incrivelmente toscos. O filme então se autoproclama paródico (inclusive no seu título), não adota uma atitude paródica porque o anseio de se equivaler à matriz é maior, e no final das contas acaba sendo uma legítima paródia pelo simples fato de não conseguir de maneira nenhuma fazer igual. Guerra dos Planetas acaba rindo de si mesmo. A Nave dos Monstros gargalha de sua própria condição, porém, de forma consciente. O local onde a nave das invasoras venusianas pousam não é a Cidade do México e sim Chihuahua, logo um território remanescente de um México ainda rural e “arcaico”. As extraterrestres são recebidas por um típico charro local, o mentiroso e contador de estórias Laureano (o cômico Eulalio González “Piporro”). Ele tenta explicar para elas o significado do amor, palavra que, na enciclopédia do conhecimento universal gravada na memória do Robô Tor, não aparece. O amor é algo que pertence à natureza do Homem e não é um sentimento compatível a um exacerbado progresso tecnológico. As máquinas, os computadores e as engrenagens em profusão podem muitas vezes fazer o Homem se esquecer de amar. Não se trata aqui de emitir um alerta aos cuidados que o Homem deve tomar ao se relacionar com a ciência/tecnologia e às catástrofes que poderão acontecer pelo seu mau uso (tema clássico do gênero), e sim de propagar uma ingênua mensagem. Outro recado igualmente ingênuo e quase infantil, também utilizado para lançar a idéia de que o Homem nasceu para o amor e que a sua perdição acontece quando ele se afasta desse sentimento, é quando Tor descreve o significado de Homem. O robô diz: “Os Homens são seres que não sabem o que querem e que se dedicam a se destruir uns aos outros”.

Se a tecnologia em A Nave dos Monstros não é totalmente desprezada ou considerada um mal em si, ela é algo que vem exclusivamente de fora. Em O Planeta das Mulheres Invasoras (Alfredo B. Crevenna, 1965), e em grande parte dos filmes de ficção científica protagonizados por lutadores de luta livre (a mostra exibiu apenas Santo contra a Invasão dos Marcianos e Aranhas Infernais, Federico Curiel, 1966), geralmente a tecnologia não “vem”, ela veio de fora e já foi incorporada. A partir de uma determinada etapa da vasta filmografia de Santo, o mascarado de prata, (50 longas filiados a diversos gêneros) vemos ele se transformar em uma espécie de 007 mascarado dos trópicos. É acrescentado à sua força bruta e à sua habilidade para a luta um significativo conhecimento da tecnologia de última geração. Apesar de Santo contra a Invasão dos Marcianos ainda fazer parte da primeira fase do lutador e por isso eleger o uso da força como a arma principal a ser usada na expulsão dos invasores, um certo “avanço” científico já aparece. Em O Planeta das Mulheres Invasoras encontramos a presença de um renomado cientista e é devido aos seus conhecimentos que um terrível plano é evitado de ser levado a cabo. Tanto nesse quanto nos dois filmes de lutadores exibidos na mostra, o alerta de que devemos interferir na ciência com prudência é o elemento chave. No entanto, essa notificação não impede que o México também possa ter os seus laboratórios e que lance os seus próprios foguetes.

A incorporação ou não do aparato tecnológico e a desconfiança ou o fascínio pelas conseqüências de seu uso não são peças antagônicas e sim componentes de um mesmo sistema que nos serve para indicar a postura vislumbrada por esses filmes em seu diálogo com o progresso. Talvez os filmes exibidos nessa pequena retrospectiva que mais diretamente ilustrariam essa questão sejam A Múmia Asteca contra o Robô Humano e A Nave dos Monstros. No primeiro filme, podemos partir de seu próprio título. Temos um elemento associado à cultura pré-colombiana, à original cultura mexicana anterior à chegada dos conquistadores espanhóis, contra um produto fabricado pelo progresso. O primeiro elemento pertence ao lado do bem, o segundo ao do mal. Inclusive o vilão responsável pela invenção do terrível Robô Humano tem nome estrangeiro: Dr. Krupp. Os vilões são estrangeiros, os heróis são nacionais. O outrora bravo guerreiro asteca Popoca, que agora não passa de uma feiosa múmia, só pensa em dar continuidade ao seu tranqüilo repouso. O seu descanso só é interrompido quando tentam roubar o seu tesouro. No final de tudo, fica subentendido que a riqueza asteca não deveria ficar nem nas mãos do malvado Dr. Krupp nem nas dos heróis Eduardo e Pinacate. O legado asteca é a raiz da cultura mexicana e deverá permanecer sob a guarda de um verdadeiro asteca. Afinal, os mexicanos já são mexicanos, vieram da cultura asteca, mas não pertencem mais a ela. Em A Nave dos Monstros, temos uma conciliação entre o arcaico e o moderno na seqüência final. Dentro da espaçonave rumo ao seu local de origem, encontramos o robô Tor em uma idílica cena de amor com uma antiga vitrola. Escutando um romântico bolero, as duas máquinas se entrelaçam e se amam. Aqui, o amor além de ser o princípio de tudo, é o único responsável a fazer com que o progresso não se feche em si mesmo. Em todos esses filmes, em alguns mais explicitamente, em outros não, encontramos a contraditória mescla entre receio, temor, fascínio e deslumbramento frente às perspectivas tecnológicas e às novidades técnicas vindas de fora. Mescla que faz desses filmes objetos singulares, originais e curiosos. Sendo nós, latino-americanos, vítimas de uma invasão alienígena ocorrida há 500 anos atrás, sabemos que, se essa primeira invasão foi responsável pela formação da nossa identidade, ela também foi a propiciadora da nossa capacidade de tudo absorver. Absorver para, acima de tudo, criar.


Estevão Garcia

 

 







Santo Contra a Invasão dos Marcianos
(Alfredo B. Crevenna, 1965)