IN PUBLIC
Jia Zhangke, Gong gong chang suo, China, 2001

In Public é a primeira experiência de Jia Zhangke com uma câmera de vídeo digital. Na época, vale lembrar, ele tinha a reputação de um realizador-promessa, com dois longas-metragens intransigentes a tiracolo, Xiao Wu e Plataforma, que eram defendidos apenas por críticos mais radicais (nós incluídos). Hoje, depois do enorme burburinho que O Mundo recebeu até da mídia oficial e do prêmio em Veneza 2006 para Still Life, Jia sobe ao Panteão do cinema de autor como um realizador que, através das sagas de seus personagens, cria retratos em tempo presente das modificações históricas, culturais e sociais pelas quais passa a China em seu vertiginoso processo de modernização. Essa imagem não é falsa. Muito pelo contrário, a ambição (inteiramente cumprida, diga-se de passagem) de Jia Zhangke passa um pouco pela busca radiográfica de registrar um determinado momento da sociedade chinesa, uma percepção, ou, mais precisamente, aquilo que os alemães chamam de stimmung. Mas esse aspecto pode acabar obscurecendo uma outra característica pregnante de seu cinema, o ímpeto extremamente lírico de capturar momentos de espera de seus personagens, seja à espera de algo um tanto incerto, seja simplesmente o específico sentimento da pessagem do tempo provocada pela falta do que fazer. In Public é uma entrega total a essa prática de observação.

De início, somos transportados para uma estação de trem, e um homem em especial nos chama a atenção, como a esperar alguém (os minutos seguintes confirmarão a impressão, ele esperava sua família). Nas cenas seguintes, passamos para grupos de pessoas à beira da estrada, esperando vans para transportá-los de um lugar a outro. Mais um filme sobre o estado de eterna espera da população chinesa diante de uma realidade avassaladora e sem maiores perspectivas? Não exatamente. Logo ficará clara a maneira como as imagens existem e se montam umas com as outras: trinta e dois minutos de variações sobre comportamento "em público", esperando transporte, em trajeto ou finalmente numa nada glamurosa discoteca em que se toca uma música nacionalista. Naturalmente, existe aí uma maneira de extrair significações políticas ou no mínimo dados controversos – uma discoteca, influência ocidental, convivendo com a música de propaganda que nela toca –, mas o que mais parece importar a Jia Zhangke em In Public é esse desejo tão primário quanto exuberante de simplesmente registrar a passagem do tempo e como certas pessoas ocupam esse tempo. A esse respeito, a relação da câmera com aqueles que por ela são retratados é encantadora: crianças, adultos, homens, mulheres ficam sem saber o que fazer diante dela, olham com um olhar cheio de curiosidade e indagação, mas em nenhum momento se dirigem a ela, atuam para ela. É um pouco a mesma sensação que se depreende da parte "At Noon" de Misterioso Objeto ao Meio-Dia de Apichatpong Weerasethakul: simplesmente uma passagem agradável de uma determinada duração que transcorre para algumas pessoas.

Essa impressão de "retratos a esmo", da câmera que persiste filmando uma situação, provoca instantaneamente a sensação de um olhar meio indiscreto, de alguma forma perscrutador, mas não visto como "necessário" nem se dando a si mesmo a justificativa de estar lá. As imagens de In Public são de uma gratuidade libertadora. Ora, essa liberdade e essa indiscrição são as mesmas de um cineasta que fazia filmes clandestinamente (os filmes chineses passam por um processo de dupla censura no começo e no fim da cadeia, precisando de aval inclusive para a compra de negativos) com material significativamente mais pesado de película, e que agora pode se postar no meio da rua, sem se esconder, entregue aos acasos e acidentes que possam ser provocados pelas coisas imprevisíveis que podem acontecer, sem ensaio, diante de uma câmera. Daí que "em público" talvez diga mais respeito à postura do próprio realizador nesse filme do que ao tema encontrado. Vemos aí um Jia francamente mais solto, sem a severidade ou a sensação de destino inevitável provocada pela ausência de perspectivas dos personagens de seus longas-metragens. Seu objetivo permanece o mesmo, fazer um retrato da população chinesa trabalhadora de cidade pequena, mas dessa vez a chave é quase heróica, mostrando como esses homens e mulheres persistem, movimentam-se de um canto a outro, ou seja, são figuras com vida que habitam um processo histórico. Em In Public, Jia Zhangke esquece um pouco a pressão da História e filma seus personagens em momentos de mais livre respiração. O resultado é encantador.

Ruy Gardnier

 

 







Dois momentos, um solitário e outro populado, de In Public.