A PASSARELA SE FOI
Tsai Ming-liang, Tianqiao bu jianle, Taiwan/França, 2002

A Passarela Se Foi, esse belíssimo curta-metragem de Tsai Ming-liang, que no Brasil pôde ser visto antes das sessões de Adeus Dragon Inn na Mostra de São Paulo de 2003, traz uma grande amostragem da obra do taiwanês que nos anos 90 deixou boquiabertos muitos críticos e cinéfilos. São apenas vinte minutos, mas vemos uma condensação de quase tudo que Tsai tinha feito antes, além de percebermos o elo que o curta estabelece com o que viria a seguir. Os personagens do filme são retomados de Que Horas São Aí?, o momento mais Tati de Tsai, e estariam depois em O Sabor da Melancia. Esse curta é meio que uma passarela entre os dois longas.

Mas a passarela se foi, o título avisa, e sem essa referência espacial a moça que no filme anterior viajara a Paris não pode reencontrar o vendedor de relógios (Lee Kang-sheng). Ele, agora, nem vende mais relógios, tampouco sonha com a moça enquanto assiste a filmes de Truffaut: a última cena o mostra fazendo teste para ator de filme pornográfico (quem viu O Sabor da Melancia há de entender). Num determinado momento, eles até se cruzam, um indo em cada direção na passagem subterrânea que se substituiu à passarela que havia sobre a rua. Ela está de cabeça baixa e não o vê; ele, por sua vez, olha para trás depois que passa por ela, certamente reconhecendo-a, mas não vai atrás dela, fica lá no fundo da imagem, pontinho negro em meio à luz estourada. Um plano extraordinário, dos mais fortes que Tsai já filmou. Entre a passarela que cortava o céu e aquela que perfura o chão, alguma coisa muito melancólica se produziu. O desencontro, essa premissa na vida dos personagens de Vive l’Amour, volta com tudo.

A cidade mutante passa pela frente do filme – nas ruas, nas calçadas, nos vidros. O espaço exterior não é mais o espelho que reflete a interioridade (como era em Antonioni nos anos 60, para citar um cineasta tão referencial para Tsai), e sim o puro reflexo de um espaço sem dono, uma exterioridade que reflete outra exterioridade. Como sempre em Tsai, a câmera se fixa na maioria dos planos, e o efeito é a cidade escorrendo pela tela. É como se a fixidez fosse a forma de acentuar a passagem – tudo fica ainda mais rápido, fugaz, uma procissão de vultos: os carros que riscam o quadro, as pessoas que passam refletidas nas superfícies envidraçadas, o movimento coletivo dos transeuntes. No fim é o espaço que se move sozinho. E a moça não sabe o que fazer, não sabe como se deslocar por esse espaço, fica perdida. Para onde ir uma vez que o próprio espaço se desloca e se transforma à nossa revelia?

Depois da duração de pedra de Vive l’Amour e O Rio, em A Passarela Se Foi Tsai buscou uma duração mais leve (em Que Horas São Aí? a realidade acha uma interseção com o mundo dos fantasmas, mas a composição ainda é demasiado rígida), assim como os planos se tornaram menos definitivos e mais precários. O que faz a cena da discussão com o guarda de trânsito ser tão magnífica é seu aspecto de plano improvisado, encontrado ao acaso naquela situação. A falsa distância da câmera se revela um dos pontos de vista mais imersivos de toda a obra de Tsai, anterior e posterior. Um drama que brota do extra-campo, do barulho de trânsito. A construção dramática é tão minimal quanto preciosa: a moça desnorteada no meio da discussão, olhando para os lados, para finalmente perguntar novamente, alheia ao que o guarda fala: o que diabos ocorreu com a passarela? Evaporou-se: resposta dada pelo plano final de A Passarela Se Foi, mostrando aquelas nuvens que dançam no céu azul. Nesse momento, Tsai radicaliza na abstração – movimento que retoma em Adeus Dragon Inn, filme-fantasma por excelência, e agora em Eu Não Quero Dormir Sozinho, linda fábula sobre a possibilidade de uma vida em conjunto, mesmo que o lugar dessa vida tenha de ser a água turva encontrada num prédio abandonado. Ou o céu.


Luiz Carlos Oliveira Jr.

 

 








A moça discute com o guarda, desnorteada com o sumiço
da passarela: um dos ápices da carreira de Tsai Ming-liang
em matéria de construção dramática.