TRANSE
Teresa Villaverde, Transe, Portugal/França/Itália/Rússia, 2006

Não há como evitar a expressão "filme estranho" na saída de uma sessão de Transe. Aqui não somente uma aventura estética diversa das que nos acostumamos a ver (e não apenas filiadas a um cinema clássico, mas também as ditas modernas, alternativas, e todas suas corruptelas), nem mesmo um jogo temático e discursivo que proponha a experiência em novas bases de percepção. Teresa Villaverde oferece um universo paralelo que se realiza de maneira integral, não apenas naquilo que dá conta de uma dramaturgia e encenação próprias, mas de tal maneira envolvente que a própria ocorrência do cinema que se nutre dessa dramaturgia e encenação parece se dar no interior desse universo. A estranheza é exatamente essa sensação de se estar diante de um filme que exija a recolocação do olhar do espectador, um lugar novo, de regras próprias, guiado unicamente pela vontade de si mesmo deste mundo particular (algo que está na base do cinema dos companheiros de geração da cineasta, da Odete de João Pedro Rodrigues ao Juventude em Marcha de Pedro Costa). Se essas características são perfeitamente aplicáveis à Transe, há também ali uma indisfarçável sensação de produção codificada dessa estranheza. Momento em que a novidade se anuncia grande demais, e onde aquilo que parecia explosão da espontaneidade de outra uma compreensão já se mostra absolutamente dominado por regulamentos; estranhos, é verdade, mas ainda assim regulamentos.

A trajetória de Sonia talvez contribua para isso. Sua nacionalidade é incerta, e apesar de começar a história em São Petersburgo e usar o russo como língua, nega esta idéia de pátria, incompatibilizando aquilo que compreende de si mesma com aquilo que a idéia de origem atribui como uma identidade. A rejeição deste ambiente inicial é o que a coloca em movimento, e atravessar toda Europa até chegar a Portugal, onde reencontra este senso identitário perdido, longe de uma decisão consciente e planejada, é pura reação à inviabilidade de sua experiência de vida atual. Nisso tudo há evidentemente uma questão, e Transe não consegue produzi-la dentro desta mesma noção de estranheza que lhe parece tão cara. Questão não como reverberação dos ruídos produzidos por esse universo, mas como problemas a serem resolvidos, temas a serem tratados, e tudo o que havia de organicidade nesta trajetória acaba sofrendo com as intervenções de uma força externa, não regida pelos mesmos sentidos daquilo sobre a qual precisa agir. Resolução, tratamento, necessidade de ação, e assim Transe cria uma instância superior à sua protagonista, mais uma das que irão dominá-la e subjugá-la ao longo do filme.

Sonia será testada. Como estágios demarcados de uma escada evolutiva, será submetida à diversas provações, cada uma agregando valores à sua experiência, purgando negatividades e preparando-a para seu momento de libertação dessas obrigações. Os silêncios, os mistérios, a ausência de explicações, os personagens bizarros, a potencialização da errância a partir da eliminação de qualquer signo que possa dar alguma indicação de seu destino, e tudo isso se arquiteta em nome desses testes. Se Teresa Villaverde arma planos realmente belos, se consegue casar a experiência de sua protagonista à materialização de suas emoções em forma de discurso visual, sua força acaba perdida nesta previsibilidade de modos, incompatível com a idéia de cinema que se anunciava a princípio. Sonia, no meio disso tudo, sofre, se desespera, se recrudesce, e ainda assim Transe precisa seguir em frente, jogando-a num palácio italiano à Salò, onde será oferecida como presente de um ricaço à seu filho doente mental e eventualmente estuprada, até que consiga fugir, tão somente para que seja capturada por um bando de malfeitores e, cúmulo das provações, ser sujeitada ao sexo com um cachorro. Nesse momento, Sonia já aparece totalmente destituída de Sonia, e aquilo que parecia uma conquista a ser promovida acaba sofrendo um ataque frontal de suas próprias trincheiras. Identidade destroçada, corpo destroçado, é no espectro de Ana Moreira que Transe se apoiava, e não se implode uma protagonista impunemente. Estranho, e o cinema tem muito pouco a ver com isso. Estava tudo lá na exploração do terror, onde o estado de transe não era mais que a fabricação de uma patologia, a execução de uma tarefa. Sonia chega ao fim de sua jornada, e se sobrevive à estupradores, cafetões, assassinos e zoófilos, não consegue nunca escapar da fatalidade de ser personagem de Transe.


Rodrigo de Oliveira