O nascimento do sinnerman
Uma montanha rochosa, e dois homens com pedras presas
pelos lábios se esforçam para escalá-la. Uma névoa espessa
corre pelo ambiente, e tinge de branco os tons verdes
e marrons predominantes, ainda tímida nos planos próximos
da exaustão desses dois corpos caminhando morro acima,
mas integralmente distribuída na grande tomada do alto,
que reduz os homens e suas pedras a complementos inquietos
de uma grande estrutura estática, cuja mobilidade está
apenas no que se deixa guiar pelo vento: névoa e gente.
Já vimos um plano como esse antes, já estivemos num
lugar parecido. Incapaz de permanecer na presença conformada
de sua família, depois de deixar sua fábrica nas mãos
dos operários, depois de se despir numa estação de trem,
o industrial Paolo de Teorema segue também para
uma montanha dessas, também acompanhado de uma névoa,
a mesma dúvida suspensa sobre as repercussões daquela
escapada. Entre o filme de Pier Paolo Pasolini e o de
Emanuele Crialese uma distância que é, antes de tudo,
o diálogo estabelecido a partir de pontas opostas de
uma mesma cadeia de acontecimentos. Teorema termina
com a perda do industrial, que via no caminho pela montanha,
sem rumo, a única reação à toda radicalidade da transformação
de sua ordem que a aparição do anjo Terence Stamp provocara.
Em Mundo Novo, radicalidades e transformações
estão ainda todas por acontecer, e talvez nem mesmo
aconteçam, dependendo do que esses dois homens (pai
e filho, como descobriremos mais adiante) encontrarem
no destino de sua escalada.
A resposta que Salvatore Mancuso e seu filho Angelo
buscam no alto da montanha, no altar pagão sob o qual
estão depositadas centenas de outras pedras, com as
marcas do sangue de quem as levou pela boca até lá,
chega em forma de símbolo, na mãos do outro filho do
camponês, Pietro, que traz fotos da América dos sonhos,
onde se cultivam cenouras e azeitonas gigantes, onde
se criam galinhas que têm o tamanho de vacas, onde tudo
é muito maior do que a pequenez que a Itália natal pode
oferecer. A decisão é imediata, e a reação de Salvatore
à recusa de sua mãe em acompanhá-los na viagem aos Estados
Unidos nos levará a outra cena já vista em Teorema.
Debaixo de uma árvore, Salvatore irá cobrir seu corpo
inteiro com terra, e ali permanecerá até que sua mãe
se junte a ele no rumo da imigração. Enterrar-se vivo,
exatamente como fizera a empregada Emilia no filme de
Pasolini, a camponesa que trabalhava para a família
burguesa e que, também tocada pelo anjo da revolução,
voltara a seu povoado natal, onde passaria por um processo
de santificação que eventualmente a faria operar milagres
e levitar, para finalmente, como única alternativa a
quem se compreende maior do que era antes, pedir para
ser coberta de terra, unir-se à ela de maneira definitiva,
já que o céu parecia garantido. Novamente, Crialese
usa em Mundo Novo a mesma situação que Pasolini,
mas apontando para uma chave oposta. Salvatore funde-se
à terra apenas para ter certeza que era chegado o momento
de abandoná-la. Num delírio, com a cabeça para fora
do chão, vê dúzias de moedas de ouro caindo da árvore
acima, essa também sendo uma das promessas vindas do
outro lado do Atlântico, dinheiro que dá em árvore,
e é pela alegria em seu rosto, puramente ilusória mas
materializada na vontade de realidade do camponês, que
sua velha mãe decide seguir viagem com o filho e os
netos. Em Teorema, enterrar-se era o fim, em
Mundo Novo é apenas o começo.
Desde o filme anterior de Emanuele Crialese a referência
a Pasolini era muito clara. A Grazia de Respiro,
em toda sua instabilidade física e emocional, entre
o pulso de uma animalidade poderosa e as obrigações
limitadoras das relações sociais estabelecidas como
esposa, mãe, vizinha, entre a preservação e o risco
da entrega absoluta, parecia uma mistura da Mamma
Roma feita por Anna Magnani com o Cristo de O
Evangelho Segundo São Mateus, vertidos e atualizados
na força de quem é capaz, como Terence Stamp em Teorema,
de mudar toda a história do universo que a cerca simplesmente
por estar lá, e explorando ao máximo as possibilidades
de ser por si só, transformar o ser de todos os outros.
O que estava em Respiro localizado quase integralmente
na figura interpretada por Valeria Golino aparece em
Mundo Novo de maneira disseminada, porque já
consciente do tipo de conversa que se quer estabelecer
com essa fonte cinematográfica tão marcante. Além das
referências diretas à duas cenas clássicas de Teorema,
temos em Pietro um personagem escrito com Ninetto Davoli
na cabeça, e o primeiro close de Filippo Pucillo, surpreendendo
duas mocinhas ao tirar o chapéu e revelar os vários
caramujos que têm presos no cabelo, sorrindo com seus
dentes tortos e engraçados, é um plano pasoliniano por
excelência, quando se corta de uma situação geral com
vários personagens e objetos de cena para um plano de
rosto, frontal, com um fundo neutro que não tenha nenhum
destaque, quando o filme passa a se sustentar, na duração
dessa tomada, exclusivamente naquilo que se possa depreender
da relação que determinado ator (ou não-ator) estabeleceu
com a máscara a ele dada por Pasolini. A repetição dessa
dinâmica de decupagem por todo o filme mostra que também
na forma Crialese quer recuperar essa influência.
Falando a Jean Duflot em Entretiens avec Pier Paolo
Pasolini a respeito da cena em que Emilia se enterra
viva, o diretor italiano dizia querer lembrar com ela
“que as civilizações anteriores às nossas não desapareceram,
elas se enterraram somente”. Colocado nesses termos,
o gesto de Emilia seria o símbolo definitivo da suplantação
do campesinato pela era industrial, e é revelador que
Pasolini trate essa relação como uma sucessão de civilizações.
Em sua obra, personagens e situações sempre eram forjados
a partir de uma idéia muito clara do processo material
e histórico de formação da humanidade, e mesmo em filmes
que sugerissem estados primitivos de existência (claramente
a partir da Trilogia da Vida, culminando em Saló,
mas já presentes na viagem de provações de Tóto e seu
filho Ninetto em Gaviões e Passarinhos, por exemplo),
a sombra de um padrão coletivo de práticas sociais e
econômicas estava sempre presente, como a base a partir
da qual toda vertigem das experiências cinematográficas
realizadas pudessem explodir espontaneamente, sabendo
que o que sobrasse delas recairia naquela mesma base,
e assim ajudaria a completar e expandir seus sentidos.
Em Pasolini, moderno por vocação, a discussão entre
civilizações era, antes de tudo, a discussão de um projeto.
Se Emanuele Crialese aproxima-se desse universo pasoliniano
sempre a partir de uma perspectiva diversa é justamente
porque defende uma outra postura diante desta mesma
idéia de civilização. Mundo Novo se divide muito
claramente em três partes, o começo na Itália, a viagem
de navio e finalmente a chegada e os primeiros dias
na América, e a todo momento Crialese nega a sugestão
de uma linha evolutiva que tivesse numa ponta o primitivismo
e na outra o sucesso civilizatório. Pensar a humanidade
nos termos de uma escala onde alto e baixo significariam
distinções discriminatórias na própria essência dessa
idéia seria ignorar que há, no meio disso tudo, um recipiente
privilegiado pela absoluta suscetibilidade de seus modos,
que quanto mais quer se mostrar completo mais denuncia
que está, e sempre estará, em processo de formação,
sujeito às contribuições de tudo aquilo que puder tornar
sua matéria ainda mais complexa e elaborada; seria,
enfim, ignorar que há, no meio disso tudo, o homem.
Não sua versão contemporânea ou seu antepassado distante,
não o camponês ou o industrial, não o primitivo ou o
civilizado, mas todos esses, e tantos quanto se puderem
associar a eles, nunca como conceitos exteriores à essa
propriedade fundamental e primeira que dá conta de tudo
o que é humano, mas como traços internos e constitutivos
dela. O homem de Mundo Novo não é nunca resultado
de um processo, cumpridor de um trajeto que tem começo
e fim, tarefa e objetivo, como num projeto bem definido:
ele é o próprio processo.
As oposições entre a primeira e a terceira parte, superstição
versus ciência, ingenuidade versus esperteza,
arcaico versus moderno, não são mais do que a
consideração de todas essas características, aparentemente
maniqueístas enquanto separadas, como totalmente complementares
e interativas, desde que se esteja disposto a juntá-las,
como se a dialética fosse uma função vital tão importante
quanto a respiração ou a circulação sangüínea. Salvatore
irá se encontrar com o irmão gêmeo há anos já estabelecido
na América, e mesmo com a proximidade genética, teme
que a separação física tenha promovido outra ainda maior,
emocional, sensorial, talvez até mesmo diferenciando
os irmãos naquilo em que sempre foram idênticos, a aparência.
Vem do comerciante de sua vila, que lhe arruma roupas
melhores para se apresentar ao novo país, a confirmação
apaziguadora de que tamanha semelhança entre os irmãos
não seria nunca perdida, e que é bem possível que Salvatore
seja confundido em Nova York, tome o lugar do gêmeo.
Não bastando essa superposição de existências, o comerciante
ainda adiciona muitas outras, e diante de Salvatore
e de seus dois filhos, elegantemente vestidos com as
roupas deixadas pelos ricos e falecidos cidadãos do
povoado, sentencia: “Nossos mortos vão viajar com vocês”.
A todo momento, Mundo Novo vai colando à experiência
desta família as experiências de todos aqueles que cruzam
seu caminho, de maneira que o contato nunca seja supérfluo,
pelo contrário, todos são imprescindíveis, todos são
formadores, todos são faces possíveis dessas quatro
pessoas, testemunhas e ao mesmo tempo personagens de
sua própria história, a história do nascimento de um
novo homem.
Se esse nascimento é desconsiderado como o primeiro,
o definitivo, ou o mais importante de todos, tomado
apenas como mais um dos momentos em que a constituição
da humanidade se transforma radicalmente a partir da
conjunção de uma série de elementos, há ali uma especificidade,
um traço que o singulariza diante de todos os homens
anteriores e posteriores a ele. Esse sujeito percebido
por Mundo Novo é, acima de tudo, um pecador.
A tentação já se manifestava naqueles momentos iniciais,
anteriores à viagem, quando Pietro se aproximava das
duas mocinhas para dar-lhes um susto quase como um fantasma,
reaparecendo na frente delas com rapidez mágica – porque
fisicamente impossível. Mais ainda quando sua velha
avó, curandeira, recebia uma dessas mesmas moças dizendo
sentir uma dor na barriga, como se houvesse uma cobra
dentro do corpo, para que então a amarrasse numa cama
e, com alguma reza proferida, retirasse de dentro da
moça exatamente uma cobra, que vemos se debater
na mão de Fortunata. Essas são pessoas que já admitiram
o mistério como verdade, e não apenas enquanto manifestações
de exceção, perturbações momentâneas da normalidade
que se confirmam excepcionais sempre que o todo concreto
as chama à razão, mas como integrante legítimo da própria
vida, um registro tão válido quanto qualquer outro dado
real, porque o mistério em Mundo Novo também
é real: a cobra está lá, viva, dentro do quadro. Por
isso é preciso filmar o reencontro de Fortunata com
a memória dos dois filhos gêmeos, ainda meninos na porta
de casa, como se fosse uma ação do presente, com o realismo
a ele atribuído, porque naquele momento, naquela despedida,
os meninos estão mesmo lá.
Será Salvatore, no entanto, que transformará a tentação
em pecado, transgressor não só no nível menor das molecagens
de um menino ou da magia de uma curandeira, mas verdadeiramente
profanador de uma ordem estabelecida no espírito do
homem que, por ele e por sua geração, será repensado,
renascido. Para Salvatore a incorporação do mistério
na concretude da vida deixou vago um espaço, onde se
realizavam todas as projeções imaginárias com as quais
esse espírito oitocentista equilibrou muito bem sua
iluminação intelectual, pragmática e eficiente nas considerações
sobre o mundo. As possibilidades do novo país, se parecem
inicialmente frutos certos dessa mesma iluminação, se
provarão eventualmente ligadas àquele espaço vago, agora
ocupado pelo sonho. As fotos dos legumes gigantes se
materializam diante de seus olhos, cenouras e azeitonas
carregadas por homens e meninos sem camisa na beira
de uma colina, as moedas de ouro caindo das árvores,
e nessas imagens, puramente oníricas, estão as fontes
de um sentimento que seria referenciado inúmeras vezes
na história do cinema. A coincidência temporal entre
a viagem da família Mancuso e o início da notoriedade
dos estudos psicanalíticos de Sigmund Freud não tem
nada de coincidência. É como se ali, entre as formatações
definitivas dos territórios americanos em países e sua
conseqüente abertura à imigração da gente de todo mundo,
entre o surgimento de uma nova terra prometida e a falência
das terras naturais, existisse, pela primeira vez em
todos os tempos, a possibilidade do sonho como mergulho
irrestrito na ilusão de suas próprias emoções, e assim
o freudismo não seria mais que um relato de caráter
quase jornalístico, como a cobertura ao vivo de um grande
evento que acaba de ter início: o homem que se descobre
sonhador.
Se há nisso pecado, Mundo Novo mune-se de toda
uma cinematografia que fez justamente dessa descoberta
sua grande razão de ser. O filme de Emanuele Crialese
é uma espécie de pai posterior de Era Uma Vez na
América e O Poderoso Chefão, no que esses
filmes tratavam exatamente dos desdobramentos de todas
essas viagens feitas através do Atlântico, e faziam
o inventário do confronto entre o sonho e sua concretização,
épicos da descrença, pois no destino da terra prometida
sobrava muito pouco além das atividades criminosas,
das bebidas ilegais e do ópio. Diferente da cobra no
ventre, que se materializa nas mãos de Fortunata, as
cenouras gigantes nunca acontecerão, porque o sonho
não pode se integrar à vida da América como o mistério
se integrara à vida da Itália. Aqui a idéia de civilização
de Pasolini se choca com a formação de um espírito que
não quer suplantar um anterior nem ser passível de superação
pelo que vier depois, pois Salvatore e sua família acreditam
que a contribuição que têm a dar ao processo em que
sua condição humana se baseia transcende essas divisões.
Desse modo, também a animalidade inexplicável da Grazia
de Respiro ganha sentido superior à sua própria
matéria, pois era ela um primeiro esboço desse sonhador
irrestrito, que no entanto teve frustrada sua pulsação
pela supremacia do ordinário no povoado em que morava.
É entre civilização e sonho que Sergio Leone situará
seu protagonista, e o fato de Era Uma Vez na América
conseguir dar conta da formação de um novo país em tudo
o que isso significa em complexidade e alcance não exclui
nunca a possibilidade de, naquele sorriso final de Noodles,
dopado e inconsciente, termos estado o tempo inteiro
acompanhando o delírio pessoal de um personagem. O sonho
nunca deixará de ser somente isso, e todo aquele que
ousar desafiar esta ordem estará condenado, como canta
Nina Simone na seqüência final de Mundo Novo,
à condição de um sinnerman.
Entre o velho e o novo, a História do Mundo
A força do sonho de Salvatore, no entanto, era grande
demais para permitir que Mundo Novo fosse mais
um retrato das desilusões. Emanuele Crialese precisa
dar uma resposta aos olhos inabaláveis de Vincenzo Amato,
e ela não pode ser negativa, sob pena de perder-se a
oportunidade de se estar diante de personagens tão fantásticos
em sua íntegra e franca paixão pelo sonho, e nesse contato
deixar-se também apaixonar. Por isso a história dos
Mancuso não aparece como um drama familiar íntimo, registro
das agruras de um grupo que tenta sobreviver dentro
de uma nova ordem. Eles são apenas a porção aparente
de milhões de outros que dividem essa mesma paixão,
milhões de homens pecadores, uma parte deles viajando
no mesmo navio em que vai a família. Essa idéia de compartilhamento
da experiência esteve presente ao longo de todo o filme,
a começar pelo plano em que a carroça que leva os quatro
parentes sai do povoado rumo à zona portuária, e a câmera
segue acompanhando-a até que entre por trás de um muro,
ficando invisível. Mesmo assim, a lente continua seu
movimento, ignorando que a carroça já desaparecera.
Partir é deixar de ver, no momento em que a família
pára de dividir com o povoado o mesmo horizonte, já
não mais pertence a ele. Do mesmo modo, num plano estarrecedor,
veremos do alto um aglomerado indistinto de pessoas,
o grupo da esquerda de frente para o da direita, encarando-se
e comunicando-se por gestos, para com o apito de uma
buzina, vermos o navio se afastar do cais, e então formar-se
entre aqueles dois grupos indistintos uma distinção,
um vão cada vez maior de água do mar a anunciar que,
muito em breve, ambos deixarão de se ver, de compartilhar
o mesmo espaço. E será pela operação contrária que a
inglesa Lucy se integrará ao núcleo familiar de Salvatore,
forçando-se a ser vista, agora pela lente de uma máquina
fotográfica, que enquadra no mesmo frame os rostos abobalhados
dos Mancuso com a seriedade preocupada da moça. Lucy
e Salvatore dividirão a vida porque estiveram, desde
esta primeira fotografia, dividindo a mesma imagem.
É no navio, no entanto, que Crialese aproximará a experiência
singular dos Mancuso de um trajeto coletivo, onde haverá
propriamente o parto desse homem pecador, aquele que
eventualmente sairá de Mundo Novo consciente
da natureza falível de seus sonhos mas que, como uma
força inerente à própria disposição em seguir vivo,
não se deixará nunca catequizar e converter, elogio
do pecado do sonho como o único modo de suportar a afronta
da realidade menor. Inicialmente os viajantes aparecem
divididos, já conformados à ordem que os espera do outro
lado do oceano, todos compartimentados em seus beliches,
organizados por gênero e idade. As primeiras conversas
entre si precisam ser sempre abertas com o sobrenome,
o povoado e a região de onde vieram, pois naquele momento
nem mesmo a idéia de uma unidade italiana existia. Salvatore
diz a certa altura que nunca dormira ao lado de tantos
estrangeiros, e o fato de todos serem de cidades próximas
não esconde que há entre eles uma distância enorme,
dada sobretudo pela língua, cada um com seu dialeto
particular.
E então a tempestade. Considerar este acontecimento
como divino, em Mundo Novo, é o mesmo que buscar
certa religiosidade fundamental na obra de Pasolini,
tendo-se em mente que se dividiam no diretor porções
igualmente fervorosas de catolicismo e marxismo. Assim,
Crialese não nega as intervenções de instâncias superiores
a sua, mas ao mesmo tempo devota suas forças para mostrar
que é ali, no nível do chão e do mar, que estão os potenciais
salvadores (o nome do protagonista definitivamente não
é por acaso).
A ordem é bagunçada, os corpos divididos e isolados
pelos beliches são bruscamente unidos pela força das
águas, que ignora as regiões e as línguas diferentes.
Todos ali estão dividindo o mesmo sonho, e não há motivo
para essas separações. Amontoados e indistintos, os
viajantes do navio dormem exaustos no chão, e sabem
que estão, dali para diante, eternamente relacionados.
Seguem-se algumas das mais belas seqüências do filme,
onde os primeiros traços desse novo homem, recém-nascido
no balanço daquela tempestade, já se definem em nome
de tudo aquilo que encontrarão no destino desta viagem.
Primeiro carregam os mortos para fora, jogando-os ao
mar, porque o grande Big Bang humano não poderia ser
suportável por todos os que ali estavam. De volta às
galerias, vemos as mulheres em fila, uma desembaraçando
os cabelos da outra, e no fundo um canto entre o lamento
e a revelação, que logo descobriremos vir da velha Fortunata,
penteando a mãe que logo na cena anterior vimos despejar
no mar seu bebê morto. A comunhão dessas mulheres, sob
o som de uma língua que até ali não tínhamos ouvido
e que, no entanto, fala claramente sobre as emoções
ali existentes, mesmo que não tenhamos tradução, será
potencializada pelo conseqüente canto de dois homens,
numa terceira língua, ao mesmo tempo em que batem em
grandes tambores, como se fossem dois repentistas a
se desafiarem pelo verbo. O ritmo e a pulsação da música
aumenta de maneira embriagada e explosiva, e o semi-transe
em que se encontram esses dois cantores é o mesmo que
polariza todos aqueles que os ouvem, e nesse batismo,
nessa cerimônia de iniciação das humanidades transformadas,
ecoam os espíritos que estão prestes a ganhar e espalhar
pelo mundo sua sina.
Chegamos à América. Os testes físicos e intelectuais
a que são submetidos na triagem feita pelo governo americano
já deixam claros a falência da promessa das moedas que
caem do céu. Crialese, no entanto, mantém-se fiel à
divida de honra que mantém com estes personagens, e
a cada obstáculo apresentado oferece meios para que
eles, munidos de toda paixão dos sinnermen, tentem
estabelecer um diálogo com este outro modo de consideração
do homem. Salvatore propõe uma solução absolutamente
original para o jogo de montar que um dos médicos pede
que ele complete, e fugindo da planificação das peças,
ergue-as para o alto, constrói casas e estábulos, justifica
sua visão alternativa. Lucy pede uma explicação ao mesmo
médico sobre a utilização daqueles jogos na triagem,
e ao ouvir que o governo pretende com eles separar os
inteligentes dos estúpidos, e assim não deixar a população
nativa se contaminar da burrice transatlântica, pondera
que aquela é mesmo uma visão muito moderna. O corte
na imagem, se supostamente indica uma crítica do filme
àquela idéia posta anteriormente, será seguido pela
sugestão de uma modernidade com a qual Salvatore, Pietro,
Angelo e Fortunata poderão se relacionar, porque tão
apegadas ao sonho quanto eles. Logo ouvimos a voz de
Nina Simone cantando Feeling Good, e então veremos
as fileiras e os corredores pelos quais os imigrantes
são obrigados a se dividir sendo subvertidos pela comunicação
primitiva e eficientíssima entre pai e filhos, através
de assobios, e por fim estaremos ao lado da velha curandeira
no momento em que descobre, para espanto absoluto, o
invento do chuveiro, se não dinheiro pelo menos água
caindo do céu, e ali deixa seu corpo nu se molhar, no
meio de todas as outras mulheres com quem divide o banheiro,
e a história.
Está em Fortunata a força capaz de revolucionar a estabilidade
do novo mundo, e bem por isso sua permanência é impossível.
Seu poder é capaz de desacelerar o tempo, como no plano
em slow motion diegético, na enfermaria da triagem,
quando precisa que tudo em volta interrompa seu ritmo
normal para, com um olhar, transferir à Lucy toda sua
significação de presença feminina na família, que dali
para frente precisará abandonar. À ela também é possível
transmitir sua voz ao até então mudo Pietro, e com uma
frase proferida pela primeira vez no último momento
do filme, garantir sua entrada no país. Se ficasse,
Fortunata atuaria exatamente como a sobreposição de
civilizações que Crialese quis negar desde o começo,
forçando eventualmente a América a, de fato, ser a terra
do sonho americano. Ela parte, e deixa seu filho, muito
menos poderoso mas igualmente encantado pelo homem em
que se transformou, e caberá à Salvatore propor a saída
para todos os Mancusos, Noodles e Corleones não sucumbirem
à decepção. Nunca a idéia de um mergulho onírico foi
tão bem representada, e no mar de leite em que se transforma
a tela branca de Mundo Novo, Salvatore, seus
filhos, sua nova mulher, e todos os outros com quem
acabou de se ligar, nadam sem rumo aparente. Sinnerman,
where you are gonna run to?No rumo do sonho, respondem
Emanuele Crialese e seu Mundo Novo, obra-prima
da paixão pelo humano. Sempre no rumo do sonho.
Rodrigo de Oliveira
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