MUNDO NOVO
Emanuele Crialese, Nuovomondo, Itália/França, 2006


O nascimento do sinnerman

Uma montanha rochosa, e dois homens com pedras presas pelos lábios se esforçam para escalá-la. Uma névoa espessa corre pelo ambiente, e tinge de branco os tons verdes e marrons predominantes, ainda tímida nos planos próximos da exaustão desses dois corpos caminhando morro acima, mas integralmente distribuída na grande tomada do alto, que reduz os homens e suas pedras a complementos inquietos de uma grande estrutura estática, cuja mobilidade está apenas no que se deixa guiar pelo vento: névoa e gente. Já vimos um plano como esse antes, já estivemos num lugar parecido. Incapaz de permanecer na presença conformada de sua família, depois de deixar sua fábrica nas mãos dos operários, depois de se despir numa estação de trem, o industrial Paolo de Teorema segue também para uma montanha dessas, também acompanhado de uma névoa, a mesma dúvida suspensa sobre as repercussões daquela escapada. Entre o filme de Pier Paolo Pasolini e o de Emanuele Crialese uma distância que é, antes de tudo, o diálogo estabelecido a partir de pontas opostas de uma mesma cadeia de acontecimentos. Teorema termina com a perda do industrial, que via no caminho pela montanha, sem rumo, a única reação à toda radicalidade da transformação de sua ordem que a aparição do anjo Terence Stamp provocara. Em Mundo Novo, radicalidades e transformações estão ainda todas por acontecer, e talvez nem mesmo aconteçam, dependendo do que esses dois homens (pai e filho, como descobriremos mais adiante) encontrarem no destino de sua escalada.

A resposta que Salvatore Mancuso e seu filho Angelo buscam no alto da montanha, no altar pagão sob o qual estão depositadas centenas de outras pedras, com as marcas do sangue de quem as levou pela boca até lá, chega em forma de símbolo, na mãos do outro filho do camponês, Pietro, que traz fotos da América dos sonhos, onde se cultivam cenouras e azeitonas gigantes, onde se criam galinhas que têm o tamanho de vacas, onde tudo é muito maior do que a pequenez que a Itália natal pode oferecer. A decisão é imediata, e a reação de Salvatore à recusa de sua mãe em acompanhá-los na viagem aos Estados Unidos nos levará a outra cena já vista em Teorema. Debaixo de uma árvore, Salvatore irá cobrir seu corpo inteiro com terra, e ali permanecerá até que sua mãe se junte a ele no rumo da imigração. Enterrar-se vivo, exatamente como fizera a empregada Emilia no filme de Pasolini, a camponesa que trabalhava para a família burguesa e que, também tocada pelo anjo da revolução, voltara a seu povoado natal, onde passaria por um processo de santificação que eventualmente a faria operar milagres e levitar, para finalmente, como única alternativa a quem se compreende maior do que era antes, pedir para ser coberta de terra, unir-se à ela de maneira definitiva, já que o céu parecia garantido. Novamente, Crialese usa em Mundo Novo a mesma situação que Pasolini, mas apontando para uma chave oposta. Salvatore funde-se à terra apenas para ter certeza que era chegado o momento de abandoná-la. Num delírio, com a cabeça para fora do chão, vê dúzias de moedas de ouro caindo da árvore acima, essa também sendo uma das promessas vindas do outro lado do Atlântico, dinheiro que dá em árvore, e é pela alegria em seu rosto, puramente ilusória mas materializada na vontade de realidade do camponês, que sua velha mãe decide seguir viagem com o filho e os netos. Em Teorema, enterrar-se era o fim, em Mundo Novo é apenas o começo.

Desde o filme anterior de Emanuele Crialese a referência a Pasolini era muito clara. A Grazia de Respiro, em toda sua instabilidade física e emocional, entre o pulso de uma animalidade poderosa e as obrigações limitadoras das relações sociais estabelecidas como esposa, mãe, vizinha, entre a preservação e o risco da entrega absoluta, parecia uma mistura da Mamma Roma feita por Anna Magnani com o Cristo de O Evangelho Segundo São Mateus, vertidos e atualizados na força de quem é capaz, como Terence Stamp em Teorema, de mudar toda a história do universo que a cerca simplesmente por estar lá, e explorando ao máximo as possibilidades de ser por si só, transformar o ser de todos os outros. O que estava em Respiro localizado quase integralmente na figura interpretada por Valeria Golino aparece em Mundo Novo de maneira disseminada, porque já consciente do tipo de conversa que se quer estabelecer com essa fonte cinematográfica tão marcante. Além das referências diretas à duas cenas clássicas de Teorema, temos em Pietro um personagem escrito com Ninetto Davoli na cabeça, e o primeiro close de Filippo Pucillo, surpreendendo duas mocinhas ao tirar o chapéu e revelar os vários caramujos que têm presos no cabelo, sorrindo com seus dentes tortos e engraçados, é um plano pasoliniano por excelência, quando se corta de uma situação geral com vários personagens e objetos de cena para um plano de rosto, frontal, com um fundo neutro que não tenha nenhum destaque, quando o filme passa a se sustentar, na duração dessa tomada, exclusivamente naquilo que se possa depreender da relação que determinado ator (ou não-ator) estabeleceu com a máscara a ele dada por Pasolini. A repetição dessa dinâmica de decupagem por todo o filme mostra que também na forma Crialese quer recuperar essa influência.

Falando a Jean Duflot em Entretiens avec Pier Paolo Pasolini a respeito da cena em que Emilia se enterra viva, o diretor italiano dizia querer lembrar com ela “que as civilizações anteriores às nossas não desapareceram, elas se enterraram somente”. Colocado nesses termos, o gesto de Emilia seria o símbolo definitivo da suplantação do campesinato pela era industrial, e é revelador que Pasolini trate essa relação como uma sucessão de civilizações. Em sua obra, personagens e situações sempre eram forjados a partir de uma idéia muito clara do processo material e histórico de formação da humanidade, e mesmo em filmes que sugerissem estados primitivos de existência (claramente a partir da Trilogia da Vida, culminando em Saló, mas já presentes na viagem de provações de Tóto e seu filho Ninetto em Gaviões e Passarinhos, por exemplo), a sombra de um padrão coletivo de práticas sociais e econômicas estava sempre presente, como a base a partir da qual toda vertigem das experiências cinematográficas realizadas pudessem explodir espontaneamente, sabendo que o que sobrasse delas recairia naquela mesma base, e assim ajudaria a completar e expandir seus sentidos. Em Pasolini, moderno por vocação, a discussão entre civilizações era, antes de tudo, a discussão de um projeto.

Se Emanuele Crialese aproxima-se desse universo pasoliniano sempre a partir de uma perspectiva diversa é justamente porque defende uma outra postura diante desta mesma idéia de civilização. Mundo Novo se divide muito claramente em três partes, o começo na Itália, a viagem de navio e finalmente a chegada e os primeiros dias na América, e a todo momento Crialese nega a sugestão de uma linha evolutiva que tivesse numa ponta o primitivismo e na outra o sucesso civilizatório. Pensar a humanidade nos termos de uma escala onde alto e baixo significariam distinções discriminatórias na própria essência dessa idéia seria ignorar que há, no meio disso tudo, um recipiente privilegiado pela absoluta suscetibilidade de seus modos, que quanto mais quer se mostrar completo mais denuncia que está, e sempre estará, em processo de formação, sujeito às contribuições de tudo aquilo que puder tornar sua matéria ainda mais complexa e elaborada; seria, enfim, ignorar que há, no meio disso tudo, o homem. Não sua versão contemporânea ou seu antepassado distante, não o camponês ou o industrial, não o primitivo ou o civilizado, mas todos esses, e tantos quanto se puderem associar a eles, nunca como conceitos exteriores à essa propriedade fundamental e primeira que dá conta de tudo o que é humano, mas como traços internos e constitutivos dela. O homem de Mundo Novo não é nunca resultado de um processo, cumpridor de um trajeto que tem começo e fim, tarefa e objetivo, como num projeto bem definido: ele é o próprio processo.

As oposições entre a primeira e a terceira parte, superstição versus ciência, ingenuidade versus esperteza, arcaico versus moderno, não são mais do que a consideração de todas essas características, aparentemente maniqueístas enquanto separadas, como totalmente complementares e interativas, desde que se esteja disposto a juntá-las, como se a dialética fosse uma função vital tão importante quanto a respiração ou a circulação sangüínea. Salvatore irá se encontrar com o irmão gêmeo há anos já estabelecido na América, e mesmo com a proximidade genética, teme que a separação física tenha promovido outra ainda maior, emocional, sensorial, talvez até mesmo diferenciando os irmãos naquilo em que sempre foram idênticos, a aparência. Vem do comerciante de sua vila, que lhe arruma roupas melhores para se apresentar ao novo país, a confirmação apaziguadora de que tamanha semelhança entre os irmãos não seria nunca perdida, e que é bem possível que Salvatore seja confundido em Nova York, tome o lugar do gêmeo. Não bastando essa superposição de existências, o comerciante ainda adiciona muitas outras, e diante de Salvatore e de seus dois filhos, elegantemente vestidos com as roupas deixadas pelos ricos e falecidos cidadãos do povoado, sentencia: “Nossos mortos vão viajar com vocês”. A todo momento, Mundo Novo vai colando à experiência desta família as experiências de todos aqueles que cruzam seu caminho, de maneira que o contato nunca seja supérfluo, pelo contrário, todos são imprescindíveis, todos são formadores, todos são faces possíveis dessas quatro pessoas, testemunhas e ao mesmo tempo personagens de sua própria história, a história do nascimento de um novo homem.

Se esse nascimento é desconsiderado como o primeiro, o definitivo, ou o mais importante de todos, tomado apenas como mais um dos momentos em que a constituição da humanidade se transforma radicalmente a partir da conjunção de uma série de elementos, há ali uma especificidade, um traço que o singulariza diante de todos os homens anteriores e posteriores a ele. Esse sujeito percebido por Mundo Novo é, acima de tudo, um pecador. A tentação já se manifestava naqueles momentos iniciais, anteriores à viagem, quando Pietro se aproximava das duas mocinhas para dar-lhes um susto quase como um fantasma, reaparecendo na frente delas com rapidez mágica – porque fisicamente impossível. Mais ainda quando sua velha avó, curandeira, recebia uma dessas mesmas moças dizendo sentir uma dor na barriga, como se houvesse uma cobra dentro do corpo, para que então a amarrasse numa cama e, com alguma reza proferida, retirasse de dentro da moça exatamente uma cobra, que vemos se debater na mão de Fortunata. Essas são pessoas que já admitiram o mistério como verdade, e não apenas enquanto manifestações de exceção, perturbações momentâneas da normalidade que se confirmam excepcionais sempre que o todo concreto as chama à razão, mas como integrante legítimo da própria vida, um registro tão válido quanto qualquer outro dado real, porque o mistério em Mundo Novo também é real: a cobra está lá, viva, dentro do quadro. Por isso é preciso filmar o reencontro de Fortunata com a memória dos dois filhos gêmeos, ainda meninos na porta de casa, como se fosse uma ação do presente, com o realismo a ele atribuído, porque naquele momento, naquela despedida, os meninos estão mesmo lá.

Será Salvatore, no entanto, que transformará a tentação em pecado, transgressor não só no nível menor das molecagens de um menino ou da magia de uma curandeira, mas verdadeiramente profanador de uma ordem estabelecida no espírito do homem que, por ele e por sua geração, será repensado, renascido. Para Salvatore a incorporação do mistério na concretude da vida deixou vago um espaço, onde se realizavam todas as projeções imaginárias com as quais esse espírito oitocentista equilibrou muito bem sua iluminação intelectual, pragmática e eficiente nas considerações sobre o mundo. As possibilidades do novo país, se parecem inicialmente frutos certos dessa mesma iluminação, se provarão eventualmente ligadas àquele espaço vago, agora ocupado pelo sonho. As fotos dos legumes gigantes se materializam diante de seus olhos, cenouras e azeitonas carregadas por homens e meninos sem camisa na beira de uma colina, as moedas de ouro caindo das árvores, e nessas imagens, puramente oníricas, estão as fontes de um sentimento que seria referenciado inúmeras vezes na história do cinema. A coincidência temporal entre a viagem da família Mancuso e o início da notoriedade dos estudos psicanalíticos de Sigmund Freud não tem nada de coincidência. É como se ali, entre as formatações definitivas dos territórios americanos em países e sua conseqüente abertura à imigração da gente de todo mundo, entre o surgimento de uma nova terra prometida e a falência das terras naturais, existisse, pela primeira vez em todos os tempos, a possibilidade do sonho como mergulho irrestrito na ilusão de suas próprias emoções, e assim o freudismo não seria mais que um relato de caráter quase jornalístico, como a cobertura ao vivo de um grande evento que acaba de ter início: o homem que se descobre sonhador.

Se há nisso pecado, Mundo Novo mune-se de toda uma cinematografia que fez justamente dessa descoberta sua grande razão de ser. O filme de Emanuele Crialese é uma espécie de pai posterior de Era Uma Vez na América e O Poderoso Chefão, no que esses filmes tratavam exatamente dos desdobramentos de todas essas viagens feitas através do Atlântico, e faziam o inventário do confronto entre o sonho e sua concretização, épicos da descrença, pois no destino da terra prometida sobrava muito pouco além das atividades criminosas, das bebidas ilegais e do ópio. Diferente da cobra no ventre, que se materializa nas mãos de Fortunata, as cenouras gigantes nunca acontecerão, porque o sonho não pode se integrar à vida da América como o mistério se integrara à vida da Itália. Aqui a idéia de civilização de Pasolini se choca com a formação de um espírito que não quer suplantar um anterior nem ser passível de superação pelo que vier depois, pois Salvatore e sua família acreditam que a contribuição que têm a dar ao processo em que sua condição humana se baseia transcende essas divisões. Desse modo, também a animalidade inexplicável da Grazia de Respiro ganha sentido superior à sua própria matéria, pois era ela um primeiro esboço desse sonhador irrestrito, que no entanto teve frustrada sua pulsação pela supremacia do ordinário no povoado em que morava. É entre civilização e sonho que Sergio Leone situará seu protagonista, e o fato de Era Uma Vez na América conseguir dar conta da formação de um novo país em tudo o que isso significa em complexidade e alcance não exclui nunca a possibilidade de, naquele sorriso final de Noodles, dopado e inconsciente, termos estado o tempo inteiro acompanhando o delírio pessoal de um personagem. O sonho nunca deixará de ser somente isso, e todo aquele que ousar desafiar esta ordem estará condenado, como canta Nina Simone na seqüência final de Mundo Novo, à condição de um sinnerman.

Entre o velho e o novo, a História do Mundo

A força do sonho de Salvatore, no entanto, era grande demais para permitir que Mundo Novo fosse mais um retrato das desilusões. Emanuele Crialese precisa dar uma resposta aos olhos inabaláveis de Vincenzo Amato, e ela não pode ser negativa, sob pena de perder-se a oportunidade de se estar diante de personagens tão fantásticos em sua íntegra e franca paixão pelo sonho, e nesse contato deixar-se também apaixonar. Por isso a história dos Mancuso não aparece como um drama familiar íntimo, registro das agruras de um grupo que tenta sobreviver dentro de uma nova ordem. Eles são apenas a porção aparente de milhões de outros que dividem essa mesma paixão, milhões de homens pecadores, uma parte deles viajando no mesmo navio em que vai a família. Essa idéia de compartilhamento da experiência esteve presente ao longo de todo o filme, a começar pelo plano em que a carroça que leva os quatro parentes sai do povoado rumo à zona portuária, e a câmera segue acompanhando-a até que entre por trás de um muro, ficando invisível. Mesmo assim, a lente continua seu movimento, ignorando que a carroça já desaparecera. Partir é deixar de ver, no momento em que a família pára de dividir com o povoado o mesmo horizonte, já não mais pertence a ele. Do mesmo modo, num plano estarrecedor, veremos do alto um aglomerado indistinto de pessoas, o grupo da esquerda de frente para o da direita, encarando-se e comunicando-se por gestos, para com o apito de uma buzina, vermos o navio se afastar do cais, e então formar-se entre aqueles dois grupos indistintos uma distinção, um vão cada vez maior de água do mar a anunciar que, muito em breve, ambos deixarão de se ver, de compartilhar o mesmo espaço. E será pela operação contrária que a inglesa Lucy se integrará ao núcleo familiar de Salvatore, forçando-se a ser vista, agora pela lente de uma máquina fotográfica, que enquadra no mesmo frame os rostos abobalhados dos Mancuso com a seriedade preocupada da moça. Lucy e Salvatore dividirão a vida porque estiveram, desde esta primeira fotografia, dividindo a mesma imagem.

É no navio, no entanto, que Crialese aproximará a experiência singular dos Mancuso de um trajeto coletivo, onde haverá propriamente o parto desse homem pecador, aquele que eventualmente sairá de Mundo Novo consciente da natureza falível de seus sonhos mas que, como uma força inerente à própria disposição em seguir vivo, não se deixará nunca catequizar e converter, elogio do pecado do sonho como o único modo de suportar a afronta da realidade menor. Inicialmente os viajantes aparecem divididos, já conformados à ordem que os espera do outro lado do oceano, todos compartimentados em seus beliches, organizados por gênero e idade. As primeiras conversas entre si precisam ser sempre abertas com o sobrenome, o povoado e a região de onde vieram, pois naquele momento nem mesmo a idéia de uma unidade italiana existia. Salvatore diz a certa altura que nunca dormira ao lado de tantos estrangeiros, e o fato de todos serem de cidades próximas não esconde que há entre eles uma distância enorme, dada sobretudo pela língua, cada um com seu dialeto particular.

E então a tempestade. Considerar este acontecimento como divino, em Mundo Novo, é o mesmo que buscar certa religiosidade fundamental na obra de Pasolini, tendo-se em mente que se dividiam no diretor porções igualmente fervorosas de catolicismo e marxismo. Assim, Crialese não nega as intervenções de instâncias superiores a sua, mas ao mesmo tempo devota suas forças para mostrar que é ali, no nível do chão e do mar, que estão os potenciais salvadores (o nome do protagonista definitivamente não é por acaso).

A ordem é bagunçada, os corpos divididos e isolados pelos beliches são bruscamente unidos pela força das águas, que ignora as regiões e as línguas diferentes. Todos ali estão dividindo o mesmo sonho, e não há motivo para essas separações. Amontoados e indistintos, os viajantes do navio dormem exaustos no chão, e sabem que estão, dali para diante, eternamente relacionados. Seguem-se algumas das mais belas seqüências do filme, onde os primeiros traços desse novo homem, recém-nascido no balanço daquela tempestade, já se definem em nome de tudo aquilo que encontrarão no destino desta viagem. Primeiro carregam os mortos para fora, jogando-os ao mar, porque o grande Big Bang humano não poderia ser suportável por todos os que ali estavam. De volta às galerias, vemos as mulheres em fila, uma desembaraçando os cabelos da outra, e no fundo um canto entre o lamento e a revelação, que logo descobriremos vir da velha Fortunata, penteando a mãe que logo na cena anterior vimos despejar no mar seu bebê morto. A comunhão dessas mulheres, sob o som de uma língua que até ali não tínhamos ouvido e que, no entanto, fala claramente sobre as emoções ali existentes, mesmo que não tenhamos tradução, será potencializada pelo conseqüente canto de dois homens, numa terceira língua, ao mesmo tempo em que batem em grandes tambores, como se fossem dois repentistas a se desafiarem pelo verbo. O ritmo e a pulsação da música aumenta de maneira embriagada e explosiva, e o semi-transe em que se encontram esses dois cantores é o mesmo que polariza todos aqueles que os ouvem, e nesse batismo, nessa cerimônia de iniciação das humanidades transformadas, ecoam os espíritos que estão prestes a ganhar e espalhar pelo mundo sua sina.

Chegamos à América. Os testes físicos e intelectuais a que são submetidos na triagem feita pelo governo americano já deixam claros a falência da promessa das moedas que caem do céu. Crialese, no entanto, mantém-se fiel à divida de honra que mantém com estes personagens, e a cada obstáculo apresentado oferece meios para que eles, munidos de toda paixão dos sinnermen, tentem estabelecer um diálogo com este outro modo de consideração do homem. Salvatore propõe uma solução absolutamente original para o jogo de montar que um dos médicos pede que ele complete, e fugindo da planificação das peças, ergue-as para o alto, constrói casas e estábulos, justifica sua visão alternativa. Lucy pede uma explicação ao mesmo médico sobre a utilização daqueles jogos na triagem, e ao ouvir que o governo pretende com eles separar os inteligentes dos estúpidos, e assim não deixar a população nativa se contaminar da burrice transatlântica, pondera que aquela é mesmo uma visão muito moderna. O corte na imagem, se supostamente indica uma crítica do filme àquela idéia posta anteriormente, será seguido pela sugestão de uma modernidade com a qual Salvatore, Pietro, Angelo e Fortunata poderão se relacionar, porque tão apegadas ao sonho quanto eles. Logo ouvimos a voz de Nina Simone cantando Feeling Good, e então veremos as fileiras e os corredores pelos quais os imigrantes são obrigados a se dividir sendo subvertidos pela comunicação primitiva e eficientíssima entre pai e filhos, através de assobios, e por fim estaremos ao lado da velha curandeira no momento em que descobre, para espanto absoluto, o invento do chuveiro, se não dinheiro pelo menos água caindo do céu, e ali deixa seu corpo nu se molhar, no meio de todas as outras mulheres com quem divide o banheiro, e a história.

Está em Fortunata a força capaz de revolucionar a estabilidade do novo mundo, e bem por isso sua permanência é impossível. Seu poder é capaz de desacelerar o tempo, como no plano em slow motion diegético, na enfermaria da triagem, quando precisa que tudo em volta interrompa seu ritmo normal para, com um olhar, transferir à Lucy toda sua significação de presença feminina na família, que dali para frente precisará abandonar. À ela também é possível transmitir sua voz ao até então mudo Pietro, e com uma frase proferida pela primeira vez no último momento do filme, garantir sua entrada no país. Se ficasse, Fortunata atuaria exatamente como a sobreposição de civilizações que Crialese quis negar desde o começo, forçando eventualmente a América a, de fato, ser a terra do sonho americano. Ela parte, e deixa seu filho, muito menos poderoso mas igualmente encantado pelo homem em que se transformou, e caberá à Salvatore propor a saída para todos os Mancusos, Noodles e Corleones não sucumbirem à decepção. Nunca a idéia de um mergulho onírico foi tão bem representada, e no mar de leite em que se transforma a tela branca de Mundo Novo, Salvatore, seus filhos, sua nova mulher, e todos os outros com quem acabou de se ligar, nadam sem rumo aparente. Sinnerman, where you are gonna run to?No rumo do sonho, respondem Emanuele Crialese e seu Mundo Novo, obra-prima da paixão pelo humano. Sempre no rumo do sonho.


Rodrigo de Oliveira

 

 





A Imagem que se esvazia...


... e a outra que se completa


A modernidade, entre a ordenação
e o feeling good de Nina Simone



Legumes do tamanho do sonho