Creditado
como uma co-autoria entre o diretor Ryan Fleck e sua
co-roteirista e produtora Anna Boden, seria um tanto
justo que a este “a film by” comunitário se juntasse
o nome de Ryan Gosling, que dá face e alma ao filme.
Numa atuação absolutamente física, filmada muitas vezes
com a câmera colada ao seu corpo, Gosling é o guia para
esta jornada ambígua que Fleck e Boden pretendem mostrar.
É verdade que se trata de um filme de dois pólos, onde
Gosling, um professor de história numa escola pública
que tem as suas horas vagas regadas pelas mais variadas
drogas, é oposto a Drey, sua aluna cuja maturidade permite
freqüentar os ambientes menos prováveis com imensa sobriedade.
O trabalho de Shareeka Epps como Drey é bastante eficiente,
mas talvez pelo funcionamento de sua personagem, que
possui um caminho mais tranqüilo dentro do filme, ela
não consegue ter o mesmo impacto de Gosling.
Filmado em 16mm, o filme é inteiramente feito com a
câmera na mão. A capacidade de Fleck de conseguir fazer
uso deste formato é algo raro, sem transformar em nenhum
momento a câmera na mão numa virtuose tremida. A fotografia
é cheia de pequenos detalhes, mudanças focais, com as
cores trabalhadas geralmente num tom desbotado, e a
presença constante do grão na imagem. A forma como consegue
equilibrar todos estes cacoetes formais é realmente
interessante, a mostra de um olhar talentoso que está
em constante busca pelo melhor modo de se aproximar
de seus personagens. Ele também não abusa da câmera
colada aos atores, utilizando-a apenas em alguns momentos,
a grande maioria deles em torno do personagem de Gosling.
Half Nelson é também um filme de forte teor político,
especialmente no trato com seus personagens. Se Dan
(Gosling) é um professor de carisma e talento inegável
no tato com os jovens, mas possui uma vida pessoal complicada
e tortuosa, ele está longe de ser o único personagem
cuja vida possui um estranho equilíbrio. Por exemplo,
não há maldade no traficante interpretado por Anthony
Mackie, um grande amigo do irmão de Drey, que está preso
(muito provavelmente pelos negócios com Mackie). Ele
genuinamente tenta se aproximar dela, que com um pai
sumido e uma mãe ausente pelo trabalho, vive solitária
demais. Vai ao seu jogo de basquete na escola – ressaltando
a importância de que alguém a represente –, protege-a
nas ruas, lhe dá abrigo nas tardes. Até mesmo quando
Drey a ajuda com seus negócios escusos, isso não significa
que ele esteja abusando dela, justamente pela postura
de ambos os personagens: Drey, madura demais pra ser
coagida numa exploração; Mackie, um carinho grande demais
pela personagem para colocá-la em perigo contra sua
vontade. O filme constantemente aponta para um caminho
perigoso, mas o cineasta sabe o ponto exato de cortar
e se recuperar. É um filme irregular em certa medida,
mas bastante consciente daquilo que pretende.
Sobram ainda alguns simbolismos com os quais o filme
não lida tão bem. Por vezes são interessantes, mas parecem
sempre se aproximar do simplório demais. O mais explicito
deles é o band-aid que Gosling usa após levar um soco
em seu lábio, no momento em que seu personagem está
mergulhando no fundo do poço. O band-aid carrega a imagem
da bandeira americana, um simbolismo até compreensível,
mas que de tão bobo e desnecessário perde qualquer interesse
do ponto de vista político. As crianças recitando momentos
da história americana possuem bem mais força, mesmo
que por vezes soem questionáveis. A cena que mais funciona
destas seqüências é aquela em que, após recitar uma
destas situações – sempre acompanhadas por imagens de
arquivo do evento –, uma menina vira para o professor
e questiona: “isso realmente aconteceu?”.
O que talvez falte a Fleck (e Boden, como querem) é
a percepção de o que há de mais forte do ponto de vista
político no filme, e que isto não se encontra nestas
alegorias mais diretas. Não é na sensibilidade que reside
o talento do filme e de seus autores, cuja câmera possui
um aspecto físico bem mais forte. A força do filme por
este ponto de vista está na forma como conduz e mostra
estes personagens, suas relações entre si, independente
de qualquer ação insensata que venham cometer. É isso
que dá a estes personagens uma imagem imensamente crível,
e por isso mesmo garante ao filme um teor intensamente
político. São sujeitos imperfeitos antes de qualquer
outra coisa, e que tem na sua capacidade de seguir em
frente, com suas crenças e erros, um otimismo voraz
e raro. É a estas figuras que Fleck precisa encontrar
como mostrar, com sua câmera flexível, sua imagem granulada,
sua constante procura. Bastava não se perder em algumas
destas anedotas fáceis e Half Nelson seria um
filme brilhante.
Guilherme Martins
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