SARABAND
Ingmar Bergman, Suécia, 2003

O único extra do DVD de Saraband é um making of do filme. E é o suficiente, o melhor extra que vejo em muito tempo. No vídeo, um Bergman descontraído, brincalhão e generoso com os atores substitui a imagem do gênio tirano e ranzinza que tanto fãs quanto detratores gostavam de cultivar. A atenção ao mínimo detalhe, o ensaio exaustivo de algumas cenas, a exigência com os atores, a meticulosidade na construção dos cenários e dos planos, tudo isso está lá. Mas a maneira de conduzir essa orquestra é sempre doce, sempre paciente e atenciosa. Antes de esgotar a maturidade do diretor numa figura de vovô gente boa, o making of ilustra um processo de composição que abre novas perspectivas sobre a obra do diretor sueco. Novas perspectivas sobre Bergman, a essa altura do campeonato? Sim. Na primeira reunião com o elenco, como é mostrado no making of, ele resolve “levar para o pessoal” e conta de que forma recebeu a morte da esposa. Era para ser simples, uma pessoa estar viva e depois estar morta, mas existia um complicador: ele não conseguia aceitar a idéia de que não veria mais a esposa, nunca mais. O que fazer? Erland Josephson, seu eterno ator, deu-lhe o conselho valioso: não desista de vê-la. E Bergman seguiu o conselho, não desistiu. Mas inverteu as expectativas, realizando Saraband como a experiência da morte em vida. Já vimos, em tantos outros filmes, os mortos revisitando o mundo dos vivos, ou os vivos tendo uma experiência de interseção com a morte. Agora é como se a morte fosse trazida para a própria experiência de vida, fosse transformada no avesso cúmplice do ser-vivo. Do simbolismo fácil de O Sétimo Selo e Morangos Silvestres, Bergman salta para algo muito maior, e faz seu grande filme sobre aqueles mesmos temas: a morte, a família, o medo da loucura, a misantropia.

Johan (Josephson) e Marianne (Liv Ullmann) retornam após 30 anos: eles vêm de Cenas de um Casamento, um dos poucos filmes de Bergman que resistiram a todas as revisões. Retornam e se põem face a face, já na segunda cena do filme, para dizer do que Saraband se constrói basicamente: cenas a dois. Ex-marido e mulher, pai e filha, mãe e filha, pai e filho, filho e ex-mulher do pai, neta e ex-mulher do avô. Dos cenários montados em estúdio, quase sempre alguma janela é deixada aberta, dando para uma paisagem (trompe l’oeil, ok, mas isso pouco importa) que areja o huis clos familiar com doses de bucolismo e juventude. A natureza é o que permanece jovem – não por acaso, a única personagem autorizada a possuir uma cena externa, correndo pela floresta, é Karin, a única jovem do filme. Ela corre por entre as árvores e cai à beira de um pequeno lago. Após equilibrar-se sobre um tronco que divide a terra e a água, Karin se encaminha – conscientemente, ao que parece – ao fora-de-campo. Ela sai de quadro pela borda inferior. Se fosse num filme de Hitchcock, não teríamos dúvida: a saída de quadro pela borda inferior não poderia pontuar senão a morte da personagem. Mas em Bergman não é bem assim. Até porque a cena não termina depois que Karin sai de quadro: a câmera permanece fixa, mesmo plongé sobre o laguinho, quadro vazio, ouvimos dois ou três gritos esganiçados de Karin e ela retorna, pela mesma parte inferior da imagem, pelo mesmo lugar por onde saíra, agora de costas. De alguma forma, sua camisola vira uma fantasia de fantasma. Mas o temporário abandono do quadro não significou sua morte, e sim a aquisição de uma nova camada de vida, ou de uma nova forma de vida. A partir desse momento, Karin traz para o mundo dos vivos um eco (seu grito ecoa como poucos gritos haviam ecoado na história do cinema) de outra dimensão. Quem sabe assim ela não consegue interpretar no violoncelo a sonata anteriormente impossível? Karin não podia tocar a sonata de Hindemith porque estava demasiado viva, enquanto a música solicitava um paradoxo: “viva, sem expressão”. Será esse o preço da arte em Saraband, aproximar-se deliberadamente da morte?

Bergman, vívido, hiperativo no set de filmagem, mais do que nunca encarou a criação como um namoro com a morte, a solidão e a loucura – um namoro juvenil, inconseqüente. Ele fez um filme que tem entre seus protagonistas uma foto, uma foto em preto e branco de Anna, a falecida esposa de Henrik. Anna é o elo que falta entre Henrik e Karin (pai e filha). Da mesma forma, Martha, que só será vista no epílogo, é o elo ausente na história de Johan e Marianne, personagem jogada a escanteio para aparecer num final desconcertante, em que a matéria estética de Persona é retomada e dá vazão a um distúrbio profundo do campo-contracampo. “Pela primeira vez me senti tocando minha filha”, diz Marianne. O toque, o carinho que ela faz no rosto de Martha, é o afeto-distúrbio que leva esse campo-contracampo de Saraband a um terreno quase sobrenatural. Mais uma cena a dois, mais uma troca de sorriso e de choro. Godard certa vez fez um filme em doze tableaux (Viver a Vida), que eram doze formas diferentes de filmar um diálogo entre um homem e uma mulher. Bergman fez Saraband em dez capítulos mais prólogo e epílogo, somando igualmente doze. Porém seus quadros não exigem exatamente a interação homem-mulher: exigem o número dois e a presença-ausência de um terceiro. Um morto, um vivo e um morto-vivo. Anna, Henrik e Karin, por exemplo.

Por que Johan e Marianne se reencontram, afinal? Por que ele atravessa o crepúsculo da vida e ela sentiu que devia passar uns dias – os últimos – ao seu lado? Talvez. O que importa, no entanto, é que a “última noite” deles fica registrada com toda força. Na “hora antes do amanhecer”, Johan vai ao quarto de Marianne e eles deitam nus na cama, para um último sono tranqüilo lado a lado. Os corpos repousam calmamente, a inquietação de Johan se dissipa na penumbra. Outra cena de interior, outra cena de “câmara”. E aí a pergunta: um filme para a televisão? A telinha sempre serviu como um detector de mentiras para certos filmes – aquele movimento de câmera que na tela gigante causa impacto pode se ver ridicularizado na “redução” para a TV (efeito estético anestesiado, ausência de significado detectada, resta o quê?). Mas e um filme pensado para a televisão, pode ele ser reprovado na sala de cinema? No caso de Saraband, duvido. As câmeras fazem a cobertura do espaço, o cenário é artificial, o som está colado à imagem... E o que vemos emergir de cada um desses procedimentos tipicamente televisivos é uma coisa um pouquinho mais antiga na história das invenções humanas: o cinema. Se Karin não fica quieta enquanto fala, anda de um lado para outro contando para Marianne a briga que teve com o pai, a câmera tenta acompanhá-la, reenquadra, tenta ser tão selvagem quanto a personagem – câmera de televisão. Num momento seguinte, contudo, na já descrita cena da floresta, é o fora-de-campo que se torna crucial para o filme (a TV não era destituída do fora-de-campo?). Prova de que seria interessante se o filme tivesse entrado em cartaz nos cinemas daqui antes do lançamento em DVD. A tela gigante só teria a acrescentar à nossa experiência com o filme.


Luiz Carlos Oliveira Jr.

(DVD Sony Pictures)

 

 






Bergman troca segredos no set de Saraband


Olhar fixo na atriz, até a hora de dizer
com convicção: "Corta!"


Karin corre pela floresta...


... equilibra-se sobre o tronco...


... sai de quadro pela borda inferior...


... e retorna.


Última cena de um casamento


O toque mágico