LIANNA
John Sayles, Lianna, EUA, 1983

Lianna, e desde o título a definição de um caminho. É por esta personagem que se está criando um filme, é sua história que John Sayles quer acompanhar, e não apenas isso, mas propriamente viver com ela estas experiências, impregnar o filme de Lianna e, eventualmente, tirar daí imagens de consistência e intimidade que nenhum outro modo de aproximação seria capaz de fornecer, e por isso fazer personagem e filme compartilharem o mesmo nome – eles serão, eventualmente, um só. Criar tamanha relação com um objeto de atenção exige o estabelecimento de uma distância entre ele próprio e aquele que o observa, que na verdade não significa muito para a materialidade do filme em termos de tamanho. Se veremos Lianna de cima ou se seremos jogados para seu interior, se nosso olhar será sempre desviado por algum obstáculo ou se estaremos frontalmente colocados à ela, isso pouco importa, desde que, seja qual for esse ponto-de-vista, ele consiga se traduzir numa ética de aproximação, automaticamente ligada a uma estética que dê conta da relação pretendida. O interesse de Sayles por sua protagonista aparece sempre bem claro, e a distância pretendida é a menor possível, participar com Lianna de sua pequena revolução sentimental é uma atitude da qual o filme não abre mão, e no entanto, veremos esta pretensão ser transtornada por uma série de interrupções dessa participação, momentos em que Lianna-filme e Lianna-personagem se separam, passando a se comunicar de maneira muito diferente daquela que se anunciava inicialmente.

É especialmente num certo didatismo tomado como natural, necessário até, que Lianna encontra seus maiores ruídos. Desde os primeiros indícios de problema no casamento até a descoberta da homossexualidade e o envolvimento com outra mulher, há sempre na trajetória da protagonista um excesso de consciência, expresso sobretudo nos diálogos sempre ágeis e “significativos”, que tornam literais demais certos sentimentos já claros apenas pela ocorrência dos olhos de Linda Griffiths na tela. Não parece casualidade que o marido de Lianna seja um professor de cinema e que sua amante dê aulas de psicologia. Sempre que a vontade de compreensão transforma-se numa vontade de explicação, o filme preenche suas imagens com construções informativas que parecem ignorar o caráter absolutamente sensorial com que este contato com a personagem havia se estabelecido. Talvez por conta da própria temática, sendo a homossexualidade algo que precisava de muito mais explicações no começo dos anos 80 do que hoje em dia, Lianna se atrapalha ao incorporar esta dúvida à narrativa. Se consegue alguma verdade nas perguntas um tanto ingênuas que a amiga Sandy passa a se fazer depois da revelação, é na figura do marido e de Ruth, a amante de Lianna, em sua constante função de imporem provas à protagonista, que Sayles não consegue disfarçar suas próprias dúvidas e limitações na concretização da relação idealizada.

São, no entanto, em dois grandes momentos, a primeira transa entre Lianna e Ruth, e depois na última, quando a separação já estava anunciada, que o diretor chega finalmente ao coração de sua proposta de mergulho absoluto nas estruturas de um personagem errante, tomado pelo estranhamento de uma nova situação existencial, quando precisa rearrumar seus conceitos e afetividades de acordo com aquilo que aparece diante de sua vida pela primeira vez. Ali se aproxima daquilo que no filme seguinte, Um Irmão Vindo de Outro Planeta, sua obra-prima, seria a declaração de um cinema totalmente devoto de seu protagonista, quando todas as possibilidades dramáticas e narrativas estarão dispostas exclusivamente para que se consiga corresponder aos estímulos vindos desta figura central. No primeiro momento, depois de um longo flerte no sofá da sala, onde Sayles esquadrinha a relação simples de um diálogo entre duas pessoas das maneiras mais criativas possíveis, sempre enquadrando Linda Griffiths e Jane Hallaren a partir de uma composição de seus rostos (certamente referenciado no que Bergman faz com Liv Ullmann e Bibi Andersson em Persona), chegamos à cena de sexo, e sob as imagens dos dois corpos nus se combinando na cama em posições diversas, ouvimos um murmúrio, algo dito entre as amantes, misturado com o que parece uma leitura de algum poema ou letra de música, mas com o compasso acelerado e a economia de sons que o assemelham à oração de alguém diante de um altar, como se aquele ato sexual, destituído de “sentido” e “verdade” pela consciência preconceituosa, fosse devidamente sacralizado em toda sua beleza e comunhão a partir uma idéia muito particular do que seja divino.

Pelo fim, Sayles mistura as cenas da última relação entre Lianna e Ruth com a apresentação de um casal de dançarinos num teatro, onde a protagonista é voluntária na direção de iluminação do espetáculo, embalando essa montagem paralela com uma música melancólica, forçadamente over. No meio disso tudo surge o rosto cheio de lágrimas de Linda Griffiths, visto em zoom cada vez maior na tela, equilibrando as memórias de seu amor e a tradução casual e incrivelmente precisa de sua relação pelo balé do casal em cena. Se existem no meio alguns atropelos, o modo como John Sayles apresenta e encerra nossa relação com a protagonista garantem que houve ali um sucesso significativo neste casamento entre filme e objeto. E ainda assim, quando Lianna acaba, temos a impressão de que tudo ainda resta a ser dito e vivido. Lianna, a personagem, permanece, ainda vibra mesmo quando os créditos já aparecem na tela, e é essa talvez seja a maior tradução de sua grandeza.


Rodrigo de Oliveira

(DVD Aurora)