CINEMA DE OUTROS TEMPOS
Miami Vice e O Novo Mundo

Não é somente a presença de Colin Farrell que marca semelhanças entre Miami Vice e O Novo Mundo. Aparentemente distintos, seja na forma ou no conteúdo, os dois filmes revelam uma sintonia significante, aproximando-se de um novo cinema, em que uma outra condução do tempo se instaura. Ambos os filmes trabalham uma nova forma de condução espectatorial. O devir cinematográfico se revela na fluidez da imagem e a narrativa se constrói em cima do encadeamento de planos que, sozinhos, operam em outro sentido. A autonomia que detêm diferencia-se de quando contextualizados no todo do filme. Cada plano revela uma significância e um valor próprio – seja na beleza de composição de quadro, seja na dramaticidade narrativa – deslocados no plano seguinte. Estamos falando de um dos princípios básicos do cinema: a montagem. Não se pretende valorizar cada plano ou destituí-los de autonomia em função de um todo. As duas operações funcionam concomitantemente, e se por ora cria-se uma narrativa, ou um fluxo de sensações, causados por cortes fluidos ou bruscos, por outro, cada plano revela um despertar de prazer, proporcionado pelo apuro que se detém naquele tempo inscrito entre um corte e outro.

É verdade que o advento do digital possibilitou a extensão toda da duração de um plano, vide filmes como Arca Russa, composto de um único e enorme plano-seqüência. Alfred Hithcock já tinha questionado, por diversas vezes, o postulado da montagem, fosse em Janela Indiscreta, em que colocava à prova o efeito-Kuleshov, fosse em Festim Diabólico, em que punha em cheque a montagem invisível (levando essa ao extremo, uma vez que quase eliminava o corte, pois este era feito sempre no preto). No cinema moderno, ao contrário do cinema clássico, em que a montagem invisível era quase uma premissa, instalou-se um novo procedimento em que a montagem chamava a atenção para si ("mostragem"). Os jovens diretores da nouvelle nague são exemplos evidentes de como pensar o dispositivo e quais as variabilidades de interferência no contínuo espectatorial. Godard, com seus falsos raccords e seus jump-cuts, tirava o espectador de sua posição pacífica (Acossado, O Pequeno Soldado, Uma Mulher É uma Mulher). Resnais, intercalando planos cujo tempo original era indeterminado, mesclava camadas históricas que atualizavam certas imagens e sensações (Hiroshima, Mon Amour, O Ano Passado em Marienbad).

Mas o cinema contemporâneo parece rumar em outra direção: a experimentação de um tempo outro, nem indeterminado, nem confuso. Um tempo específico que se constrói na extensão dos planos, no encadeamento entre eles, na disposição de quadro e da forma em que um está ligado ao outro. Esse tempo inscreve uma nova sensação na espectatorialidade: a de suspensão, proporcionada certamente pelo fluxo de imagens e som. Quando o casal protagonista de O Novo Mundo – John Smith e Rebecca – se conhece, o que Terrence Malick proporciona são planos sem duração determinada – que variam do mais longo ao mais curto – montados sem obedecer qualquer regra de raccord – de movimento, olhar, direção – ou qualquer continuidade de tempo. O plano que segue o anterior pode estar em continuidade, pode ter acontecido 10 segundos depois, pode ter acontecido 1 hora depois, ou pode até mesmo ter ocorrido antes do plano que o precedeu. Talvez estes fossem também jump-cuts, se a tal expressão já não tivesse associada à impressão de salto na imagem (como falha ou erro). O conseguido por Terrence Malick, no entanto, é bastante diferente, pois ao contrário de chamar a atenção com a montagem, ele mascara uma transição, tornando não o tempo diegético indeterminado, mas menos importante. Para Malick, cada descoberta dos protagonistas, com todas as contraposições que se colocam – colonizado/ colonizador; velho mundo/novo mundo; homem/mulher; – são importantes o suficiente para merecerem um tempo específico. Rebecca, então Pocahontas, descobre as palavras em inglês tocando os lábios, a boca, os olhos de John Smith. A câmera que acompanha esta descoberta está à mercê do contato que se estabelece. Sempre à espera, parece querer descobrir, tirar o véu que o casal ainda veste. Com movimentos ininterruptos, que fogem de afetações ou virtuosismos e são executados com extrema sutileza e fluidez, ignorando também quaisquer regras pré-estabelecidas, o resultado obtido é o do fluxo contínuo. Se não se pretende chamar a atenção com a montagem, também não se pretende esconder cada corte. Podemos pensar num outro estado da imagem cinematográfica (um terceiro estado), que já não funciona a partir de uma relação sensório-motora, ou seja, por ação e reação (característica ao cinema clássico), nem a partir da interrupção desta, que gera a imagem-tempo (característica ao cinema moderno). Isto para ficarmos nas classificações de Gilles Deleuze.

O fluxo de imagem que coloca o espectador neste tal estado de suspensão não limita sua concentração em nenhum elemento aparente – seja formal ou narrativo – mas proporciona uma fruição que, se não chega a impor um estado de transe, não está longe disso. Este estado espectatorial não é conquistado, no entanto, apenas pela fluidez das imagens, ainda que esta se faça determinante, mas também pelo trabalho de som. Neste caso, o trabalho específico de iluminação e enquadramento (fotografia), que se pressupõe quando se fala em imagem, encontra-se aliado ao som, de maneira que um reitere o outro e funcione de forma autônoma (e não numa união invisível), recaindo na montagem fluida e contínua. Em O Novo Mundo, a trilha que acompanha as imagens muitas vezes ignora a sincronia com o visual. Não apenas ela não é mera acompanhante, como é também elemento narrativo, bem como a fotografia ou a montagem. O trabalho estético e de som incrementa e compõe a narrativa. Da imagem e do som nascem as histórias, ou ao roteiro eles se somam. A voz off, quase onipresente no filme, funciona na mesma cadência da imagem, trabalhando com a mesma especificidade e premissa. Portanto, assim como as opções de montagem de imagem, o som, e especificamente a voz off, aparecem sem respeitar qualquer ordem cronológica ou narrativa. Os tempos que se confundem não são indeterminados – como acontecia em Hiroshima, Mon Amour ou O Ano Passado em Marienbad –, são aleatórios e livres. O que há é uma despreocupação com o tempo que constitui o filme, transmitido livremente ao espectador.

E se isso se aplica a O Novo Mundo, podemos dizer o mesmo de Miami Vice, em que, imbuídos no espetáculo visual que Michael Mann propicia, somos convidados a embarcar na imagem, perdendo a noção temporal. Os 40 minutos finais do filme – de puro deleite visual – ignora toda uma relação de tempo que havia sido construída até então. O diretor valoriza (positivamente) o tempo das ações, não somente estendendo a duração dos planos, ou reiterando movimentaçõo dos planos, ou reiterando movimentaçupervaloriza (positivamente) imagem, perdendo a noção temporal. Os 40 minutos finais do filme – de puro deleite visual – ignoram toda uma relação de tempo que havia sido construída até então. O diretor valoriza (positivamente) o tempo das ações, não somente estendendo a duração dos planos, ou reiterando movimentações antes feitas, mas simplesmente abstraindo qualquer preocupação com o tempo diegético. A noite de Mann não termina nunca. E é nesta noite que o diretor vai trazer à tona as idiossincrasias do homem contemporâneo. Se a premissa beira o clichê, não édesta vez que Mann recai nele. Ao contrário, ele o tangencia e se volta para, no meio de uma trama policial, a inserção de histórias amorosas e conflitos internos, que dizem respeito também à alteridade.

A "modernidade" de Miami Vice contrasta-se com o "primitivo" de O Novo Mundo. Em ambos os filmes, estes fatores se fazem valer de maneira influente e definitiva, pois as narrativas encontram-se devidamente contextualizadas historicamente (embora não inscrevam um tempo definido). Se Malick faz de John Smith um sujeito rude, não é para estabelecer conflito com a sutileza do tratamento cinematográfico a ele aplicado, mas sim para expor a vastidão (até espacial) da trama, que o obriga a tornar-se um homem da natureza, seja material ou emocionalmente. O mesmo Colin Farrel, em Miami Vice, também não aparece como o sujeito sensível que se choca com a aceleração da contemporaneidade, que tenderia para um nível de stress que não pertence ao personagem. Da mesma forma que Malick, Mann apenas coloca seu personagem em seu espaço e deixa que ele siga seu caminho. Por outro lado, se Malick nos apresenta a John Smith – assim como àquele novo espaço a ser descoberto – Mann ignora as apresentações e nos joga na narrativa da mesma forma que joga o personagem nos anos 2000 (perdendo a referência aos anos 80 que caracterizava a série), deixando que ali ele se encontre (ou desencontre).

Na película de Malick ou no digital de Mann não é apenas o trabalho formalista que ganha importância. Não se pode falar em superficialidade narrativa, pois ambos os filmes levantam questões que vão além do espetáculo visual. As relações amorosas, que nos dois filmes não podem ser concretizadas, ganham terreno e nelas se depositam os conflitos internos intrínsecos aos relacionamentos, além de outros que caracterizam os supostos heróis John Smith e Sonny. A precisão e a intensidade de pensamento que são devidamente colocadas em Miami Vice nos permitem ver o trabalho formal como ferramenta narrativa. As conseqüências das possibilidades estéticas do filme terminam, portanto, por ganhar uma função dramática. Assim, pensando na autonomia dos planos ou na sua desenvoltura quando encadeados, cairemos, uma vez mais, em planos conceito-sentimentais, que, devidamente posicionados, proporcionam a fluidez das imagens, culminando no estado de suspensão espectatorial. É na forma, e no uso que faz dela como dispositivo, que Mann se apresenta como diretor, distanciando-se de um cinema enquadrado nos padrões clássicos da produção dos Estados Unidos. Sem ignorar as distintas tendências que marcam este cinema, Mann estabelece com elas um diálogo, não perdendo de vista seu caminho e avançando sempre.

A homogeneidade que Mann havia criado na estética de Colateral é agora absolutamente desfeita, e a câmera de alta-definição de Miami Vice não esconde os "defeitos" do digital, mas, ao contrário, tende a valorizá-los, ou ao menos trazê-los à tona. O resultado é um filme heterogêneo, em que numa mesma seqüência de campo-contracampo obtemos estéticas diferenciadas, sendo a posição da luz determinante no processo. O campo iluminado se apresenta de maneira habitual, mas o contracampo, sem luz, reaviva todos os grãos que o digital proporciona. Há uma quebra na continuidade estética. Mas se estamos falando em fluidez da imagem e contínuo espectatorial, como colocar Miami Vice e seu caráter estético heterogêneo neste mesmo "bloco"? Ora, pois os planos do filme mantêm a mesma autonomia que já havia em O Novo Mundo, por exemplo. E neste cinema, sobre o qual aqui se especula, é possível (e fundamental) a coexistência de planos que exerçam forças autônomas e seqüências que façam destes planos, quando encadeados, uma combinação e imbricação que desemboquem no contínuo cinematográfico (não necessariamente narrativo). O caso de Miami Vice parece ser este. Se num primeiro momento, ainda estranhamos as diferenças de granulação a cada corte, no momento seguinte, as naturalizamos e tornamos estes cortes nem naturais nem chocantes, vendo-os como elemento de construção do filme. O corte passa a ter uma beleza e um valor próprio.

E se existe uma série de diferenças entre O Novo Mundo e Miami Vice, elas não são da ordem de uma polaridade, marcada pelos binômios dia/noite, primitivo/moderno, selvagem/urbano, natural/artificial, película/digital. O que interessa neste momento é de que forma os dois filmes, ainda que apresentem todas variações temáticas e de dispositivo, operam também numa mesma cadência, num cinema-fluxo. E se a escolha destes filmes se coloca aqui não é somente pela fruição espectatorial proporcionada, tampouco pelo estado de suspensão que eles impõem (ou ao qual convidam). Para tal, poderíamos citar filmes que extremizam a idéia: Mal dos Trópicos, Café Lumière, Juventude em Marcha (exibidos respectivamente no Festival do Rio em 2004, 2005 e 2006). Mas o que tornam específicos O Novo Mundo e Miami Vice é sua transição entre o cinema comercial e narrativo de Hollywood, e as desconstruções (temporais, espaciais, narrativas) presentes num nicho de filmes – que não formam um bloco, mas dialogam entre si – exibidos exclusivamente, e infelizmente, nos festivais de cinema no mundo. Miami Vice e O Novo Mundo são duas obras que não apontam um caminho, e talvez, neste sentido, transição não seja a melhor expressão a ser aplicada a eles. Poderíamos falar em meio termo, entre o cinema-fluxo e o cinema-narrativo, transitando e dialogando com ambos, sem abandonar a premissa que rege o cinema clássico, flertando para uma outra relação temporal que se notifica neste "outro" cinema.

Assim, em última instância, Terrence Malick e Michael Mann são nada mais do que contraventores do cinema contemporâneo. Transitam entre a experimentação e a tradição, entre o novo e o habitual, sempre atualizando as imagens, criando narrativas fabulosas e tempos inexplicáveis.


Raphael Mesquita

 

 











Três momentos de O Novo Mundo...






...e três momentos de Miami Vice.