A DAMA DEIXA A VILA
Sobre os caminhos de Shyamalan

"Uma tempestade está vindo", anuncia Story. A sensação de iminência de um acontecimento grave, de uma ameaça de ataque, percorre tanto A Vila, quanto A Dama na Água e, porque não dizer, Sinais. Pautada pela separação entre dois mundos e pela tensão provocada por sua aproximação, essa sensação encontra-se traduzida nos filmes de Shyamalan pela expressão cinematográfica do medo: o suspense/terror. Se é possível enxergar na obra do cineasta alegorias políticas, elas só tem alguma validade na exata medida em que os universos criados por ele trazem em si uma percepção de mundo que intui uma certa noção de catástrofe. Em suas narrativas mais fabulares, A Vila e A Dama na Água, há um medo visceral, brutal, o medo da morte por criaturas, e um medo diretamente ligado a dados do mundo em que vivemos. Sem grande diferenciação entre si, ambos compartilham a necessidade de afirmar uma capacidade de fé primordial e o questionamento da existência de uma justiça, seja ela de qual ordem.

Talvez por isso o impulso de união, de formação de comunidades: a vila fechada, isolada na floresta, para escapar aos males urbanos; a união dos moradores do conjunto residencial. E, de certa forma, a aproximação dos membros familiares em Sinais. Em todos estes movimentos de agrupamentos humanos, sobrevem como fator agregador o poder de uma narrativa, de uma história, que funda e que prolonga o momento presente vivido pelos personagens. Em última instância, trata-se do poder da ficção. E que poder é esse da fantasia, capaz de originar núcleos de resistência e fazer frente ao mundo? Poder de narrador hábil para congregar pessoas em torno de um propósito comum, seja este proteger-se de crimes urbanos, devolver uma ninfa ao seu mundo ou realizar um cinema que abrace a ingenuidade e acredite num pacto inabalável com a imagem?

A grande afirmação de Shyamalan, em seu cinema que se impõe com docilidade e vigor ímpares, é, portanto, esta da crença na ficção como fé na vida. E, se ele é um cineasta hitchcockiano, é, sobretudo, por levar adiante a potência da imagem, por acreditar que a técnica cinematográfica "permite-nos obter tudo aquilo que desejamos, realizar todas as imagens que previmos" (Hitchcock em Hitchcock/Truffaut). Porque para Shyamalan, não há crime propriamente, uma vez que a noção de culpa não habita o seu cinema, e a morte vem como aquilo que não se explica, como o desafio a uma justiça do coração. A imagem, para ele, opera primordialmente a partir do que carrega em si, e não do que sugerem seus interstícios. Há transparência no seu mundo. Logo, o olhar, em seu cinema, não é o que confere peso à morte, mas o que potencializa a fé inocente, a pulsão de vida. Pois materializar um mundo (uma ficção) através da confecção de imagens é tornar visível a imaginação, no que ela traz de aparente e de oculto ou indizível (e, nesse sentido, ele não poderia ser menos hitchcockiano).

Ao ingressar mais diretamente no terreno da fábula, com A Vila, Shyamalan passou a tematizar de certa forma a própria questão da narrativa e da ficção em sua relação com a vida, inscrevendo-a em seus filmes e trazendo à tona uma moralidade virada do avesso. Porque uma vez retirada a noção de culpa, os seres são livrados às suas emoções mais básicas e a principal lição é a da inocência. Assim sendo, o bilhete arrependido de desculpas de Lucius, em A Vila, é saudado pelo Sr. Walker com um elogio à sua coragem e destemor. As regras e interditos que sustentam aquela comunidade só fazem sentido na medida em que são acatados e prolongados pela força das imagens que sugerem. E, nesse âmbito, o medo, a coragem e o amor são os motivadores imediatos de gestos, de ações. Talvez não por acaso, um dos mais marcantes planos do filme seja aquele que reúne estes três sentimentos num espetacular movimento sublinhado pela câmera lenta: Lucius pega a mão de Ivy, enquanto a criatura se aproxima ao fundo. O que impulsiona os dois jovens a prosseguirem o mito da comunidade são os sentimentos que os movem.

A Vila, no entanto, ainda era habitada por baús, por segredos e pela sagacidade de um planejamento capaz de aliviar as dores dos traumas (os motivadores da ficção para os anciãos). Mas, como diz o Sr. Nicholson, pai do menino enterrado no primeiro plano do filme, a dor não poupa ninguém, pois faz parte da vida. Ela só poderá ser remediada, então, pela esperança e pelo afeto, por encontros como o de Ivy e o guarda florestal, que atestam a validade de uma fé que prolongue a inocência (e, com ela, a ficção, em outros termos). E é desta inocência que parte A Dama na Água, radicalizando-a em sua suas implicações narrativas e cinematográficas. Porque se, em A Vila, a franqueza e clareza dos sentimentos já assombravam, no último trabalho de Shyamalan, elas chegam a constituir quase uma declaração de princípios. Não se trata mais da narrativa fundadora, da ficção que organiza o mundo (aqueles-de-quem-não-falamos-o-nome, rumores de livros de história, transformados em mantenedores de uma vivência pacífica), mas de uma narrativa que coexiste ao mundo (um elo foi estabelecido entre a vila isolada e o nosso mundo): a comunicação entre seres do Mundo Azul e os humanos costumava ser uma garantia de bem-estar, até desaprendermos a ouvi-los. O microcosmos já não aponta diretamente para um fora dele, pois é mundo e ficção a um só tempo, modificando de forma vital a relação do filme com o que encena.

A narrativa de A Dama na Água, bem a exemplo de um conto de ninar, é mansa, doce, e a ameaça dos monstros (assim como em A Vila) não representa um mal perverso, mas o terror, pura e simplesmente, o medo infundado, o pavor, e a ameaça da morte estúpida. E à medida que avança, ela vai se desnudando, explicitando frontalmente sua elaboração ao mesmo tempo em que aumenta seu poder de encantamento. Desta forma, Shyamalan põe a nu a ficção numa espécie de auto-reflexividade que não provoca rachaduras na imagem ou no pacto com esta. Extremando seu feito em A Vila, em que o ápice do medo ocorre por meio da força da mise-en-scéne, após a farsa já ter sido revelada, ele realiza um filme em que a clara exposição dos acontecimentos e a ausência de elementos ocultos aponta para a apreensão mais imediata das coisas, que aqui significa entregar-se a uma percepção infantil. Pois a percepção infantil é aquela capaz de fabular e de aceitar algo inusitado sem grandes questionamentos.

O fantástico de A Dama na Água, apresentado e assumido como fábula no início do filme, adentra a realidade do conjunto residencial vigiado por Cleveland sem pedir licença, e nele evolui, curtocircuitando a instância narrativa do filme e as enunciações narrativas em seu interior. Como se a crença que o filme possui em seu material, tornando tudo inegavelmente palpável, precisasse ser aprendida pelos personagens, que, embora reajam sem espanto, buscam uma forma de se relacionar com aquilo tudo e ainda sentem alguma necessidade de recorrer a chaves de compreensão, até que o contra-senso da interpretação (o crítico impertinente) seja devorado pela ficção pura do monstro. Porque para esse cinema que professa a inocência como partido de vida, o conto de ninar faz tanto parte do sonho que o segue, quanto a fantasia de ambos faz parte de uma vivência real. Por isso, é preciso encontrar os elementos certos e desaprender a narrativa clássica e aprisionadora a que estamos acostumados, para seguir o coração e os impulsos que fomos acostumados a significar.

Neste movimento, o filme entrega ao menino Joey e à sua dedução imaginativa o desfecho da história e o futuro da ninfa Story, que veio até nosso mundo imbuída do desejo de travar contato, nos orientar e transmitir informações sobre nosso futuro, a exemplo do que sua raça fazia num passado em que a Terra não era tomada pela malícia e maldade humanas e ainda tínhamos o dom de ouvir e acreditar. Shyamalan, como o cineasta que conduz esse conto em que a fantasia traz consigo uma "salvação do mundo", é também o escritor Vick Ran, que revolucionará o mundo com seu iluminado "livro de cozinha" (não sem o preço do seu próprio sacrifício). Ao mesmo tempo em que afirma a força da narrativa (a fábula, o filme, o livro) como sustento de mundo, ele ressalta que é necessário retornar a um estado de inocência primordial, aquele no qual a fantasia é plenamente acatada e a crença na imagem e nos sentimentos passa longe de questionamentos (a entrega do reino de volta às crianças), para justamente salvar o mundo e evitar a catástrofe que se aproxima.

Estranha e surpreendentemente "missionário", A Dama na Água é um filme frágil como Story, à espera de pessoas abertas e de coração puro, que possam assisti-lo, colaborar com a sua proposta e receber carinhosamente sua narrativa. Sua aposta numa espécie de "retrocesso" da imagem cinematográfica a um estado de pura afecção não encontra pares no cinema contemporâneo e assusta pela completa entrega. Absolutamente exposto, na sua sinceridade desconcertante, ele parece rechaçar com naturalidade qualquer desmonte crítico, pelo seu profundo desejo de ser cinema ao limite da rarefação, seja pela absorção sensível daqueles que a ele se entregaram, seja por sua diluição no mundo ao qual ele parece querer secretamente se fundir, não para desaparecer, mas para realizar-se completamente, como nos tempos ancestrais.


Tatiana Monassa

 

 





Ameaçada pela longa presença no nosso mundo,
Story começa a esvaecer. Para a sobrevida da ficção e
a prevenção de um desastre, é preciso a fé
e a inocência dos homens (A Dama na Água).