JAIRO FERREIRA E A CRÍTICA DE INVENÇÃO:
IMPRESSIONISMO DE ATRAÇÕES

1. Um cinema comercial péssimoe sublime

O crítico, cineasta, ator, fotógrafo de cena e jornalista Jairo Ferreira (que já enriqueceu a Contracampo assinando uma coluna) é hoje reconhecido quase que exclusivamente por ser o autor de Cinema de Invenção (primeira edição da Max Limonad, em 1986, reeditado pela Limiar, em 2000). Esse livro, um clássico da bibliografia sobre cinema brasileiro, continua sendo pouco lido e estudado, pois mesmo a segunda edição tornou-se logo rara nas prateleiras das livrarias. Mantém-se como o melhor ensaio crítico-poético-autobiográfico sobre o cinema dito experimental, marginal, udigrudi ou - como prefere Jairo - de invenção até hoje publicado. Não é um estudo acadêmico preocupado em extrair conclusões totalizantes sobre diferentes autores, mas um diário de bordo de uma viagem/de um mergulho existencial na criação. Conquistou pelo menos duas gerações com a sua concepção de montagem literária e despertou em muitos jovens realizadores o desejo de fazer cinema.

O recente lançamento do livro Jairo Ferreira e Convidados Especiais. Crítica de Invenção: Os Anos do São Paulo Shimbum (São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006, 288 páginas) traz à tona uma outra parcela da produção crítica de Jairo Ferreira, relativa aos anos 1966-1972. O volume, organizado por Alessandro Gamo, é uma fundamental contribuição à bibliografia do cinema brasileiro. Como o próprio título da coletânea indica, pode ser visto como o natural complemento de Cinema de Invenção, mas vai além. As críticas de Jairo Ferreira no São Paulo Shimbum, jornal da colônia japonesa paulistana, permitem que o leitor reconheça em seu titular não apenas o noticiarista da Boca do Lixo ou o cronista do cinema de invenção - o que já bastaria para torná-lo um dos nossos mais necessários críticos cinematográficos - mas também um atento observador do cinema brasileiro em suas múltiplas faces. Nada passa despercebido pelas antenas do crítico: Osvaldo de Oliveira e Glauber Rocha, Teixeirinha e Reginaldo Faria, Gustavo Dahl e Mazzaropi, José Mojica Marins e Ozualdo Candeias, Carlos Reichenbach e Carlos Diegues. Ao mesmo tempo, o cinema brasileiro não é guetificado: num mesmo texto - e, às vezes, a propósito de um mesmo filme, brasileiro ou estrangeiro - podemos encontrar comentários sobre William Wyler, Maurice Capovilla, Jules Dassin, Miguel Borges, Amácio Mazzaropi, Abraham Polonsky, José Mojica Marins e Luchino Visconti.

O crítico Jairo Ferreira era sobretudo um poeta. A sua coluna no São Paulo Shimbum possuía, aliás, grande parentesco com a de outro poeta da contracultura dos anos 1970, Torquato Neto (é só conferir o livro Os Últimos Dias de Paupéria). Em Jairo, o cinema e a vida se confundem e é nesse sentido que suas críticas podem ser lidas como poemas em prosa. Jairo Ferreira recorre às frases de impacto e a uma espécie de impressionismo de atrações. Entendendo o cinema como substrato da cultura pop, percorre um outro tipo de relação com as imagens/sons. Não mais o filme como oráculo ideológico, mas como janela para experimentações e desejos, muitas vezes não verbalizáveis. A consciência de que o cinema deveria passar a um outro estágio de comunicação com o público é traduzida por uma negação do discurso histórico cristalizado pelo cinema novo. Em 1969, na crônica "Um Fantasma da Vera Cruz", Jairo escreve:

Nesta geléia geral, alguém tem que fazer o papel de medula e espinha. Glauber Rocha propunha-se a isso, mas acabou abandonando vergonhosamente o país. A revisão que ele faz em 63, devia ser feita agora, incluindo o Ciclo Cinema Novo, outro capítulo encerrado. E agora parece que estamos livres dos falsos líderes. E Rogério Sganzerla já se autodestruiu. Será muito bom se entrarmos na década de 70 produzindo muitos filmes, todos péssimos, mas todos comerciais, todos não-ideológicos, ilógicos, caóticos e populares
(p. 107).

Este cinema péssimo, tal como o proposto por Jairo Ferreira, foi infelizmente praticado em proporções modestas, predominando o filme-selo-de-boa-qualidade que significava em geral o seu oposto. Por isso, para Jairo, tão importante quanto reconhecer um filme como O Caso dos Irmãos Naves, de Luís Sérgio Person, era valorizar o Osvaldo de Oliveira de Cangaceiro Sem Deus ou O Cangaceiro Sanguinário, produções da legendária dupla da Boca do Lixo Alfredo Palácios e Antonio Polo Galante. Não se trata de uma desgastada idéia de "diversidade" em prol de um "Cinema Brasileiro" escrito assim com maiúsculas pretensamente totalizantes. Nada mais longe do entendimento que o crítico Jairo Ferreira tinha do cinema do que este modelo de discurso ainda hoje tão comum aos ensaístas culturais.

Uma das grandes contribuições do livro organizado por Alessandro Gamo é justamente permitir ao leitor tomar contato com as propostas estéticas defendidas por Jairo, dentro de uma perspectiva de um cinema comercial. Percebe-se então que o caos é apenas aparente: há muito rigor nos estilhaços conceituais emitidos pelo crítico do Shimbum. No calor da briga política - contra o INC (Instituto Nacional do Cinema, órgão oficial da ditadura militar) e o cinema novo, por exemplo - Jairo defende determinados filmes que ele acredita serem propositivos, isto é, que oferecem uma saída para um cinema periférico e não-industrial, como é o caso do brasileiro. Assim, o leitor de hoje, que já conhece Jairo Ferreira como um agente difusor do cinema de invenção, passa a tomar contato com um outro viés do seu pensamento, traçado a partir das críticas no São Paulo Shimbum. Nelas, Jairo efetivamente procura indicar que tipo de filme poderia ser viável para o Brasil dos anos 1960 e 1970.


2. Um cinema realista e político


Alguns parâmetros são insistentemente apregoados por Jairo Ferreira ao longo dos anos em que escreve sua coluna. Chama a atenção, por exemplo, sua defesa de um cinema político e realista, particularmente louvado a propósito do já mencionado O Caso dos Irmãos Naves, de Person. Numa crítica escrita em 1967, o filme é elogiado por ser um "documento autêntico abordado com ficção e não menos verdadeiro". O diretor se manteve longe da "comiseração e da pieguice", explorando o assunto "com grande realismo".

Pela objetividade e integridade, chega a surpreender a estrutura do roteiro. Excelente a montagem. A narrativa é seca e vibrante, prendendo a atenção do início ao fim. Brilhante realismo e modernidade: é raro se encontrar, no Brasil, um filme dramaticamente tão despojado, limpo. Talvez desdramatizado (p. 43).

Jairo não entende a política e o realismo no cinema de forma acadêmica. Isto fica claro na crônica "Ernesto 'Che' Guevara" (de 26 de outubro de 1967, pp. 50-2), em que de forma arguta ele estabelece uma comparação entre O Bandido Giuliano (Salvatore Giuliano, de Francesco Rosi, 1961) e a exploração da imagem de Che Guevara morto. Antevendo a exploração massiva da mitologia revolucionária e sua conseqüente banalização, Jairo critica o processo de apropriação das imagens do guerrilheiro Guevara - tal como o bandido de Rosi - pelos discursos ideológicos de diferentes campos.

A valorização do realismo em Jairo Ferreira está atrelada ao grau de interferência política a que cada obra se propõe. Na medida em que o filme se coloca como discurso político aberto ao espectador, o realismo - entendido como despojamento da linguagem, incluindo aí certa secura em seu tratamento - é então visto como um passo necessário e até mesmo corajoso. É nesse sentido que O Bravo Guerreiro, de Gustavo Dahl (1969), é elogiado como sendo o representante de um "bom cinema político". Para Jairo, tratava-se de um filme "claro e limpo sobre a obscuridade e a sujeira". Dahl situaria-se entre a "alegoria" de Terra em Transe e o "realismo" de O Desafio, atingindo a "sobriedade" e até mesmo um saudável distanciamento necessário: "não sendo engajado, [o filme] também não é de esquerda, direita ou centro. Posição cabe ao espectador." O Bravo Guerreiro é "frio, inteligente, honesto". Jairo então se pergunta: o filme indicaria "um caminho em nosso cinema"? A questão fica sem resposta, pois "os exibidores acham que as platéias são burras, e o filme não pode se experimentar junto às massas" (pp. 83-5). A equação entre o cinema político e o cinema popular está na esfera de preocupações do jovem Jairo Ferreira, e O Bravo Guerreiro, um dos filmes exemplares da segunda fase do cinema novo, poderia até mesmo ser um caminho apropriado, caso o mercado interno de exibição não significasse um entrave.

Tal cinema político, realista e virtualmente comunicativo surge nas críticas de Jairo Ferreira em momentos estratégicos do livro. Este, aliás, é um dos principais méritos da organização de Alessandro Gamo. Por exemplo: o texto escolhido para abrir o período imediatamente posterior ao AI-5 é justamente o que dá conta de A Vida Provisória, de Maurício Gomes Leite (crítica datada de 09 de janeiro de 1969, pp. 69-70). O crítico assinala, logo no princípio, que o filme apresentava uma "ambientação provocante: o Brasil atual". E conclui: "Ao que tudo indica, será um dos filmes brasileiros mais polêmicos, inteligentes e dialéticos da presente temporada".

É mesmo curioso que a crítica "Dai-nos Novos São Bernardos" (pp. 276-7) tenha sido escolhida para fechar a coletânea. Publicada em 11 de maio de 1972 sob um pseudônimo oswaldiano de João Miraluar, esse pequeno texto, na verdade muito mais uma crônica que uma crítica, tem o valor de um balanço algo desconcertante dos impasses estéticos/temáticos do cinema brasileiro nos começos dos anos 1970. O tom de acentuada desilusão não salva nem mesmo o cinema experimental. O foco principal da preocupação de Jairo Ferreira é com a impossibilidade de um cinema político:

O aqui e agora é a lei da prateleira, lei do alçapão e da censura. Lei do papagaio, lei do antropófago. E contra elas atentam os filmes que dependem delas. O cinema político pode ser uma discussão sem saída, mas fora dele só existe a escuridão, o massacre, a macumba, as terapias e o terror subliminar (pp. 276-7).

Assim, as diversas propostas de um cinema popular ou experimental se vêem cortadas pela raiz. O "irracionalismo" de Gamal, o Delírio do Sexo, de João Batista de Andrade, a "nostalgia" de A Vida Provisória, de Maurício Gomes Leite, a diluição de O Pornógrafo, de João Callegaro, o "romantismo" de Memórias de Helena, de David E. Neves, a "autocensura" de A Guerra dos Pelados, de Sylvio Back, a "ignorância" dos filmes de Mazzaropi, o "caos" de A Mulher de Todos, de Rogério Sganzerla, o "vômito" de Jardim de Espumas, de Luiz Rosemberg Filho, o "cinema pelo cinema" de Audácia, de Carlos Reichenbach e Antônio Lima, e a "mistificação externa do folclore" de O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, de Glauber Rocha, são os resultados infrutíferos de obras importantes (p. 277). Dentro desse conjunto de filmes considerados pelo crítico como politicamente ineficientes e de um cinema rotineiro que procurava apenas "manter o status", Jairo aponta São Bernardo, de Leon Hirszman (1972) como "um filme perfeito", capaz de reativar polêmicas e se contrapor ao "papo embriagado e drogado das minorias, da elite, do individualismo, do fascismo, da solidão, esquizofrenia e outros babados muito em moda. Em cima dos quais alias o udigrudi fatura a dele" (p. 277).

Ao encerrar a coletânea de críticas no São Paulo Shimbum com esse texto, Alessandro Gamo parece nos querer indicar que hoje é preciso enxergar Jairo Ferreira não apenas como o cronista do cinema marginal, algo que evidentemente não daria conta da multiplicidade de enfoques do crítico e que terminaria por emoldurá-lo em um insosso diploma. Pela leitura de Crítica de Invenção, constata-se que Jairo nunca se manteve dócil mesmo em relação ao cinema que ele mais defendia; muitas vezes o leitor o encontrará em franco embate crítico com alguns dos nomes mais cultuados pela sua geração, como é o caso de Jean-Luc Godard e de José Mojica Marins, para citar dois dos mais importantes autores prezados pelo crítico. Destacando estrategicamente os textos em que Jairo Ferreira pensa sobre o cinema político, a coletânea nos ajuda a repensar as relações entre o cinema novo e o cinema marginal, ao mesmo tempo em que evidencia a existência de parâmetros bem definidos de acordo com os quais o pensamento de Jairo Ferreira sobre a viabilidade de um cinema brasileiro péssimo e sublime era paulatinamente construído.


3. Do realismo ao cafonismo: o filme de cinema

Ao lado do realismo e do cinema político, o livro apresenta um outro aspecto muito importante desse cinema proposto por Jairo Ferreira: a metalinguagem. São diversas as críticas em que seu autor defende não propriamente o filme sobre cinema mas sobretudo o filme de cinema. E seu intuito também se liga a um propósito político, muito próximo da denúncia do espetáculo - ou da reformulação do espetáculo em outras bases, isto é, em metalinguagem. Em julho de 1969, Jairo escreve sobre Audácia! (Carlos Reichenbach e Antônio Lima, 1970), e expõe suas idéias sobre o filme de cinema: o necessário era fazer filmes péssimos como diagnósticos da "face oculta" do próprio cinema brasileiro: "Trata-se de filmar a partir da impossibilidade de filmar. É preciso muita audácia para olhar em torno do cinema nacional. Olhar não para badalar os efeitos, mas para apontar os defeitos" (p. 92).

O filme de cinema é o conteúdo do cinema. Tudo fica claro quando a linguagem do cinema se volta sobre si mesma. [...] Os personagens são a ficha técnica: o diretor, o produtor, o diretor de fotografia, o assistente, o câmera, a continuidade, o ator, a atriz. Em suma: o cinema dentro do cinema. O filme de sexo é uma questão de abertura de diafragma (p. 93).

Este é apenas um aspecto do (gênero?) filme de cinema: filmes em 16mm ampliado ou direto no 35mm, em preto e branco, a câmera na mão e a invenção nos diálogos dublados, na mise-en-scène e no corte/colagem. Filmes portanto anti-industriais mas não necessariamente anti-comerciais - a referência ao "filme de sexo" não é gratuita. Por isso mesmo, há um outro tipo de filme de cinema no Brasil que interessa a Jairo: seus mestres serão José Mojica Marins e Osvaldo de Oliveira, o segundo mais conhecido na Boca do Lixo como o "Carcaça".

Ambos farão o cinema mais próximo daquele proposto por Jairo em diversas de suas críticas no Shimbum: filmes de horror e de ação, cores violentas, sangue e berros, sexo e tiros, selvageria estética e fluidez narrativa, filmes ilógicos e assumidamente comerciais, por isso mesmo experimentais: filmes de cinema. Jairo definirá Mojica como um "primitivo-surrealista" que filma a "realidade brasileira pelo avesso, pelo subjetivo". Por esta razão, o seu artificialismo se torna realidade. Mojica é um diretor de "semivanguarda" num cinema brasileiro que é predominantemente chanchadístico. Por isso é necessário devorar Mojica Marins, para sentir o "sabor do homem brasileiro gangrenado, tipo classe-média-para-baixo", uma "vítima antecipada da pseudo-revolução industrial" vivida pelo Brasil do começo dos anos 1970 (pp. 62-3).

Osvaldo de Oliveira, por sua vez, "documenta a ficção, mimetiza e desce ao nível do público". O filme Cangaceiro Sem Deus une Osvaldo "Carcaça" (diretor) a Mojica Marins (ator): trata-se de um "metacangaço", tão artificial quanto os filmes do Zé do Caixão. Por esta razão, Jairo louva o fato de que Cangaceiro Sem Deus foi rodado em Itu, interior paulista, e não no nordeste, onde "nem Glauber conhece". Os elementos dos filmes de cangaço popularizados por Carlos Coimbra e Lima Barreto são deglutidos por Osvaldo de Oliveira, que faz então "crítica violenta ao próprio gênero". Segue a maior parte dos westerns em seu investimento no inverídico. A ficção torna-se um documentário sobre a loucura da "gozação com a violência".

Eis o cangaço crítico: Mojica fez uma espécie de Zé do Cangaço com ilações de Zé do Caixão! Isto é filmar com liberdade. [...] Nada de "drama", de "trama", "realidade" - cinema é ilusão, invenção. É questão de zoom, de travelling na Kombi. O dever do cineasta é fazer cinema: Carcaça faz mais do que isso - massageia, bombardeia com ação, ação e mais ação (p. 105).

Um ponto comum a unir todas essas experiências de metacinema é aquilo que Jairo Ferreira de forma tropicalista define como "cafonismo". O jovem cinema experimental em p&b ou os filmes comerciais coloridos de ação, terror e sexo produzidos na Boca do Lixo paulistana ou fora dela eram bem próximos por serem igualmente cafonas. E esse dado, por ser revelatório - como já o fora o realismo para Bazin - interessa a Jairo quase como se se tratasse de um traço essencial do homem brasileiro estúpido e boçal, aquele que deveria ser retratado nos filmes, muitas vezes dentro dos filmes, isto é, no próprio cinema brasileiro. Afinal de contas, a boçalidade, já dizia Rogério Sganzerla, unia os atrasados pescadores de Barravento, os cangaceiros histéricos de Deus e o Diabo na Terra do Sol e a própria Boca do Lixo em torno de um cinema de quinta categoria, produtor dos maiores "filmecos" do mundo.

Em Crítica de Invenção o cafonismo é visto tanto como um dado a ser estrategicamente assumido pelo cinema brasileiro - e então ele se torna positivo, afirmativo - quanto como um aspecto lamentável da produção comercial que o crítico por vezes atribui a um passo em falso de algum realizador. É o caso de Luís Sérgio Person em Panca de Valente (1968). Em crítica publicada em 15 de novembro de 1968 (cf. pp. 58-60), Jairo afirma inicialmente que o cinema brasileiro precisava de "metalinguagem", isto é de filmes que criticassem a própria situação crítica de redundância em que o cinema - não só o nacional - vivia naquelas décadas. Com Panca de Valente, Person investe em um "produto de circunstância", que não deixava de ser perigoso num momento em que a situação política brasileira acirrava-se rumo ao AI-5. Jairo quer acreditar que a "fase cafônica" pela qual passava o admirado diretor de O Caso dos Irmãos Naves, filme tão prezado pelo crítico do Shimbum, era passageira, "coisas de engrenagem", afinal, Person teria feito Panca de Valente, uma paródia ao western-spaguetti, justamente "por não poder realizar as fitas que gostaria".

Em outros casos, o cafonismo é notado como um passo além no corpo-a-corpo do realizador com as regras da selva do mercado exibidor, caso de As Libertinas, do trio Carlos Reichenbach-Antônio Lima-João Callegaro (1969). O filme, um dos marcos do cinema experimental paulista, foi também um grande sucesso de bilheteria, isto é, uma bem-sucedida aposta no campo do filme de cinema viável ao cinema brasileiro, pois trata-se de "uma fita grossa sobre a grossura sexual, social, etc., guardando um distanciamento crítico bem cafona", e a grossura estava "na ordem do dia". É também esta a razão de As Escandalosas (Miguel Borges, 1970) ser elogiado por Jairo Ferreira como "um dos filmes mais importantes da grossura-cafono-brasileira". O que interessa ao crítico do Shimbum é destacar um cinema "mal comportado", que não se exime em dar uma "bofetada na cara dos falsos puros. Na raiz do elogio de Jairo, está a constatação de que o público efetivamente vibra com tal cinema e com os "personagens canalhas" como os apresentados por Miguel Borges. Tal como na pornochanchada, a gargalhada exprime a identificação.

Por fim, encontraremos esse cinema comercial péssimo e sublime, composto de filmes de cinema, na própria experiência da produção marginal inserida no esquema da Boca do Lixo, do qual Jairo Ferreira foi o seu principal cronista. A crítica "Erotismo & Curtição", datada de 03 de setembro de 1970 (pp. 176-7) nos fornece, nesse sentido, algumas reflexões exemplares. O texto abre num tom de advertência:

O cinema da Boca do Lixo não é um movimento gregário, razão pela qual não tolera demagogias e/ou teorizações de porta de boteco. O Lixão é apenas um background, onde se reúnem os jovens cineastas de São Paulo, independentes e marginais. Não começa coisa nenhuma onde terminou o Cinema Novo. É antiideológico, renega as éticas e estéticas até então conhecidas e está explodindo como um fato jamais visto (p. 176).

É curioso o estilo de manifesto num texto que nega a prática ideológica dos manifestos. Mais significativa ainda é a tentativa de aproximar o termo "cinema da Boca do Lixo" ou "cinema do Lixão" da produção conhecida hoje como "cinema marginal". Jairo situa a Boca do Lixo como simples pano-de-fundo, ao mesmo tempo em que, apropriando-se do nome da região central paulistana, confere identidade e caráter abrangente aos "jovens cineastas de São Paulo, independentes e marginais". Uma leitura apressada pode criar uma confusão entre o cinema realizado pelos "marginais" e o cinema produzido pelos produtores comerciais da Boca do Lixo, confusão reforçada pelo próprio título do texto, que une dois termos bastante específicos e representativos de ambas as "correntes", quais sejam, curtição e erotismo. Mas não seria justamente essa a estratégia de Jairo Ferreira?

A coletânea Crítica de Invenção tem, portanto, o mérito de expôr, pela própria montagem e pela sucessão dos textos, a elaboração de um pensamento bastante articulado de Jairo Ferreira em torno de um cinema viável para o Brasil, que nem por isso deveria deixar de ser transgressor e inventivo. Trata-se, portanto, de uma inestimável contribuição para uma releitura do cinema brasileiro dos anos 1970, através da própria revisão da trajetória crítica de um de seus mais engajados poetas e realizadores.

Luís Alberto Rocha Melo