UM CANDANGO NA BELACAP
Roberto Faria, Brasil, 1961

No volume 2 de Crítica de Cinema no Suplemento Literário (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, pp. 341-4), há um texto datado de 06 de maio de 1961, intitulado “Abril em Brasília”, no qual Paulo Emílio Salles Gomes louva a nova capital como uma espécie de concretização do ideal grego proclamado pela civilização do Ocidente. Brasília seria a cidade “mais brasileira que a história nacional já conheceu”, provavelmente a mais “sutil” em todo o mundo. Prossegue o crítico:

O povo reunido na Estação Rodoviária, a arena provisória dos grandes espetáculos, para assistir ao desfile da “Escola do Salgueiro”, ou num estádio improvisado para admirar Pelé, composto em proporções equilibradas de nortistas, nordestinos, sulistas, gente do centro, do litoral ou do interior, com todos os matizes imagináveis de cor e fala, é a primeira comunidade realmente nacional que já se constituiu entre nós. É certamente a mais bela (p. 343).

O ritmo do texto propõe, no encadeamento dinâmico das imagens, uma espécie de “montagem em seqüência”, procedimento bastante usual no cinema clássico-narrativo. Em seu entusiasmo conclusivo Brasília é “certamente a mais bela” cidade brasileira, a escrita de Paulo Emílio faz lembrar os cinejornais do tipo Jean Manzon ou então as seqüências de apresentação de certas chanchadas do final dos anos 1950 e início dos anos 1960.

É exatamente este o tom de Um Candango na Belacap (Roberto Faria, 1961), pelo menos em seus letreiros iniciais. Uma série de imagens de Brasília e um pout-pourri na trilha sonora, unindo diversos ritmos e estilos musicais brasileiros, sela o pacto nacionalista com o espectador. A “Belacap” do título não é Brasília (então conhecida como “Novacap”), e sim o Rio de Janeiro, palco privilegiado da quase totalidade das chanchadas produzidas no Brasil durante aquela época. Embora o adjetivo “belo” seja dirigido a cidades diferentes, o sentimento nacionalista que une o texto de Paulo Emílio à chanchada de Roberto Faria é o mesmo.

Faria começou no cinema como assistente de direção de Watson Macedo e de José Carlos Burle. Com o primeiro, trabalhou nas comédias Aviso aos Navegantes (1950), Aí Vem o Barão (1951) e É Fogo na Roupa (1952). Com Burle, colaborou no policial Maior Que o Ódio (1951). Após o aprendizado, dirigiu duas chanchadas para a Brasil Vita Filmes: em 1957, Rico Ri à Toa e, no ano seguinte, No Mundo da Lua. Em 1959, foi indicado pelo roteirista Alinor Azevedo para dirigir Cidade Ameaçada, com argumento do próprio Alinor e produção do paulista José Antonio Orsini. Essa cinebiografia sobre o bandido Promessinha significou para Roberto Faria uma ótima oportunidade de abandonar a comédia popular e de fazer um “filme sério”. Mas Cidade Ameaçada não fez o sucesso de público esperado e Faria voltou à chanchada, dirigindo para Herbert Richers Um Candango na Belacap (1961), que por sinal obteve um grande retorno de bilheteria.

Numa carta a Glauber Rocha (06 de abril de 1961, cf. Cartas ao Mundo. São Paulo: Cia das Letras, 1997, pp. 147-9), Roberto Faria prolonga-se em lamentações por “necessitar fazer chanchada”, não tendo conseguido “permanecer no cinema sério”. O que o torturava era acreditar que Cidade Ameaçada, embora “sério”, fosse um filme “sem autenticidade brasileira”, daí o insucesso de público. Ainda assim, Cidade Ameaçada conseguiu ser vendido no exterior, fato que provoca ânimo em seu jovem diretor: “Se Cidade desperta interesse lá fora, imagine um filme de Brasil autêntico como desejamos demonstrar...”

O “Brasil autêntico” que em 1961 Faria e Glauber Rocha planejavam demonstrar não tinha muito a ver com Um Candango na Belacap, o que não nos impede de enxergar nessa comédia um dos filmes mais interessantes de Roberto Faria, justamente porque nele o “Brasil autêntico” surge como mais apropriadamente deveria surgir: como alegoria cômica. Embalada pela eficiência artesanal de Roberto Faria, o filme extrapola o lugar-comum das comédias habituais e alcança alguns momentos de boa mise-en-scène. E no interior dessa alegoria, além do próprio nacionalismo, o filme tematiza duas outras questões importantes: o racismo e a produção artística independente.

Esses temas, se hoje podem ser vistos de forma mais ou menos clara, talvez na época passassem despercebidos ou pelo menos naturalizados demais para serem levados em consideração. Ademais, uma chanchada era uma chanchada, nada mais do que isso. O próprio Faria encarava seu filme dessa forma. Mais uma vez me remeto à carta que ele enviou a Glauber Rocha:

Meu último filme [Um Candango na Belacap] estreou faz pouco tempo, uma chanchada, fez sucesso de bilheteria como não podia deixar de fazer, tendo Ankito, Grande Otelo, Vera Regina etc. Naturalmente não estou contente, não estive contente, nem estarei enquanto for obrigado a trabalhar neste tipo de filme.

Ou seja, em plena efervescência do “cinema de autor”, Faria sentia-se pouco à vontade para usar a expressão meu filme. A chanchada era um tipo de filme aliás desprezível que envergonhava àquele que o assinasse. É claro que, hoje, o curioso é perceber como Um Candango na Belacap pode ser visto como o exemplo de um filme livre e inventivo, do ponto de vista de certas soluções de linguagem (ver especialmente o número musical Napoleão) e de construção dos personagens, justamente porque o que era regra nos anos 1950 e 1960 adquiriu contemporaneamente o sabor de novidade. Numa revisão sumária e um tanto arbitrária da obra de Roberto Faria em relação ao cinema brasileiro atual, eu diria que o nosso chamado “cinema da retomada” esteticamente está bem distante da leveza e do experimentalismo de Um Candango na Belacap e mais próximo do classicismo de um Assalto ao Trem Pagador (1962), produzido, aliás, pelo mesmo Herbert Richers.

Um pouco acima, mencionei o racismo e a produção artística independente como duas questões tematizadas por Roberto Faria em Um Candango na Belacap. Elas são trabalhadas com tanta ambigüidade que mereceriam um estudo aprofundado, algo impossível de ser feito nesse espaço. De qualquer forma, gostaria de apontar, muito rapidamente, dois ou três aspectos relacionados a essas questões.

As duas duplas centrais do filme são Ankito e Vera Regina, Grande Otelo e Marina Marcel. É possível assistir a Um Candango na Belacap tendo como eixo de apreciação apenas este fio: a troca de casais. Na primeira metade do filme, somos apresentados às duas duplas. Grande Otelo é Emanuel Davies Jr., e sua parceira é Gilda, interpretada por Marina Marcel, uma loura com sotaque espanhol. Ambos são astros de destaque no Rio de Janeiro, cantores e dançarinos de shows teatrais e de boates. Numa noitada em Brasília, conhecem dois cantores e dançarinos locais, o candango Tonico (Ankito) e a mulata Vera Regina, que faz o papel de Odete. Grande Otelo cresce o olho em Vera Regina e Ankito se derrete por Marina Marcel. Algumas confusões depois, o primeiro casamento acontece: Emanuel Davies Jr. a contragosto, diga-se de passagem, é obrigado a se casar com Odete, e viaja com ela de volta para o Rio de Janeiro, em companhia de sua parceira Gilda. O pior é que Tonico acaba indo junto, e transforma a vida de Davies Jr. num verdadeiro inferno. Odete defende o parceiro, pois antes de tudo existe o compromisso profissional e a amizade de longa data. Assim, Tonico vai morar com Odete e Davies Jr.

A loura Gilda também vive maus momentos amorosos. Ela é perseguida por um playboy milionário e colunável, Bebê Pinho Otário (Mozael Silveira), que não tem o menor sucesso com a moça. Quem vai acabar conquistando-a com seu talento, seu ar ingênuo e sua espontaneidade é mesmo Tonico. Já na segunda metade do filme, eles estarão namorando. Ocorre que, por uma série de armações do empresário de Davies Jr. e de Gilda (vivido por Milton Carneiro), as duplas entram em desentendimento e são desfeitas: Otelo e Vera Regina ficam de um lado; Ankito e Marina Marcel, de outro. É claro que, como se trata de uma comédia, o mal-entendido vai ser explicado e os quatro voltarão a se unir, mas desta vez livres do jugo do empresário sovina. A idéia é produzir de forma independente um show que possa unir os dois dançarinos e cantores negros Otelo e Vera Regina ao casal de dançarinos e cantores brancos Ankito e Marina Marcel. Isso de fato ocorre, não sem explodirem os atritos entre os novos produtores independentes e o antigo empresário, que tenta sabotá-los de todas as formas, financeira e judicialmente. Quem salvará as duas duplas? O milionário Bebê Pinho Otário, distribuindo cheques a torto e a direito e dizendo em tom de suspiro: “É chato ter dinheiro...!”

No jogo entre os quatro artistas verifica-se o racismo à brasileira, explicitado em tom brincalhão num número musical entre Grande Otelo, Vera Regina (de peruca loura) e Marina Marcel. As duas mulheres encenam no palco uma disputa pelo amor de Otelo. Enquanto Vera Regina afirma a união entre o crioulo e a mulata, Marina Marcel tenta expulsar Vera Regina, dizendo que preto com preto só dá escuridão. Em Um Candango na Belacap, o racismo não é visto como um conflito sem solução aparente, mas como um traço essencial e até mesmo positivo do brasileiro. O final celebra, sim, uma pretensa união entre brancos e negros, mas as duas duplas ironicamente precisam ser reorganizadas para que seja possível tal “união”: preto com preto; branco com branco. Ou seja, a sociedade pode ser até dividida, mas há algo além que a torna una: o mito da democracia racial, a nossa identidade étnica, feita de tantas misturas. E o principal símbolo desse “Brasil autêntico” seria Brasília, “a cidade mais brasileira da história nacional”, conforme o elogio nacionalista de Paulo Emílio. Não é à toa que é lá, no coração do planalto central, que as duas duplas vão se encontrar e se unir de forma a não mais poderem se separar, ainda que isso viesse a se tornar indesejável para ambas.

Toda essa encenação cômica do racismo à brasileira é entremeada de xingamentos mútuos, que no filme não são tratados como um problema, mas como piadas, mesmo. Assim, o candango Ankito é xingado por Otelo de “burro”; Otelo xinga Vera Regina de “macaca”, e por aí vai. Roberto Faria, que também é o autor do roteiro, e o dialoguista Mário Meira Guimarães, fazem do racismo ao mesmo tempo um motivo de comicidade e um fim ideológico a justificar a moral nacionalista.

A produção artística independente, também tematizada por Um Candango na Belacap, é tratada de forma igualmente ambígua. A figura do empresário interpretado por Milton Carneiro, que tem o nome sintomático de Jacó, é a própria imagem do vilão dos filmusicais. Pão-duro e inescrupuloso, não hesita em mentir e em manipular os artistas contratados para lucrar. Trata-se de uma figura tradicional no cinema brasileiro, o produtor-vilão, caricatura tão comum nas chanchadas quanto a figura do diretor afetado, afrancesado e histérico, sempre ostentando em sua cabeça uma boina de pintor.

A viabilidade de um cinema independente dos grandes estúdios do tipo Vera Cruz e Maristela, em 1961, já havia sido amplamente debatida nos congressos de cinema dos anos 1951-53 pelo grupo cinematográfico ligado ao Partido Comunista. Em parte, esses debates resultaram, no plano concreto da realização, em filmes como O Saci (Rodolfo Nanni, 1953), Rio, 40 Graus (Nelson Pereira dos Santos, 1955) e O Grande Momento (Roberto Santos, 1958). A questão é que um outro cinema independente já vinha sendo habitualmente realizado pelo cinema empresarial de pequenas produtoras/distribuidoras que ocupavam o mercado com chanchadas, caso da Cinelândia Filmes (de Eurides e Alípio Ramos), Cinedistri (de Oswaldo Massaini), Unida Filmes (de Mário Falaschi), Watson Macedo Produções (do próprio) e Herbert Richers/Sino Filmes, associado muitas vezes à Cinedistri e a Arnaldo Zonari. Esse cinema independente, apesar de sê-lo, não era visto como tal pela esquerda cinematográfica. Daí o “drama” de Roberto Faria, ideologicamente dividido entre esse cinema empresarial e o emergente cinema novo.

O produtor-vilão Jacó é um representante do cinema empresarial, aquele que obriga seus pobres artistas a cortarem os sonhos pela raiz em nome do lucro e de uma arte de concessões ao público. Não que os seus artistas contratados não almejassem o sucesso de público e de crítica. O que está em jogo é a capacidade de se auto-gerir, capitalizar-se para, com independência, estabelecer as suas próprias metas de trabalho e realizar os espetáculos que mais condizem com seus anseios artísticos. Um Candango na Belacap tematiza esse drama do artista em busca de sua independência, num momento em que, para o cinema brasileiro, ser autor era ser independente. O produtor Jacó só poderia ser visto como um vilão.

O problema maior, porém, é o dinheiro, ou melhor, a falta dele. De início, as duas duplas conseguem se unir para, cooperativados com recursos próprios, montarem o espetáculo. Mas as exigências dos técnicos e demais artistas contratados quase os levam à falência e o show é montado às custas de um trambique nos trabalhadores. É então que uma solução deus ex-machina resgata os artistas independentes das garras do produtor-vilão e do esquema empresarial a que antes estavam subordinados: entra em cena o mecenato, o patrocínio a fundo perdido, ministrado por um filho abonado da aristocracia, um playboy mimado, amante das vedetes e disposto a torrar toda a sua fortuna em nome do “idealismo”. É esse mecenato que Bebê Pinho Otário (brincadeira com o nome do playboy Baby Pignatari) representa em Um Candango na Belacap: um mecenato muito conveniente à independência dos idealistas, algo que de certa forma foi pleiteado pelo cinema novo através do banqueiro José Luís Magalhães Lins (Banco Nacional de Minas Gerais) e, posteriormente, do próprio Estado pós-64. O dado significativo e irônico é que o argumento de Um Candango na Belacap é do próprio produtor (vilão?) Herbert Richers.

Um Candango na Belacap poderia ser visto, assim, como uma chanchada visionária sobre o cinema novo. O nacionalismo, o racismo e a produção “independente” são questões que lhe dizem respeito.

Por fim, não poderia deixar de assinalar que Grande Otelo tem nesse filme uma de suas mais fantásticas e sutis atuações em toda a sua trajetória no cinema.


Luís Alberto Rocha Melo

(DVD Europa)