PERGUNTE AO PÓ
Robert Towne, Ask the Dust, EUA, 2006

Pergunte ao Pó é um filme que bebe de uma fonte (ao adaptar a obra de John Fante) que não se enquadra exatamente em seus moldes de proposta narrativa e muito menos nos de proposta formal. Essa inadequação se dá, já de partida, muito porque o estilo literário do livro é crucial para que se compreenda que história é aquela, que personagens são aqueles. Ora, Pergunte ao Pó, romance da década de 30, é escrito em primeira pessoa. Quem nos conta é Arturo Bandini, alter-ego de Fante. Não é necessariamente a narrativa que sobressai, mas a sensação de estar muito próximo do personagem e de perceber suas vivências, sensações e emoções, de comover-se ou debochar dele, não meramente pelo que é contado, mas muito porque se compreende o que se passa ali, sente-se o clima, capta-se a insegurança de uma afirmação ou o êxtase que talvez precisasse ser contido.

O filme de Robert Towne em momentos é narrado em primeira pessoa através de uma voz over que relata os dias e os fatos do protagonista. Contudo, mesmo partindo dessa tentativa de relacionar algo da forma do filme ao estilo do texto, o filme não consegue experimentar nenhuma aproximação real. A verdade é que os estilos e os climas de ambas as obras (se é que o filme propõe ou preocupa-se com estilo) nem se assemelham, nem sequer se cruzam em algum ponto; não que haja, a priori, algum problema nisso.

Existe, contudo, acerca do filme, um fato importante: ele quis existir construindo-se a partir de uma, senão fidelidade, aproximação à obra literária e, para alcançar tal feito, enleou-se ao enredo. Na verdade, extraiu uma parte bruta do enredo, o que há de simplesmente factual, e construiu-se a partir de um certo cinema. Faz isso adaptando uma obra de um escritor que, já num grande momento do cinema americano como indústria (década de 30), fazia uma literatura que ia de encontro à literatura americana de sucesso na época – uma literatura já com fortes vínculos com o cinema, uma literatura de tradição que influenciava ao mesmo tempo em que também era influenciada pelo cinema hollywoodiano.

Pois a adaptação para os cinemas já nasce dessa tradição narrativa da qual Fante, em Pergunte ao Pó, se distancia, já surge nessa indústria cultural, de entretenimento e quer buscar fora disso alguma força, mas se perde, porque parece não ter consciência de sua condição primeira, que está ali e é inerente ao filme antes mesmo dele ser filmado, se mostra inconsciente de sua situação até mesmo tentando trabalhar seus atores, que já são personagens (personas) de um star system e que nem chegam a ser Bandini e Camila, são apenas Colin Farrell e Salma Hayek tentando ser Bandini e Camila. E até poder-se-ia ter trabalhado essa persona Farrell para construir um novo personagem, que não é o Bandini de Fante, mas um outro Bandini de um outro Pergunte ao Pó, o de Towne. E é aí que parece estar o grande problema do filme.

Dois famosos atores de Hollywood encarnam dois personagens excluídos desse próprio mundo idealizado que é Hollywood, que é a Califórnia. São personagens marginais e o filme não mostra que sabe lidar com isso; não admite que seu "herói" é um anti-herói - o gosto de sangue na boca narrado no início do filme expõe a condição de incômodo do personagem, mas esse desconforto, essa não-adequação não se desenvolvem no filme. O medo que Bandini tem de ser ele mesmo, pobre descendente de italianos, é um medo que o diretor e os atores tiveram ao construir esse mundo e esses personagens, um medo que não os faz abraçá-los. Aqui, o grande amor conturbado de Bandini e Camila se mostra problemático apenas pelo fator racial, pela origem da garçonete. Tanto que esta acaba sendo a grande questão do filme, e a trama ainda trata de arrebatar o romance com uma infeliz tuberculose, que chega para dar um jeito nesse amor que não pode existir porque Camila López é uma mexicana na América em plena crise econômica e social dos anos 30, mais especificamente na cidade dos sonhos de ouro e das aparências que Los Angeles representa.

Transposto para os cinemas, o amor de Arturo Bandini e Camila López não é envolvente, não é excitante, inspirador. Os gênios dos personagens em suas incríveis complexidades nem parecem importar: a insegurança de Bandini, sem saber como agir com a vida prática, com o fato de se sentir inferior àquela grandiosa civilização de aparências perfeitas, num conflito de sentir-se excluído e querer integrar-se, sem saber como lidar com a mexicana impulsiva, com sua instabilidade. O que existe é uma constante melodramática que nem se esconde nem se expõe, há uma moral que ronda, uma moral que está impregnada no filme que contou a história, e para o filme essa é uma história de um amor que não pode concretizar-se por questões sociais e raciais. Aqui, Camila López não é a Camila de Fante, está mais próxima de uma Dama das camélias, de Alexandre Dumas, Camille adaptada para os cinemas por George Cukor: a mulher nociva que não pode ser amada, da qual o destino dá conta e a arrebata com uma tuberculose, persona non grata que tem de ser fragilizada e, enfim, deve morrer. E nossa mexicana suja e pobre, Camille López morre de tuberculose e, abafada, é enterrada na beira do deserto, sob uma cruz branca, como não podia deixar de ser a cor desta cruz.

O filme é desajeitado e incompetente se pretendia utilizar a potente essência da obra original que adapta. Para além dessas questões, o mais grave é que nem consiga se utilizar do enredo para fazer um filme clássico narrativo enérgico. Towne pode ter tido a vontade de fazer um filme clássico, um melodrama bem comportado para emocionar multidões, suscitar e aplacar os sentimentos da audiência ao mesmo tempo em que os neutralizasse na própria sala de cinema, não dilatando questões ou sensações para além dali. E talvez tenha sido mesmo essa a sua intenção, mas Pergunte ao Pó não consegue ser um filme coeso o suficiente, e definitivamente não possui vigor que baste para engajar e comover o público.


Luisa Marques