A MOCHILA DO MASCATE
Gabriela Greeb, Brasil, 2005

Há algo de muito curioso no modo como A Mochila do Mascate se mostra inicialmente ao espectador. Mais uma cinebiografia, desta vez em forma de documentário das memórias do cenógrafo e diretor de teatro Gianni Ratto; o caráter de homenagem irrestrita é aumentado quando vemos que os próprios filhos de Ratto produzem o filme, e seus nomes são os únicos que aparecem nos letreiros iniciais do filme, dizendo literalmente que apresentarão tudo aquilo que virá pela frente. Culto à genialidade esquecida de um homem fundamental para a arte dramática brasileira, mas que parece hoje apenas um figurante numa história que ajudou a construir, um filme para dar visibilidade ao invisível, dividir com o público aquilo que só os filhos, a família, e os amigos de trabalho ainda se lembram e valorizam. Cena a cena, da primeira à última imagem, o filme de Gabriela Greeb irá desfazer cada uma destas impressões equivocadas – e que elas sejam mesmo irresistíveis numa olhada rápida sobre o projeto parece ser até algo calculado e desejado pelos produtores e pela diretora. No corpo de A Mochila do Mascate ecoa uma idéia muito defendida por seu protagonista em vários dos belos depoimentos que distribui pelo filme: a consideração da arte (o teatro, no caso específico, mas na verdade qualquer uma das outras) como terreno fundamentalmente cultivado pelo e para o diálogo. Atitude imprescindível neste movimento de aproximação de um personagem tão estabelecido e consciente de si mesmo, Gabriela Greeb transforma as crenças do retratado nas crenças do próprio retrato que constrói, e problematizada em todas as suas instâncias, esta divisão de uma mesma fé nunca se transforma em adesão cega e automática. Se A Mochila do Mascate traz para sua estrutura aquilo que move Ratto enquanto artista, é tão somente para dialogar com seu personagem exatamente nos termos em que ele propõe esta troca.

Nessa direção, A Mochila do Mascate assume seu primeiro grande risco ao dividir internamente funções antes raramente dissociadas: cabe à Aimar Labaki a longa entrevista com o protagonista, e Gabriela Greeb se desvencilha desse “direito inalienável” do documentarista de interrogar ele mesmo seu objeto de interesse para se relacionar com Gianni Ratto num outro nível. É menos uma disposição de extrair de um personagem aquilo que mais interessar a quem pinta seu retrato, como se o trabalho de um documentário fosse garimpar verdades subterrâneas e trazer à tona aquelas que, em conjunto, formassem um painel condizente àquele imaginado pelo retratista. Diante de alguém como Ratto, essa disposição mostra-se totalmente falida, pois já há ali alguém que soube enterrar e desenterrar um sem-número de verdades pessoais ao longo da vida, e que chega na altura em que o documentário o encontra absolutamente senhor de suas afetividades. Daí que todo o fluxo de registro tradicional de A Mochila do Mascate, o depoimento sentado e parado para uma câmera quase jornalística, toma ares de quase um auto-retrato, dado o domínio de Ratto sobre aquela mise en scène conformada. É a partir do que surge dessa consideração de si mesmo em voz alta (como no livro autobiográfico escrito por Ratto e de cujo título o filme toma emprestado o seu próprio) que a diretora irá construir um segundo fluxo de registro, que poderíamos chamar de puramente “poético”. São imagens da natureza captadas em vídeo e transferidas para película, onde o efeito da granulação fica muito evidente, ou mesmo encenações ficcionais feitas diretamente para a câmera de cinema, como quando vemos uma mulher com um livro nas mãos caminhar por uma praia até chegar a um grupo de pedras que divisam a areia do mar. Essas poesias filmadas não funcionam meramente como metáforas sobre o personagem central, ou mesmo como ilustração imediata daquilo que ele fala. Gabriela Greeb mantém uma certa independência entre estes dois tipos de registro, e no confronto entre eles materializa em A Mochila do Mascate a tese do cenógrafo sobre a arte como um palco de debate, onde uma expressão inicial, para se efetivar, precisa de uma resposta igualmente expressiva de quem quer que se disponha a estabelecer um diálogo.

Muito difícil escapar do ranço de videoartismo modernoso, mas essa entrega tão sincera às idéias de Gianni Ratto empresta, mesmo a estes momentos de gosto duvidoso, uma efetividade e uma validade únicas. A consciência da fragilidade das próprias imagens que forja fica evidente quando ouvimos o depoimento de Nina Strehler, mulher do diretor italiano Giorgio Strehler, com quem Ratto teve uma profícua relação nos palcos. Nina diz que perto de Gianni e de seu marido, os contemporâneos ficam muito menores. Sobre esta frase tão emblemática de um confronto geracional, A Mochila do Mascate faz aparecer a imagem fixa e em câmera lenta da entrada do Teatro Piccolo, a casa de espetáculos que Ratto e Strehler fundaram em Milão na década de 50. Pela frente da fachada neoclássica do teatro passam algumas pessoas, com seu passo alterado pela velocidade reduzida, e bem no centro do grande portal de acesso ao lugar vemos conviver a placa de alvenaria onde primeiro esteve escrito o nome do Piccolo, para bem abaixo dela se apresentar um letreiro eletrônico cujas letras vermelhas e luminosas passam de um lado para outro anunciando a mesma informação que a placa antiga já trazia. Uma relação semelhante irá se estabelecer entre as poesias filmadas e a animação dos croquis de vários dos cenários que Ratto construiu para espetáculos na Itália e no Brasil. De um lado a pós-modernidade do vídeo, das angulações virtuosas, das sacadas poéticas, do outro o moderno romantismo do traço de carvão sobre papel, da pintura em aquarela, da construção de uma estrutura cênica. Neste último caso fica muito evidente que Nina Strehler talvez tenha mesmo razão. Mas não foi, em nenhum momento, uma pretensão de A Mochila do Mascate ser tão grande quanto Gianni Ratto. Seu atrevimento, muito bem-vindo, é o de reconhecer nesta grandeza a necessidade de uma postura mais articulada que a simples exaltação daquilo que, por si só, já se anuncia maior. Se assume este risco e sofre as conseqüências dele (uma certa irregularidade entre os diversos tipos de registro, uma diferença abissal entre o dinamismo do road movie memorial rodado no retorno de Ratto à Itália natal e a apatia do documentário tradicional no trecho brasileiro), é daí que também tira sua maior força. Não negar a resposta a um chamado feito por seu próprio objeto, mas pelo contrário, assumi-lo em sua integridade, para então se jogar na instabilidade do debate. Importa pouco quem o vença: de uma experiência dessas saímos todos ganhando.


Rodrigo de Oliveira