AMOR EM CINCO TEMPOS
François Ozon, 5x2 - Cinq fois deux, França, 2004

Da vida das Mario(zo)netes

François Ozon é um caricaturista. Seus filmes têm uma frontalidade, uma bidimensionalidade programática que evita as sutilezas e os diferentes tecidos de sentimentos. Como Aldrich ou Verhoeven, ele lida com reduções e simplificações de personalidade para construir um retrato chapado, e um tanto misantropo, do universo ficcional que aborda. Isso, a princípio, não é um problema. É uma forma de apreensão da realidade, em construção dramática que ora consegue resultados (Gotas d’Água em Pedras Escaldantes) ora transforma-se em tiro na água (Oito Mulheres, Swimming Pool). Maneirista e cínico, seu cinema se presta a um achatamento da profundidade, a uma lacuna de saber entre espectador e personagem que produz um humor cruel semelhante muitas vezes a alguns momentos da carreira dos irmãos Coen (mas com outras estratégias de dramaturgia e mise-en-scène). Dito isso, 5X2 é o filme que, desde Gotas d’Água em Pedras Escaldantes, melhor parece se inscrever nesse programa - e conseqüentemente é seu melhor filme desde então.

À maneira de Besame Mucho, de Francisco Ramalho Jr., 5X2 se estrutura em cronologia reversa, a partir de esquetes da vida de um casal em diferentes estágios do relacionamento. Vemos primeiro o episódio da separação, a seguir um momento de crise do casamento, depois o nascimento do filho, o dia do casamento e por fim o episódio do primeiro encontro verdadeiro entre os dois, em férias na Itália. A natureza esquemática do filme se vê logo em seu título: cinco vezes dois são cinco episódios na vida de duas pessoas. E o funcionamento do filme depende de quão decisivas são esses instantes notáveis na vida de cada um, a ponto de explicar toda (ou ao menos em grande parte) a vida do casal, em chave metonímica de “parte pelo todo”. Ozon tem particular talento para filmar a forma como uma relação degringola, as neuroses que nascem a partir de uma fala dita em má hora ou com as palavras erradas, as expectativas sobre o outro que se frustram ou não se confirmam da maneira como era esperado e o peso dos papéis sociais/existenciais que as pessoas desempenham muitas vezes automaticamente, sem muita reflexão.

É uma arte da mesquinharia e da crueldade que encontra seu alvo na vida de burgueses ou de proletários aburguesados (em todo caso suficientemente instalados e socialmente sedentários), cujos códigos de conduta e patologias sentimentais o filme traz à tona para melhor poder extrair, com acidez, um humor amargo. Estamos longe de Um Vestido de Verão, um de seus curtas-metragens de começo de carreira e até hoje provavelmente seu melhor filme. Desde então, é menos Truffaut do que Chabrol que se transforma no inconsciente cinematográfico de François Ozon, e o ódio à burguesia e a seus valores aparece como o motor subterrâneo de seu cinema. Há muito de risível nos personagens de Charlotte Rampling em Swimming Pool, ou na previsibilidade com que funcionam os casais de Gotas d’Água... ou 5X2.

Em 5X2, uma noite de núpcias frustrada pelo marido que dorme se transforma numa maneira de questionar a instituição do casamento, no entanto ratificada pelo casal dos pais da noiva, que dançam juntos “Smoke Gets in Your Eyes” enquanto todos os outros na festa já estão dormindo – no entanto, no episódio anterior, o do nascimento do filho, eles destilam veneno um contra o outro enquanto a filha tenta se recuperar do parto. O ambiente de agridoce cotidiano das neuroses e comportamentos burgueses se amplifica também na utilização de música, em língua espanhola ou italiana, que funciona aqui como elemento de humor e comentário sobre a lenta comédia humana da vida dos bem instalados. Note-se também a extraordinária escolha de atores, com um trabalho impressionante de Valeria Bruni Tedeschi, e com as aparições de Françoise Fabian e Michael Lonsdale, veteranos atores de filmes dos diretores da nouvelle vague, nos papéis de pais da protagonista. Com 5x2, Ozon continua refletindo sobre a figura e a permanência do ator francês (como filme-conceito, Oito Mulheres é muito mais interessante do que como filme de gênero), e reaviva seu talento para o humor derrisório que é o melhor trunfo de seus longas-metragens.


Ruy Gardnier