V DE VINGANÇA
James McTeigue, V for Vendetta, EUA, 2006
 

O paradoxo está na própria definição. A utopia democrática traz, em si, um elemento conservador: ela quer permanecer democrática, não quer ser alvo de revolução, justamente o elemento-limite da ação política que é a conquista maior de uma sociedade democrática. Esse pressuposto da idéia de Estado moderno pós-Revolução Francesa – o de que ele quer continuar como tal – é importante para se olhar para o jogo metafórico proposto por V de Vingança. Porque a idéia de mostrar como metáfora do mundo atual uma Inglaterra totalitária parece a princípio anacrônica, perdida na era Tatcher. Mas ela faz todo sentido se se pensa na agenda dos autores de Matrix, os irmãos Andy e Larry Wachowski: o mundo como o vemos é uma ilusão e não somos livres de fato.

Afinal, não se pode perder de vista que a história nos é apresentada como uma sci-fi, como uma aventura futurista. E como tal quer ter bases fincadas em nosso mundo não apenas metaforicamente – na medida em que toda história passada no futuro é uma metáfora do presente –, mas também processualmente – em um raciocínio no qual as origens daquele futuro estariam fincadas no presente como o conhecemos.

A operação de transposição para as telas dos quadrinhos escritos por Alan Moore segue, então, a cartilha da antropofagia. Os  Wachowski devoram a história original e devolvem uma máquina referencial – a algo que já era referencial, um gibi que citava de história inglesa do século 17 a Shakespeare e A Bela e a Fera – e uma metáfora poderosa sobre o desaparecimento da esfera política no mundo atual.

O sociólogo polonês Zygmunt Bauman, autor, entre outros, de Em Busca da Política, que se tornou uma espécie de guru da crítica à globalização, talvez estranhasse, mas uma questão sua (feita nesse livro mencionado) é a melhor tradução da sociologia de V de Vingança: como explicar que um mundo que conquistou a liberdade – como o nosso – não tenha resolvido o problema da felicidade? A resposta do filme é semelhante à de Bauman:  o mundo contemporâneo não consegue transformar problemas individuais em problemas coletivos e não consegue fazer os indivíduos adotarem para si problemas de ordem coletiva.

Em V de Vingança, não há liberdade. Mas para os irmãos e para o diretor James McTeigue, seu mundo é especularmente idêntico ao nosso. Claro, em ambos a luta política é interditada. No ficcional, porque ela não seria mais “necessária” ou, pela leitura de Bauman das motivações contemporâneas, porque é vista como sem sentido. A conexão entre os dois mundos surge sutilmente, em alusões a nossa realidade – algumas delas de lógica forçada, é verdade, mas, ora, é uma sci-fi, um filme de gênero! Mas a mensagem é, como dito acima, a bandeira temática dos autores: a caverna platônica está em toda parte. Em nosso mundo, na incapacidade de enxergar que liberdade não há em uma democracia sem igualdade – falta que é citada no filme o tempo todo.

Mas eis que o filme resolve esse problema que se tornou central no cinema dito “político” – dos trabalhos recentes de Costa-Gavras aos de Ken Loach: o do conflito entre o individual e o político. Vários filmes recentes têm recorrido a histórias com dramas de indivíduos oprimidos pela grande história, pelas forças políticas, pelo mundo que despersonaliza as pessoas. Por esse modelo, o humano e o político seriam irreconciliáveis. Isso porque a autoridade – no sentido do que autores como Richard Sennett chama de autoridade, um aparato de poder que rivaliza com o indivíduo – estabelece uma ditadura contra o singular, pasteuriza o humano, equaliza as diferenças. Para os filmes políticos recentes, a luta a ser travada é sempre contra essa unificação estética do homem, contra a igualdade imposta.
 
Para V de Vingança não. O filme Cria um anti-herói   que converte um drama pessoal em ação política e uma jovem que incorpora sua biografia política a um drama pessoal. E é no jogo entre os dois que se constrói uma história em que, pela primeira vez em muito tempo, o político é possível no cinema, em que a reação é definidora de identidade (e não negadora). Não à toa, o personagem central traz um jogo identitário: é um herói mascarado, mas pejado de ironia e com uma certa dimensão circense, afinal ele traz máscara sorridente, roupa preta e cabelos compridos. Não se sabe quem ele é, mas é, como diz a moça, “todos nós”.
 
Daí a grande cena que resolve o conflito identitário ser a em que os cidadãos tiram máscaras para ver as explosões, pontuada pela opção por tocar Abertura 1812, de Tchaikovsky,  música-ícone de uma certa vitória do nacional (russo) sobre o imperial (napoleônico), quando o céu de Londres é dominado por um ataque terrorista que mais parece um espetáculo pirotécnico de reveillon.

É contra a ilusão de liberdade que o filme opera. E opera com um jogo de extremos: como exagera as cores de seu totalitarismo – mentiras de Estado, genocídios a serviço do poder, vigilância panóptica -, pode fazer-se uma metáfora quase fabular, operando um jogo de espelhos movido a um questionamento que pulsa em cada fala: como pode o mundo contemporâneo supostamente livre querer se diferenciar deste mundo ficcional totalitário com tantas ditaduras – sobretudo a do mercado, que não aparece abertamente no filme, mas é o horizonte de luta mais claro de uma idéia de privatização das ações, o que anula a luta política.

Não é, então, (apenas) para dizer que vivemos em um mundo totalitário que o filme opera, mas para mostrar que, no cotidiano, a democracia (que tem elementos ditatoriais como qualquer sistema) não existe,  não pode existir, sem luta.


Alexandre Werneck