RETRATOS DE FAMÍLIA
Phil Morrison, Junebug, EUA, 2005

As primeiras imagens de Retratos de Família nem parecem pertencer a ele. Alguns homens, já entrados nos anos, surgem gritando de maneira estranhíssima qualquer coisa que lembra o chilreado de uma ave. Esses senhores se sucedem na tela, cada um empenhando-se ao máximo em tirar da garganta a nota que corresponda exatamente àquilo que estão imitando, até que entra o título original do filme, em letras vermelhas garrafais. Daí em diante não haverá sequer uma menção a este estranho prólogo – e, no entanto, aquele som (ou a idéia dele) ecoará em cada fotograma seguinte. Tudo se trata, no fim das contas, de uma imitação: um homem que tenta se passar por pássaro, um filme que tenta se passar por vida. O êxito do primeiro depende do aperfeiçoamento contínuo de sua técnica, que deseja a proximidade absoluta do real, porque todo o resto lhe nega este estatuto (friamente falando, é só um homem gritando caoticamente). O segundo já não se cobra mais tamanha proximidade, mas ainda não se livrou – e é ótimo que não tenha se livrado – da referência na realidade. Imitá-la, no entanto, exige mais que a primazia numa técnica, suas demandas são de outra ordem. Tudo aqui já parece naturalmente ser vida, a mesma relação de espaço e tempo, os mesmos ambientes e os mesmos personagens feitos de carne e ossos, a mesma interação entre eles. Parece, no entanto, cada vez mais difícil fazer esta vida construída artificialmente viver de fato. Uma olhada apressada pelo exterior de Retratos de Família chega mesmo a favorecer a idéia de que esse seja mais um filme morto por dentro: independente americano festejado pelos sundencistas de plantão, registro das agruras de personagens disfuncionais no interior da América profunda, aquele lugar em que o país mostra sua verdadeira e mais cruel face, trilha sonora de uma banda indie de sucesso – o alarme soa para a semelhança com algo próximo das Histórias Proibidas de Todd Solondz, mas não, Phil Morrison e seu primeiro longa-metragem passam longe disso.

Chama a atenção inicialmente uma certa honestidade de propósitos que, ao invés de tirar força do filme por indicar desde o começo o caminho a ser percorrido por seus personagens, libera a narrativa para se dedicar com muito mais carinho e atenção aos momentos que construirão este arco proposto. De um ambiente contemporâneo urbano cheio de desprendimento e liberdade como a galeria de arte alternativa em que a curadora Madelaine trabalha, e onde conhecerá seu futuro marido George, partiremos para seu oposto perfeito, a cidadezinha no interior onde todos os sentimentos são reprimidos em nome da manutenção de um estado apático, mas seguro, das coisas. A ligação entre um e outro está na viagem de retorno que George fará até sua família para apresentar a esposa recente, onde os choques entre os estilos de vida tão diversos provocarão, em ambas as partes, uma transformação ao mesmo tempo silenciosa e muito profunda. Em nenhum momento Retratos de Família esconde que fará essa defesa do contato entre as diferenças, nem que acredita na transformação mútua como produto final desse contato – mas aí talvez esteja aquilo que faz deste um tipo estranho dentro da cinematografia de que é fruto: o filme realmente acredita em tudo o que diz e expõe, não no nível cego da fé inabalável numa verdade que se livra de qualquer responsabilidade com as outras verdades que a cercam, mas a crença aí sendo a única postura possível quando se quer garantir condições para que personagens e enredo se desenvolvam com alguma expressão e autonomia. Phil Morrison acredita muito na maquete da vida real que cria, e é essa operação que permite que aqueles que a habitam deixem de ser apenas bonecos de cena e possam andar por ela como pessoas, existir, acertar e errar como pessoas. Eventualmente até a maquete parece perder seu traço de produto fabricado: quase esquecemos que por trás daquelas imagens o que existe mesmo é só um homem gritando uma história.

A casa de Retratos de Família, ao contrário daquela que José Bechara construiu por aqui e que fez sucesso pelos museus por onde passou, projeta para dentro, e não para fora, tudo o que existe nela. Uma casa orgânica, onde todos os cômodos se comunicam, mesmo que não tenham ligação física direta, onde todos se ouvem, mesmo que se tente evitar os ruídos. Mais que isso, um espaço que consegue misturar personalidades tão diferentes quanto o pai conformado e o filho rebelde, a mãe conservadora e a nora histérica e grávida. Quando Madelaine e George, vindos das casas inorgânicas das grandes cidades, entram neste ambiente diverso, há menos o estranhamento imediato e mútuo e mais uma recepção curiosamente calorosa, contra todas as ressalvas que a mãe de George faz à esposa moderninha do filho. Phil Morrison opõe duas seqüências protagonizadas pela própria casa que dão exatamente o tom de suas intenções: na primeira, como naquela seqüência de O Pântano que anuncia a tragédia final, vemos os cômodos da casa filmados em planos fixos, num momento do dia em que não há ninguém por ali, totalmente vazios. Partindo dos mesmos enquadramentos e pontos de vista, o diretor voltará com a câmera a estes cômodos, mas à noite, quando todos estão se preparando para dormir e quando as conversas dos três casais (pai e mãe, filho mais velho e esposa, filho mais novo e esposa) são ouvidas por todos. A idéia de uma casa como organismo vivo só funciona porque o que a mantém viva são aqueles que a habitam: não há uma existência independente daquela construção (seja a alvenaria de um lar, seja o artesanato de um filme), tudo só funciona realmente a partir da presença humana.

E é à ela que Phil Morrison se devota em seu filme. Com o ambiente desenhado de maneira tão generosa, é dado à cada personagem a possibilidade de passar por ele da maneira que melhor lhe convier. Não tanto uma questão de “mostras todas as facetas dos personagens”, como uma operação tautológica de libertação calculada, mas garantir a cada um o espaço e o direito de se expor do jeito que achar que deve: se Johnny, depois de ignorar sua esposa grávida por todo o filme, num estalo de afetividade decide gravar para a moça um programa de tevê sobre o animal que ela mais gosta, revelando um lado de sua personalidade que em nenhum outro momento se fará evidente, não significa que o mesmo acontecerá com Peg, sua mãe, irascível e constante o tempo inteiro. Mas não que Morrison negasse à ela a chance de ser bacana, pelo contrário, são vários os momentos em que esperava-se da mãe um sorriso sequer, mas existe em Retratos de Família a possibilidade de não sorrir, existe a possibilidade de não se congraçar forçosamente pelo bem da trama ou pelo final feliz – Peg acredita em sua tristeza emburrada, e não há outra atitude viável para Morrison que não se fiar nas crenças de sua personagem. E mesmo àqueles que seriam meros figurantes num drama central muito mais importante que eles merecem atenção da narrativa: se não é possível perder muito tempo apresentando os companheiros de trabalho de Johnny, que pelo menos seus crachás com nome e foto apareçam na tela, entremeando falas corriqueiras de um ambiente fabril, como forma de sublinhar esta dependência única que o filme tem de tudo o que é humano. Retratos de Família talvez tenha passado despercebido pelas salas de cinema justamente porque não se arvora na vontade de grandeza que personagens e situações como essa geralmente provocam. Suas belas pequenas seqüências permanecem na cabeça como que a desafiar a memória a finalmente reter algo que não tem em si nada de extraordinário – coisa que não é, nem de longe, uma novidade no cinema, mas que feita justo num momento em que o ordinário perde cada vez mais seu poder de atração, acaba parecendo inédita, quase revolucionária. Não é para tanto, mas não há como fugir da impressão de que o canto desse pássaro, no fundo só um grito humano, merecia ecoar por muitos outros ouvidos e corações.

Rodrigo de Oliveira