O PLANO PERFEITO
Spike Lee, Inside Man, EUA, 2006

Como filmar planos perfeitos

O Plano Perfeito é um filme de ação. Ação policial. Ação de assalto. Ação como gênero cinematográfico. Como em Munique, de Steven Spielberg, o que vemos se trata de movimentos de corpos e acontecimentos que se dão para nós como dados da imagem. E esta imagem concentra, em si, todo o poder do filme como avatar do entretenimento e questionamento político amplo e contundente. Com múltiplos personagens e sem estratégias de identificação, a narração de ponto de vista pulverizado de ambos não nos situa num tempo-espaço específico (um dos lados da moeda): sabemos muito porque vemos muito. A imagem nos apresenta falas e ações para com elas montarmos um painel e concluirmos o que quisermos a partir do que constatamos. Atitude política por meio da linguagem.

Dalton Russell é o gênio responsável por uma engenhosidade capaz de movimentar todo um aparato institucional e espetacular (a ação policial com inúmeras viaturas e equipamentos, táticas muito bem estudadas e cartilhas de procedimentos – o imediatamente reconhecível eixo de funcionamento do filme policial hollywoodiano), estremecer as nervuras de uma cultura-nação muito bem assentada e orgulhosa de uma estabilidade burilada desde o pós-guerra (os EUA e sua “ética” econômica e social – o bastião que se quer absoluto e inabalável) e desaparecer sem deixar vestígios ou fazer grandes estragos. Russell desliza por entre os interstícios de um mundo construído sobre grandes pecados. Sob a superfície do funcionamento político e econômico da “normalidade” jazem atos espúrios em sigilo e sussurros de acordos comprometedores (dirigentes reais dos esquemas da realidade que nos chega) e ele tem a habilidade máxima de se infiltrar, agir de acordo com o que lhe convém e se retirar, de forma totalmente anônima. Do alto da soberania de sua maestria e inteligência, Russell é, ele, sim, inabalável. Paira calmo e soberbo acima do caos que coordena nos menores detalhes. Toda a encenação que ele é capaz de alavancar (seja interna ou externamente ao banco) permanece na órbita de sua existência pessoal.
O impacto de suas ações é como um choque, que reverbera por um tempo para em seguida dissipar-se, enquanto ele, como epicentro, evapora.

Esta força da estratégia, nestas configurações precisas, nos faz pensar no terrorismo, também evocado, paralelamente, pela indumentária dos ladrões e seu jogo psicológico com reféns e policiais. (1) O grande mal de um presente recente e o medo maior de uma sociedade assombrada por um indigerível trauma, ele é assim: exato em ações, mas “imaterial” em efeitos e em pistas. A identidade, esse dado ainda caro aos grandes escalões da política (Arthur Case, Madeleine White e o prefeito são figuras influentes) e à politicagem diária em geral (as disputas de ego entre o capitão Darius e o detetive Frazier), está em processo de apagamento. Podemos no máximo eleger caricaturas que nos permitam qualquer referência (o árabe, o chicano...). E se as novas ações se dão pautadas por este apagamento, não é mais possível, de fato, distinguir culpados de inocentes e talvez não seja mais possível fazer justiça. Porque os culpados estão disseminados entre as pessoas de bem (os ladrões entre os reféns, os criminosos de guerra entre os benfeitores da sociedade) e a vingança não tem mais rosto, já que tudo corre à margem da oficialidade e não deixa rastros. Os diamantes roubados por Russell e seus capangas são remanescências de um outro tempo, perdidos nas franjas da História. Não há registro deles, para além da memória pessoal de Arthur Case. Seu segredo é um tesouro sem dono destinado a comprazer indivíduos brilhantes em usos particulares. Frazier, policial sagaz que não se contenta em seguir as prescrições de sua atividade, poderá enfim se casar e fazer a felicidade da noiva oferecendo-lhe algo com o que ele sempre sonhou. Brinde de Dalton Russell, que identificou no detetive algo além da mediocridade reinante e fez questão de plantar uma semente do “mal”: jogar uma pista que fizesse esse “adversário” dividir com ele parte de sua consciência e perceber uma lógica nova de funcionamento no/do mundo.

Seguindo este princípio e trabalhando desde dentro (o código cinematográfico dominante nos seus intercruzamentos com a ideologia americana), Spike Lee arquiteta um filme que, pela crença na imagem, põe em curto-circuito o sistema que interliga a forma fílmica e seu legado sócio-histórico. O plano inicial, em que Russell olha para a câmera e se apresenta para o espectador, é um plano sem-tempo, que estabelece o personagem como um mastermind inatingível, numa posição absoluta, de controle e poder (o que é reforçado pela retomada destes planos e de sua narração ao final do filme: não obstante todo o estardalhaço, tudo sai perfeitamente do modo “discreto” como foi planejado). (2) Sua voz nos envolve e temos pleno conhecimento de um ”parti-pris” do crime: “porque eu posso”. Este “fantasma invisível”, assombroso poder “paralelo” que se estabelece sabe-se lá de onde, é para nós um conhecido. Cativante personagem principal.

Da mesma forma, o plano de Madeleine e Case conversando no passeio público com a cidade de Nova York ao fundo costura suas intrigas como uma espécie de espinha dorsal da cidade. (3) Por trás de odiosos crimes mais recentes há ainda a marca indelével de um passado: o holocausto. Constantemente relembrado, ele já não tem mais propriamente um lastro histórico, porque a História parece ter se tornado de fato episódica. Mas a informação que Dalton Russell domina está ali para mostrar que mesmo que se acredite que este trauma esteja sedimentado, como um substrato de base da sociedade (afinal os judeus estão na base da economia americana), essa homogeneidade em que apostamos para fazer frente ao inimigo não é um fato premente. Mesmo porque apontar o inimigo não é tão óbvio, nem interna nem externamente. A caça às bruxas pode acabar apontando para nós também – nós e nossos vícios.

Essa desorientação por conta de uma identidade buscada, mas que se esfacela, está magnificamente sintetizada na imagem dos reféns (em sua maioria conhecidos por nós) saindo em disparada do banco – uma massa de corpos cinzas encapuzados (4) –, para serem recebidos a tiros por um grupo de policiais aflitos. Os justiceiros-guardiões da segurança simplesmente não sabem mais como reagir e tentam desesperadamente se agarrar aos velhos ensinamentos, adotando uma postura de indiferenciação total entre possíveis suspeitos. Reflexo do aprendizado de um confronto que, ali, já não tem mais justificativa. A estratégia policial de invasão do banco, visualizada sobre o mapa da planta do prédio, gera imagens em flashforward extremamente violentas, em que a agressividade de uma ação tantas vezes repetida na nossa cultura audiovisual nos salta aos olhos como uma incoerência inexplicável. Afinal, em quem eles estão atirando? Por que metralham um corpo repetidamente em frente a um amontoado de notas de dólar, espalhando sangue? Em seguida, um close da caixa de depósito 392, na qual Case guardava seu precioso segredo sem registro, toda suja de vermelho, revela a associação entre a morte e as altas instâncias públicas da qual o banqueiro também faz parte. É novamente a imagem que nos traga pra fora do que ela a princípio poderia sugerir.

Para Spike Lee, é o poder de afirmação da imagem que construirá em bases sólidas o filme. Tanto nestas construções de sentido que se dão graficamente, quanto no diálogo com os clichês – a caracterização dos personagens, o ritmo de uma intervenção policial que busca a solução de uma anormalidade no funcionamento da cidade (5 e 6). É surpreendente também a participação da imagem no curso da narrativa: a gaveta metálica com a escuta dos ladrões sempre no centro do quadro, apontando para o alcance insuspeito do seu domínio; os transcrafts que forjam os retratos de Arthur Case e Dalton Russell, dando a medida da imponência destes sujeitos, confrontados através da História em suas práticas; os movimentos de câmera que dão o tom das cenas; os inserts da caixa de depósito 392 ao final do filme, no meio das falas desconfiadas de Frazier, que não aceita o mistério do caso. O Plano Perfeito afirma a imagem como construção de sentido primeira. À montagem compete dar ritmo e agilidade a uma narrativa vertiginosa, que promove o entretenimento legítimo de uma intriga muito bem-construída.

A visualidade, para uma cultura cujo trauma marcado a ferro e fogo é simbolizado por uma imagem “cinematográfica” de destruição urbana, está no centro de sua relação com o mundo. Quando Dalton Russel questiona o videogame do garoto, que transpõe para uma telinha de CG um drama social, ou quando encena a comédia do terror (o espancamento do funcionário do banco por trás do vidro fosco, a falsa execução vista na qualidade pobre da câmera de vídeo), é uma vasta cultura visual que ele está confrontando. Russel sabe que o teatro é sua chave de sucesso e é a partir desta compreensão que elabora o plano perfeito. É o seu poder de impressionar, sua arma. Porque, afinal, é o espetáculo a chave do sucesso.


Tatiana Monassa

 

 





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