PARADISE NOW
Hany Abu-Assad, França/Alemanha/Holanda/Israel, 2005

ParadiseNow é daqueles trabalhos cuja fama (fundada na polêmica) se cria alheia à própria materialidade do filme. Primeiro, uma história que trata dos momentos finais de dois palestinos prestes a explodir junto de suas bombas em algum canto de Israel e que carrega, fatalmente, uma idéia de humanização dos terroristas, ou pelo menos a consideração de que, bestiais que sejam essas ações, são levadas a cabo por gente comum (consideração essa impensável em certos círculos político-sociais). Depois, o burburinho que se criou quanto à nacionalidade do filme. Aceito pelo Oscar como um filme da Palestina, logo provocou a reação do governo e de entidades israelenses, que afirmam que a Palestina não existe enquanto país, apenas como uma Autoridade autônoma. Quanto a este último dado, há algo de realmente relevante na decisão dos realizadores em bancar o filme como "palestino", mesmo que seu financiamento seja todo estrangeiro. Essa marca empresta ao filme uma propriedade imediata, credita o olhar sobre estes personagens (conhecidos enquanto estatística e notícia de jornal mas totalmente obscuros enquanto indivíduos) como um "olhar de dentro", ou mais ainda, como a expressão particular de um povo e de uma nacionalidade que poucas vezes têm a chance de fazê-lo. Por esse ponto de vista, a humanização referida inicialmente é mais que uma mera conseqüência do tema escolhido; é sim o ponto de partida, a declaração de uma postura.

Mas aí esse discurso exterior ao filme se encontra com o ParadiseNow que está lá na película, jogado na tela, e essas duas instâncias não se casam. Num primeiro momento, Hany Abu-Assad parece querer lidar com a normalização do conflito e de suas bases mais imediatas. Perto de um posto de checagem na estrada, vemos um estreito caminho de terra cortando uma colina, e por ali o trânsito de palestinos a pé é intenso. Quando, ao longe, acontece uma explosão ensurdecedora, todos os passantes imediatamente abaixam-se, esperam alguns segundos até se certificarem de que o barulho está realmente distante, e então seguem normalmente sua caminhada. Tão natural quanto o ato de olhar o semáforo antes de atravessar uma rua, essa reação é um sinal de que aquilo que deveria ser extraordinário, uma exceção, já foi cruelmente admitido como regra, já foi acomodado nas vidas das pessoas como mais um dos elementos que as compõem. Um passo à frente dessa normalização, Abu-Assad encontra a banalização. Khaled, um dos homens-bomba, está gravando seu vídeo de despedida antes da ação suicida, e uma série de interferências transformam o clima pesado da situação num momento de comicidade pura. Mais adiante, vemos que esse mesmo tipo de fita é comercializado e alugado numa vídeo-locadora como se fosse um blockbuster americano. A martirização sai do registro do heroísmo político-ideológico e passa à esfera do heroísmo folhetinesco, num reflexo direto daquela mesma disposição da população em se proteger rapidamente de uma explosão e logo seguir em frente: se é preciso encarar a exceção da guerra com naturalidade, o registro daqueles que lutam contra essa distorção deve se localizar no máximo da artificialidade. A resposta ao documentário do conflito é a ficção do herói.

Mas que não se confunda a vontade de ficcionalizar a figura do suicida-mártir com a simples fabricação de protótipos dele. A humanização imaginada inicialmente é apenas aparente, disfarce para uma estranha robotização. Os personagens de ParadiseNownão falam, cospem conceitos; não conversam, encenam discussões. Levado às últimas conseqüências, o tal "olhar de dentro" não consegue disfarçar que se realiza mesmo é de fora. Hany Abu-Assad domina totalmente os protagonistas, exerce sobre eles uma força aniquiladora: suas reações à proximidade da morte, a relação de suas convicções políticas e religiosas com o pragmatismo das funções da causa, tudo parece estar devidamente controlado. Um controle que se expressa no nível do banal – e não como o reflexo do diagnóstico enxergado pelo diretor em seu tema e que se volta para dentro do filme enquanto auto-referência, mas tão somente como a simplificação absoluta do significado daquilo que se quer dizer. Esse domínio fica muito claro no uso que Abu-Assad faz da câmera, tomada especialmente em comparação ao que vemos em Munique, filme de Steven Spielberg com o qual Paradise Now divide uma série de aproximações (a mesma localização geográfica e política; a tentativa de se pensar um grande tema a partir da mais baixa célula atuante, os operários da guerra, de um lado os agentes do serviço secreto israelense, do outro os homens-bomba palestinos; a idéia da operacionalização do ativismo, cujo efeito direto é uma espécie de linha de montagem onde o produto final é a manufatura da crise; a presença decisiva da figura paterna sobre os personagens centrais como o fantasma de uma atuação que não pode ser repetida).

Enquanto rezam no esconderijo secreto do grupo terrorista, durante a preparação dos atentados, Khaled e Said são alvos da câmera, que se atira quase voluptuosamente sobre os dois. Essas aproximações são o reflexo direto da relação do diretor com estes dois personagens: dominados seus sentimentos, conhecidos de cor, não há propriamente a investigação de seu universo ou uma tentativa de compreensão ou simples acompanhamento das suas trajetórias; há apenas o registro direto, soberano (alguns diriam arrogante), e por isso ignora-se o espaço entre personagem e câmera. Spielberg quer igualmente olhar de perto os protagonistas de seu filme. Mas quando dirige esse olhar a Avner Kauffman e seus comparsas, utiliza quase sempre o zoom. A decisão de contar a história desses agentes invisíveis (tão invisíveis quanto Khaled e Said), ao mesmo tempo que pede uma proximidade, reconhece, através do zoom, que há uma distância enorme separando o realizador e seu tema, e que, por mais perto que se possa chegar (por um truque óptico, no máximo), sempre haverá esse espaço – tradução direta de um mundo de significados subterrâneos que dúzias de filmes não dariam conta de desvendar – que não pode ser vencido, nem mesmo pelo virtuosismo de algum movimento de câmera. Não deixa de ser curioso que, justo no último plano, Abu-Assad use pela primeira vez a aproximação pelas lentes, direto nos olhos de Said, prestes a explodir o ônibus em que está, e como esse artifício aparece totalmente esvaziado de sentido, sugerindo um mistério que o resto da narrativa inteiro já deu conta de "resolver". O zoom instala em Munique o domínio do incerto, e em Paradise Now parece acontecer o oposto. Um filme cheio de certezas, sobre um assunto do qual nem sabemos ao certo quantas e quais exatamente são as dúvidas.


Rodrigo de Oliveira