COLEÇÃO AKIRA KUROSAWA
Cão Danado, Viver e Ralé

Nora Inu, Japão, 1949
Ikiru, Japão, 1952
Donzoko, Japão, 1957

Há muito poucas semelhanças entre os três filmes da coleção Akira Kurosawa, lançada em DVD pela Multi Media Group, e nenhuma delas justifica a união dos três em uma caixa só – não que qualquer campo de interseção seja necessário para o lançamento de uma coleção, mas diversas vezes um período na obra do cineasta ou um tema específico definem esse campo. Dentre as semelhanças, a mais atraente é a pouca notoriedade de cada um dos três filmes dentre o público brasileiro. Mesmo que Kurosawa seja um diretor renomado com diversos filmes já lançados em DVD no Brasil, os temas abordados em cada um dos filmes se diferem bastante dos filmes de samurais passados no Japão Feudal que tornaram Kurosawa famoso pelo mundo. Nesse sentido, o maior mérito da coleção é nos revelar um diretor em formação, em processo de desenvolvimento de uma linguagem própria e que se aventura por ambientes e gêneros antes pouco imaginados (pelo menos pelo público médio) para a obra dele. A coleção engloba os filmes Cão Danado (1949), Viver (1952) e Ralé (1957), se inserindo cronologicamente nos primeiros 15 anos da cinqüentenária carreira de Kurosawa.

Décimo filme da obra do diretor, Cão Danado possui características híbridas na sua linguagem. Ao mesmo tempo em que flerta com o cinema clássico e de gênero, Kurosawa abusa de locações nas suas cenas de observação do cotidiano, registrando a vida no Japão pós-guerra e, dessa forma, se aproximando do movimento neo-realista italiano. Além disso, reflexões sobre a condição social dos personagens e sobre suas motivações são bastante presentes no filme.

Toshiro Mifune, ator consagrado pelo próprio diretor e aqui em início de carreira, interpreta o jovem detetive Murakami. O furto de sua arma em um ônibus é o ponto de partida para uma desesperada busca pela cidade para recuperá-la. Utilizando-se de um ritmo dinâmico de montagem e de movimentos de câmera, Kurosawa tenta manter o espectador preso ao mistério aos poucos desvendado por pistas e depoimentos – o filme se aproxima bastante da forma linear e de fácil absorção do cinema clássico narrativo nesse pontos. O mistério construído pelo enredo do filme é todo depositado na dúvida sobre como a Colt de Murakami será usada e quantas pessoas ela poderia machucar com as 7 balas que nela estavam no momento do roubo. É de suma importância na condução da trama o fato de que esta se situa no pós-guerra. Ex-combatente na segunda guerra mundial, o detetive vive assombrado pelos absurdos da guerra, assim como pelo medo de que outras pessoas se machuquem por sua causa. Dentro dessa lógica, a recuperação da arma por parte do detetive se transforma em uma questão que vai além de manter seu emprego: ele precisa manter a sua sanidade depois de um período tão conturbado e só salvando as vidas e obtendo sucesso ele pode se redimir, e junto com ele o Japão, por uma derrota na guerra.

A figura que entrará na história para guiá-lo será o detetive Sato, personagem típico na obra do diretor japonês, mais velho, conhecedor do mundo, compreensivo, experiente e, principalmente, representante do modo de vida tradicional. A relação estabelecida entre os dois é de admiração e respeito por parte do mais jovem e de paternalismo pelo mais velho. É impressionante a admiração pelas figuras paternais e sábias de Kurosawa, principalmente em se tratando de um filme realizado quando ele tinha apenas 39 anos. É fácil entender o motivo da utilização desse tipo de personagem em Ran, Madadayo ou Rapsódia em Agosto, já que esses filmes foram realizados numa época em que ele mesmo havia adquirido uma compreensão da vida através do próprio viver. Nesses filmes, principalmente em Madadayo, fica clara a identificação do diretor com seus personagens principais, que realizam um processo de revisão e reflexão sobre a vida aliado a uma aceitação diante da morte. Porém, nota-se que esse tipo de personagem está presente em todos os três filmes da coleção, provando que Akira Kurosawa vai além da simples identificação com os seus personagens idosos: ele é, principalmente, um admirador das tradições, da old school. Sem nunca se acomodar na idéia de que a forma tradicional é sempre a melhor, o diretor não se esquece de questionar os pressupostos de seus personagens durante o filme.

No caso de Cão Danado, um diálogo em particular nos mostra isso. Quando o personagem do bandido detentor da arma, Yusa, começa a ser construído, sempre através de depoimentos e conclusões dos próprios investigadores, evitando a definição precipitada de "vilão" e concentrando a atenção nas motivações dele, uma conversa entre os dois detetives revela uma dissonância na forma de pensar. Enquanto Sato crê na impossibilidade de uma mudança de comportamento por parte dos criminosos ("quem é mau, é sempre mau"), Murakami compreende Yusa e acredita que determinadas circunstâncias podem ser as principais responsáveis por um crime. As informações sobre as condições de vida do criminoso e o final do filme, em que o ladrão chora um choro de arrependimento, parecem querer concordar com o mais jovem dos detetives.

A compreensão de Murakami se fundamenta principalmente nos fatores que o aproximam de Yusa: ambos são ex-combatentes da segunda guerra mundial e tiveram sua mochila roubada no retorno a sua cidade natal. Se nos centrarmos nesse aspecto, podemos imaginar que cada um representa uma face da mesma moeda. Dividindo um passado similar, cada um deles fez a sua escolha diante da derrota na guerra e das adversidades da vida. Ao interpolar esses dois personagens, Kurosawa os conecta de uma forma que apenas um encontro final entre os dois pode resolver. Apesar de Sato ser o responsável pelo sucesso da investigação, é Murakami que enfrenta o bandido no final. Ao ser confrontado por um homem desarmado que nada mais é do que a sua única possibilidade de redenção, Yusa hesita, mas atira no detetive, fazendo sua última e decisiva escolha no filme e sendo preso logo depois.

A tentativa de humanizar o personagem de Yusa e de problematizar a visão acerca do que faz um bandido muitas vezes entra em choque com as aspirações clássico-narrativas do diretor. Tem-se a impressão de que Kurosawa em diversos momentos fica no meio do caminho entre o filme de gênero e o filme de autor, o que faz com que ele perca de vista um ponto básico: a trama. Em um determinado momento as motivações dos personagens (no caso de Yusa o amor, a guerra, o status social, o desespero diante das condições de vida e da situação do mundo) se confundem de tal forma a tornar todas elas desimportantes dentro da história.

Em Viver, Kurosawa se concentra em apenas um personagem e na sua forma de encarar a vida. Kanji Watanabe é um senhor que descobre ter câncer no estômago, sendo impelido a rever a sua forma mínima de viver e a mudá-la já na velhice. É impressionante observar o carinho e a dedicação com que Kurosawa trata seu personagem. Por mais que toda a primeira parte da história sirva para derrubar Watanabe de qualquer certeza que ele tenha na vida, e para isso os próprios personagens irão decepcioná-lo e fazê-lo atentar para a realidade, a maneira terna do próprio diretor de contar tudo isso funciona como uma mãe estendida para que seu personagem se erga.

Durante essa revisão de sua vida, na qual Kurosawa nos coloca na mente de seu protagonista ao nos fazer viver com ele os flashbacks que contarão por o que ele já passou, lhe são apresentadas algumas formas de se viver bem, mas nenhuma delas se adequa à vontade de Watanabe. Aproveitar a vida na velhice, aqui, não é visto com o sentido ingênuo dos prazeres carnais. Os jogos, as mulheres e as bebidas simplesmente não se encaixam com essa idéia de Viver do título. Também não é se aproximar de alguém mais novo (como a mulher com quem trabalha) que ainda tem muita vida pela frente. É nesse ponto que o filme vai além da idéia de superação de adversidades para se viver bem: toda a questão está no como se olhar para a vida. É a observação atenta da sua forma de viver aliada àquela que os outros personagens o apresentaram que irá permitir que ele realize uma mudança dentro dele mesmo.

A ação de se olhar para trás no final da vida não é incomum na obra do diretor. Seus personagens idosos costumam realizar esse movimento em uma tentativa de aceitar a morte e melhorar sua compreensão da vida. O que difere Watanabe desse arquétipo típico é a novidade representada por esse olhar para a vida. Enquanto os outros personagens já chegavam na velhice como pessoas sábias e cheias de conselhos para dar, o protagonista de Viver chega nesse ponto com a curiosa perspectiva de alguém que pouco entendeu sobre o que passou. É exatamente na forma de aprendizado infantil – não à toa o cartaz do filme o mostra sentado em um balanço – que ele procurará o sentido de sua vida.

Saindo do ambiente do Japão contemporâneo, Kurosawa realiza Ralé, passado aparentemente no século XIX dentro de uma pensão que abriga pessoas pobres, em sua maioria idosos. Se Cão Danado é um filme que se aproxima do cinema clássico americano e parece tentar entrar em harmonia com um público médio na linguagem utilizada, Ralé faz o mesmo com o seu misto de drama e comédia.

Juntando personagens diferentes, embora todos com uma certa dose de excentricidade, em um mesmo ambiente, Kurosawa extrai momentos preciosos nos diálogos. O mais interessante, porém, é notar como o diretor constrói cada um dos personagens a partir de suas profissões não mais exercidas. O samurai, o artesão, o ator, o jogador, todos eles carregam o peso de se definirem por algo que não fazem mais. Todos se tratam e são tratados com o título de sua profissão do passado. Retirado aquele fator que antes os definia, perdem aquilo que justificava sua maneira de agir. De que adianta a bravura e o respeito imposto por um samurai se ele não tem mais espada nem suserano? Todos acabam perambulando como fantasmas procurando uma definição para eles mesmos.

Nessa visita ao passado em particular, Kurosawa foge um pouco do que parece ser sua intenção nos outros filmes passados no Japão Feudal. Enquanto naqueles (Ran, Rashomon, Trono Manchado de Sangue etc), o diretor procura as raízes das famosas características da sociedade japonesa (como a imensa importância da honra) em um momento em que ela era realmente acompanhada de tradições criadas para possibilitar o funcionamento daquela sociedade com um sentido de nação, em Ralé existe a preocupação com o comportamento dos personagens longe de um olhar acadêmico, que usaria a posição deles na sociedade como pressuposto para a maneira deles de agirem.

Ralé, mesmo com as inúmeras lições de moral que partem do sempre presente personagem do velho sábio, flui muito bem dentro da sua proposta de um único ambiente em que tudo acontece. Por ser uma adaptação de uma peça do russo Maxim Gorky, a mise en scène baseada na entrada e saída dos personagens do cenário principal é bastante explorada.

No que diz respeito à qualidade dos DVDs da coleção, em termos de imagem e som todos são razoáveis. Os extras trazem documentários sobre cada um dos três filmes. Nenhum deles vai além do "interessante", mas formam um bom adicional para quem estiver interessado na compra. A maior crítica, no entanto, vai para a legenda em português dos filmes, principalmente de Cão Danado. Não há exageros em afirmar que os diálogos são incompreensíveis em diversos momentos e as falhas na concordância de número e gênero são comparáveis à de uma tradução automática.


Bernardo Barcellos

(DVD Media Group Center)