Um
projeto-desafio é o que a trinca Olmi-Kiarostami-Loach
se impõe aqui. É uma empreitada em que,
mais do que alternar episódios, há também
uma idéia de uniformidade, com os personagens
das histórias se cruzando seja na imagem seja
na narrativa em si, fugindo um tanto do padrão
clássico dos filmes em episódios que simplesmente
abarca e acumula o trabalho dos cineastas. Não
chega a ser um trabalho radical, como algo que misturasse
a obra dos três cineastas, mas uma idéia
dessas arruinaria muito do que se consegue aqui, já
que os filmes são pensados para funcionarem como
blocos mesmo que fujam do tradicional. Tickets
é um desafio também por estabelecer uma
narrativa presa a esta locação em movimento
que é o trem. Não à toa, o episódio
que soa mais covarde é justamente o que escapa,
via flashback, do ambiente. E só a idéia
de unir cineastas com formas e discursos tão
diferentes em um projeto só – que é mais
que apenas juntá-los em um filme em episódios,
tendo em conta que aqui unem-se também suporte,
matizes, ambientes, diversos fatores em comum – já
é desafiadora o bastante pra valer o interesse
especial.
Um dos pontos fortes aqui é observar as capacidades,
mas acima de tudo, as formas como cada um dos três
cineastas escolhe lidar com o que tem para trabalhar.
Nesse sentido Ermanno Olmi é justamente quem
parece carecer mais de força. Não é
difícil notar que há um cineasta de talento
– embora não exista algo mais distante em força
de I Fidanzati que este episódio – mas
aqui não há nada mais do que o ser "bem
filmado" aqui. Enquanto se concentra num possível
romance entre os protagonistas, o cineasta até
arrisca algo interessante, mas seu tráfego de
lembranças e momentos não tem a força
que o cineasta parece crer e constantemente até
parece estar quase que enrolando. Há um ou outro
momento bonito, sobretudo entre os atores, mas como
um todo e em especial quando ele finalmente se concentra
nas ações do trem – o soldado, o copo
de leite –, as coisas ganham rumos até bastante
ruins, indo até mesmo contra certos conceitos
de sensibilidade que o filme de certa forma prega até
ali. Mais que uma quebra de proposta, a coisa é
apresentada mesmo como um complemento – falta mesmo
qualquer coisa de mais forte para que tudo aquilo não
seja mais que banal.
Já Kiarostami e Loach realizam trabalhos bem
mais interessantes de se ver em conjunto, sendo ao mesmo
tempo bastante díspares mas tendo muito em comum
no ato de observar os cineastas em ação.
Ambos realizam trabalhos que impressionam pela habilidade
de criar todo um trabalho de crescente dramático
em pouco tempo de filme. Nesse sentido, até pelo
apelo mais direto de trama social que têm, Loach
aparece até mais, conseguindo realizar sem dificuldade
tudo o que se propõe dentro dos limites arquitetônicos
e temporais que lhe reserva o filme. Mas díspares
também no que diz respeito a auto-desafiar seus
autores: por mais que o episódio de Loach seja
facilmente um de seus melhores trabalhos, sobram momentos
que pode se ter como típicos momentos "Ken-Loach",
como as cenas em que os três protagonistas discutem
a sinceridade ou mesmo a possibilidade de duvidar da
sinceridade do jovem albanês. Ainda que Loach
se esforce e consiga fazer que suas idéias em
geral funcionem – sendo os problemas mais uma questão
de interesse nessas idéias –, os meios para essas
idéias são bem menos problemáticos
do que em outros dos filmes mais recentes de Loach.
Kiarostami, por sua vez, definitivamente dá um
passo absolutamente inesperado, realizando um filme
que foge aos seus padrões, se concentrando em
personagens bastante diferentes de seus filmes anteriores,
em situações diferentes, em uma língua
diferente (o italiano). Há alguns momentos que
mostram mão pesada logo no começo, quando
a personagem da senhora que protagoniza o filme é
apresentado. No entanto, é impressionante o que
Kiarostami realiza a partir disto, não só
no que diz respeito à relação que
a senhora, grossa e mandona, tem com o jovem – um misto
de relação profissional-afetiva-passional,
algo bem pouco claro e que ele faz questão de
nunca simplificar –, mas também, e até
mesmo, em especial, nas cenas entre o jovem e a garota
adolescente, encenação fantástica
e cheia de planos impressionantes. Um trabalho instigante,
complicado, com revisão absolutamente necessária.
Uma prova de que Kiarostami é capaz de se reinventar
de outras formas ainda mais diversas do que as recentemente
conhecidas em Cinco.
Ainda que o episódio de Kiarostami seja a alma
que guia Tickets, no caso de se ter a paciência
necessária pra sobreviver aos trechos mais filme-discurso
do trabalho de Loach, o saldo ali é até
simpático, com raros momentos em que a coisa
desanda por completo, fechando com um final bastante
bom, que inclui um plano que encontra todos os personagens
do longa. Loach também é o único
a optar por uma câmera mais ágil, o que
tem lá seu interesse em ver estilos diferentes
lado a lado – o de Olmi também difere bastante
do de Kiarostami, mas de modo menos físico –,
mesmo que individualmente a coisa não dê
tão certo. Mesmo com um Olmi apático e
um Loach com seu interesse, nenhum filme com um episódio
como o de Kiarostami pode passar em branco, mesmo que
o resto fique muito distante.
Guilherme Martins
|