TICKETS
Ermanno Olmi, Abbas Kiarostami, Ken Loach, Tickets, Itália/Irã/Reino Unido, 2005

Um projeto-desafio é o que a trinca Olmi-Kiarostami-Loach se impõe aqui. É uma empreitada em que, mais do que alternar episódios, há também uma idéia de uniformidade, com os personagens das histórias se cruzando seja na imagem seja na narrativa em si, fugindo um tanto do padrão clássico dos filmes em episódios que simplesmente abarca e acumula o trabalho dos cineastas. Não chega a ser um trabalho radical, como algo que misturasse a obra dos três cineastas, mas uma idéia dessas arruinaria muito do que se consegue aqui, já que os filmes são pensados para funcionarem como blocos mesmo que fujam do tradicional. Tickets é um desafio também por estabelecer uma narrativa presa a esta locação em movimento que é o trem. Não à toa, o episódio que soa mais covarde é justamente o que escapa, via flashback, do ambiente. E só a idéia de unir cineastas com formas e discursos tão diferentes em um projeto só – que é mais que apenas juntá-los em um filme em episódios, tendo em conta que aqui unem-se também suporte, matizes, ambientes, diversos fatores em comum – já é desafiadora o bastante pra valer o interesse especial.

Um dos pontos fortes aqui é observar as capacidades, mas acima de tudo, as formas como cada um dos três cineastas escolhe lidar com o que tem para trabalhar. Nesse sentido Ermanno Olmi é justamente quem parece carecer mais de força. Não é difícil notar que há um cineasta de talento – embora não exista algo mais distante em força de I Fidanzati que este episódio – mas aqui não há nada mais do que o ser "bem filmado" aqui. Enquanto se concentra num possível romance entre os protagonistas, o cineasta até arrisca algo interessante, mas seu tráfego de lembranças e momentos não tem a força que o cineasta parece crer e constantemente até parece estar quase que enrolando. Há um ou outro momento bonito, sobretudo entre os atores, mas como um todo e em especial quando ele finalmente se concentra nas ações do trem – o soldado, o copo de leite –, as coisas ganham rumos até bastante ruins, indo até mesmo contra certos conceitos de sensibilidade que o filme de certa forma prega até ali. Mais que uma quebra de proposta, a coisa é apresentada mesmo como um complemento – falta mesmo qualquer coisa de mais forte para que tudo aquilo não seja mais que banal.

Já Kiarostami e Loach realizam trabalhos bem mais interessantes de se ver em conjunto, sendo ao mesmo tempo bastante díspares mas tendo muito em comum no ato de observar os cineastas em ação. Ambos realizam trabalhos que impressionam pela habilidade de criar todo um trabalho de crescente dramático em pouco tempo de filme. Nesse sentido, até pelo apelo mais direto de trama social que têm, Loach aparece até mais, conseguindo realizar sem dificuldade tudo o que se propõe dentro dos limites arquitetônicos e temporais que lhe reserva o filme. Mas díspares também no que diz respeito a auto-desafiar seus autores: por mais que o episódio de Loach seja facilmente um de seus melhores trabalhos, sobram momentos que pode se ter como típicos momentos "Ken-Loach", como as cenas em que os três protagonistas discutem a sinceridade ou mesmo a possibilidade de duvidar da sinceridade do jovem albanês. Ainda que Loach se esforce e consiga fazer que suas idéias em geral funcionem – sendo os problemas mais uma questão de interesse nessas idéias –, os meios para essas idéias são bem menos problemáticos do que em outros dos filmes mais recentes de Loach.

Kiarostami, por sua vez, definitivamente dá um passo absolutamente inesperado, realizando um filme que foge aos seus padrões, se concentrando em personagens bastante diferentes de seus filmes anteriores, em situações diferentes, em uma língua diferente (o italiano). Há alguns momentos que mostram mão pesada logo no começo, quando a personagem da senhora que protagoniza o filme é apresentado. No entanto, é impressionante o que Kiarostami realiza a partir disto, não só no que diz respeito à relação que a senhora, grossa e mandona, tem com o jovem – um misto de relação profissional-afetiva-passional, algo bem pouco claro e que ele faz questão de nunca simplificar –, mas também, e até mesmo, em especial, nas cenas entre o jovem e a garota adolescente, encenação fantástica e cheia de planos impressionantes. Um trabalho instigante, complicado, com revisão absolutamente necessária. Uma prova de que Kiarostami é capaz de se reinventar de outras formas ainda mais diversas do que as recentemente conhecidas em Cinco.

Ainda que o episódio de Kiarostami seja a alma que guia Tickets, no caso de se ter a paciência necessária pra sobreviver aos trechos mais filme-discurso do trabalho de Loach, o saldo ali é até simpático, com raros momentos em que a coisa desanda por completo, fechando com um final bastante bom, que inclui um plano que encontra todos os personagens do longa. Loach também é o único a optar por uma câmera mais ágil, o que tem lá seu interesse em ver estilos diferentes lado a lado – o de Olmi também difere bastante do de Kiarostami, mas de modo menos físico –, mesmo que individualmente a coisa não dê tão certo. Mesmo com um Olmi apático e um Loach com seu interesse, nenhum filme com um episódio como o de Kiarostami pode passar em branco, mesmo que o resto fique muito distante.


Guilherme Martins