A FEBRE
Carlo Nero, The fever, EUA/Inglaterra, 2004

A Febre é construído a partir da assunção pura e simples de uma divisão do mundo entre pobres e ricos. E, mais do que isso, numa oposição entre estes. Permeado de uma ingenuidade quase abjeta, o filme mostra uma mulher, interpretada por Vanessa Redgrave, que vive financeiramente bem, entrando em contato com uma realidade que ela até então desconhecia: a exclusão perpetrada pelo sistema capitalista. O didatismo da narrativa, armada como um “quase-conto moral”, e conduzida pela voz off incessante da personagem principal, que em diversos momentos chega a falar frontalmente para a câmera diante de um fundo neutro, configura na verdade um labirinto de pensamentos, mais ou menos conectados por livre associação e que percorrem o caminho de um exame de consciência burguês movido a culpa católica.

Como um devaneio interior – ou um diário no qual se expõem reflexões sobre o mundo – o filme procura expor o espectador a uma desconstrução das lógicas naturalizadas que movem o comportamento da classe média em particular. Estar tranqüilo com sua condição econômica estável é quase um crime, como colocado pelo filme. É preciso sentir culpa por aqueles que sofrem no mundo, pois, como a principal conclusão que o filme nos aponta, todos aqueles que possuem algo são responsáveis pelo fato dos outros não possuírem. Um atavismo dos grupos humanos é a grande justificativa para tal, pois que a grande separação existente entre aqueles que têm e aqueles que não têm vem de tempos imemoriais, das injustiças perpetradas historicamente por um grupo sobre outro.

A estratégia de “esclarecer” o espectador por um destrinchamento dos pensamentos mais comuns acerca do assunto é então combinada com uma ignorância por parte da personagem do que se dá no mundo, como símbolo da indiferença dos habitantes dos países ricos. A narrativa em tons fabulescos (os personagens não têm nome, os países não tem nome, nada é especificado ou contextualizado) fecha o circuito, criando uma representação em traços gerais das dinâmicas que movem a desigualdade social, como se o mergulho nesta abstração, neste mundo caricaturado propiciasse a reflexão (indireta) sobre a realidade. Como exemplo, temos o país “de sotaque estranho” ao sul, regido por uma ditadura sanguinária combatida por revolucionários violentos: belo, mas habitado por uma população paupérrima, que, no entanto, é corajosa e consegue manter altos valores – isso é o que a personagem descobre na sua viagem – após ter descoberto O Capital, de Marx, deixado anonimamente na porta de sua casa e lido com um misto de surpresa e curiosidade. A “febre” que a acomete é, pois, a crise de consciência que a destrói por conta desta série de revelações.

O que o filme tem de esquemático, ele tem de nocivo. Debruçar-se sobre raciocínios íntimos e infantis, aparentemente secretos, fora do domínio público, expondo-os como uma grande forma de conquistar a adesão do espectador por identificação, apenas reforça a distância existente entre estes “pólos”, a diferença instransponível entre os “privilegiados” e os “destituídos”, além de propagar uma reflexão paternalista da pior espécie.

Tudo isto leva a uma discussão sobre a imagem. E sobre o discurso. Talvez, para além da forma de narrar, didática ao extremo e claramente adaptada de um monólogo teatral, houvesse um interesse por este “outro” da parte de lá. Mas, a partir do momento que a personagem viaja para este “lá” e prossegue com seu discurso ordenador da realidade (a perda de controle que toma conta dela não é uma perda de controle sobre o mundo, mas apenas e tão somente sobre seus próprios processos interiores), tecendo as mais absurdas colocações como “os pobres são belos” ou “como os olhos desta mendiga são vivos!”, todo e qualquer outro discurso perde espaço. É enquadrado em planos de fotografia de poucos tons saturados, em close-up com grande angular, em câmera lenta... Pois trata-se de potencializar o impacto “necessário” da existência deste outro “desconhecido”. E de entender e explicar toda e qualquer nuance do mundo e dos posicionamentos possíveis de serem tomados, dar conta de tudo para assegurar que ainda estamos no controle.

Podemos, sim, compreender as causas da violência revolucionária em países periféricos, mas NÓS temos que entender. E NÓS temos que condenar a ditadura que os assola e as atitudes bravas daqueles que lutam pela sobrevivência. E NÓS somos os responsáveis. Pela pobreza, pelas guerras, pela nossa condição segura e confortável. E por tudo que não conhecemos e não entendemos. E é bom que seja assim, pois quando necessitarmos, é só fazer um exame de consciência e sofrer como bom Cristo, de preferência dentro de um quarto (ou um banheiro, como no filme), teorizar bastante e depois reencontrar, ao alcance da mão, todas as coisas boas que amamos – e que os “pobres” deveriam ter também, pois é essa a grande “injustiça” do mundo, que todos não possam desfrutar dos mesmos bens que nós (liberal-capitalista-branco-ocidental-cristão-esclarecidos). Travestido de humilde compreensão e mea culpa, A Febre é na verdade uma grande assertiva da hegemonia dos países centrais, que revela bem o tipo de postura que movimenta instituições como a UNESCO, apoiadora do filme. Se o ativismo e a militância são necessários em diversos aspectos, talvez igualmente importante seja pensar na nossa imagem e no nosso discurso, antes de nos voltarmos para os outros. Tentar compreender um pouco das dinâmicas que informam o mundo para então saber como nos inserir e como jogar com ela.

Tatiana Monassa