O GOSTO DO CHÁ
Katsuhito Ishii, Cha no aji, Japão, 2004

A rotina tem seu encanto

Existem muitos mundos em jogo em O Gosto do Chá: tantos mundos quantos forem os personagens em cena. Isso porque, neste terceiro longa de Katsuhito Ishii (o primeiro mais acessível fora do Japão), não há distinção de registro entre um determinado universo comum habitados por todos os seres (que poderíamos chamar do “mundo real-material”) e o universo pessoal que se passa na cabeça de cada um deles – um universo inevitavelmente individualizado e que, a priori, não pode ser dividido. Para Ishii, não há trauma nenhum no fato de que cada um de nós vive uma vida completamente sua em meio a todos os outros. Pelo contrário, para ele, esta é a magia maior da vivência humana: que possamos partilhar uma experiência de mundo, mesmo vivendo-a de maneiras absolutamente únicas e diferentes.

A forma como Ishii encena esta superposição de universos é uma que também não distingue o real do imaginário. Assim sendo, gêmeas gigantes, trens que saem das testas e homens vestidos de fantasias enormes são tão parte da realidade quanto qualquer banal jantar de família. Porque a realidade, em Ishii, é fruto sempre da combinação do exterior com o interior. Se é verdade que, neste trajeto, ele privilegia as crianças e os “fora do comum” (como o avô e o tio desenhista) como os receptores mais naturais dos planos não-físicos deste universo (algo explicitado na cena da hipnose, onde são justamente estes que não precisam passar pelo processo hipnótico para “vivenciar outros mundos”, porque já vivem neles), por outro lado ele permite aos adultos que incorporem também esta dimensão mágica em suas rotinas diárias, especialmente no seu trabalho (a ver as cenas no consultório do pai ou no trabalho de desenhista da mãe).

Na forma como monta este seu quase tratado sobre a experiência do mundo pelas pessoas, Ishii usa o ambiente privilegiado da casa de família para simbolizar o espaço da convivência, que é sempre possível, mesmo que não plena. Cada personagem possui o seu “canto secreto”, na casa, no mundo. Mas, isso não impede que eles consigam dividir outros espaços deste universo. Aos que tenham olhos atentos, talvez possa ser dada até a possibilidade de vislumbrar o universo alheio (como mostrado na absurdamente bela sequência da descoberta dos desenhos do avô), mas mesmo quando isso não acontece, nunca é instaurada uma crise de “não-comunicação”, pelo contrário. Se o adolescente chega em casa exaurido, após um longo trajeto catártico de bicicleta por se descobrir novamente apaixonado, é claro que seu tio e sua irmã, deitados no chão em seus próprios universos, não podem partilhar daquela emoção. No entanto, não há crise: parte-se para mais uma andada de bicicleta, lida-se com o imaginário no quarto, volta-se para o convívio comum. Assim são as coisas.

Um dos temas principais no filme, aliás, é esta tentativa de compartilhar os universos. Constantemente vemos relatos de personagens, onde quem os recebe nunca pode dizer exatamente o que aconteceu e o que é parte apenas do relato e do imaginário. Mas, mais do que isso, é essencial para Ishii brincar constantemente com uma questão tão antiga quanto o cinema em si: quem vê algo é tão importante quanto aquilo que é visto. Em inúmeros momentos do filme, após a encenação de um plano longo, ou até mesmo de toda uma sequência, Ishii faz um recuo e insere um plano de um personagem que observa a cena, até então oculto de nós. Tornando aquela cena algo visto por um personagem (e não uma realidade pré-existente), o que ele faz é radicalizar a personalização da experiência do mundo. Dois momentos especialmente impressionantes, até por colocarem em cena personagens somente com este fim, são o da velha dona do restaurante onde os estudantes conversam, e o do primeiro jogo do adolescente com sua musa, um plano único que, por si só, seria dos mais belos do filme (que, aliás, capta a essência da experiência amorosa na adolescência como poucos filmes já fizeram), mas que se torna antológica no recuo que faz para apresentar um personagem completamente desconhecido que observa, tão maravilhado quanto nós, tudo que ali se passa.

No final, que pode como poucos ser chamado de clímático (aliás, impressiona como o filme consegue ser tão aparentemente episódico e ao mesmo tempo tão cuidadoso no desenvolvimento de pequenos dramas de cada personagem, quase fechando todas as portas que vai abrindo ao longo de sua duração), Ishii fecha com um ponto de exclamação a junção entre os campos do pessoal e do geral: a menina consegue dar sua volta na barra horizontal, e isso dispara um processo verdadeiramente universal, que vai (ou seria pura coincidência?) ter efeitos até na luz do Sol, perceptíveis a todos os personagens do filme. Cada passo de uma trajetória pessoal é tudo que importa no universo, afinal. E, ao mesmo tempo, é apenas mais um passo: logo depois de momento tão enfático, a menina de maneira casual, mais uma volta na barra e, superado aquele obstáculo, sai sorridente de quadro.

O título de O Gosto de Chá nos remete diretamente ao cinema de Yasujiro Ozu, e certamente não é por acaso. Mas, a relação que Katsuhito Ishii tem com este que é um dos maiores nomes do cinema do mundo (no Japão, então, é fácil imaginar o tamanho da sombra que ele joga sobre os diretores) não é a de um respeito idólatra, tolo em sua repetição. É sim a do autêntico admirador, aquele que pega algo que admira na obra de outro e o torna intrinsecamente seu. Nesta operação, Ishii pega um tanto de Jacques Tati também (na maneira de encenar e pensar o cinema a partir de pequenas esquetes cômicas absolutamente interligadas, no uso do som não-naturalista, especialmente o off), outra pitada de Tarantino (para quem, aliás, ele dirigiu a sequência animada em Kill Bill volume 1), mistura isso tudo com o anime e o resultado é inegavelmente único – é Ishii.

Eduardo Valente