SIN CITY - A CIDADE DO PECADO
Robert Rodriguez e Frank Miller, Sin City, EUA, 2005

O traço do desenho prima pela simplificação do mundo. Os contornos definidos daquilo que no real se constitui como corpo (e cujo volume o distingue do que não é ele) delineiam pessoas e coisas, expressões e ações. A história em quadrinhos, na sua composição mais clássica, tenta trazer ao desenho, ao transformá-lo num meio narrativo, o tempo e o movimento. Sua simplicidade de traços e cores ajudou-a a afeiçoar-se à fantasia e toda sorte de “realidade paralela”. Mas ela também se diversificou: a chamada “graphic novel” não apenas trouxe um reconhecimento mais literário à produção quadrinística, como ampliou seus parâmetros ilustrativos. As narrativas em imagens ganharam outras possibilidades artísticas e representativas, aproximando-se por um lado da literatura e, por outro, da pintura, ao mesmo tempo em que se afastavam da simplicidade do desenho, ganhando espessura nos jogos de luz e sombra que permeiam o mundo em três dimensões. E, nesta interseção, sua relação com o real também foi alargada.

Frank Miller, ao realizar sua graphic novel Sin City, parece levar tais características a um paroxismo. Sua suprarrealidade decalcada de um imaginário do cinema noir americano e do submundo novaiorquino, esculpida em pretos e brancos absolutos e colorida de uma violência sem limites, nos informa de possibilidades gráficas de representação de ritmo e de movimento e de recorrências de representação, tanto em relação a imaginários quanto a referências ao real. Basin City é um mundo sem lei, habitado por toda sorte de criminosos, por homens durões e valentes, torturados em seu interior e portadores de um código moral nada “correto” (embora o melhor possível frente às condições adversas em que vivem) e por mulheres-fetiche que fazem o que podem para sobreviver. Neste país de lobos, qualquer parceria é um ganho incomensurável e qualquer traço de boas intenções é a redenção. Entregues à própria sorte, os homens dão livre vazão a seus desejos e poucos conseguem permanecer íntegros.

Personagens tipificados, eles pouco têm de individualidade. Suas atitudes e seus amores são repetições atávicas de um universo-amálgama que os ultrapassa como criação singular. Miller trabalha com os traços delineadores de um grande imaginário que ele se propõe a retomar e ampliar. Não o interessam pessoas com dramas tangíveis expostas a situações extremas, nem mesmo uma realidade cuja lógica sugerisse paralelos com processos experimentados na realidade concreta que habitamos. A simplificação de sua representação está a serviço de um grafismo do extremo e de um nuançar em luz e sombras dos exageros dos estereótipos. Sua pesquisa “cultural”, amparada por uma experimentação plástica, encontra sua solidez ao reintegrar um caldo cultural e tornar-se ela mesma um reduto cult e fonte de inspiração.

Miller refutou, portanto, durante muito tempo as ofertas que lhe chegavam de uma adaptação cinematográfica. Cedeu, porém, aos apelos de Robert Rodriguez, que, armado com uma experimentação tecnológica a partir dos meios mais avançados disponíveis para a criação cinematográfica, mostrou-lhe ser possível transladar o universo daqueles quadrinhos para imagem em movimento, sem alterar o “espírito” do original. Surpreendente em seu trabalho pictórico de contrastes exacerbados e luzes duras e marcadas, no qual os pixels mais se assemelham a pinceladas que tentam trazer para a bidimensionalidade as três dimensões do real, Sin City filme cria uma atmosfera artificialesca bem nos moldes dos quadrinhos de Miller. A ação se segue vertiginosamente, ações e acontecimentos chamam o movimento, os personagens expõem seus dramas em monólogos ou em frases curtas de efeito. Tudo o que era marcante na graphic novel está ali transposto sem ser repensado.

O que encanta os puristas e os admiradores da arte da adaptação por um lado, por outro desvaloriza o feito cinematográfico de Rodriguez. Pois o cinema é um outro meio, ainda que um tanto maleável. Um meio debitário de uma vasta história e com termos de representação que ultrapassam a questão imagética (como, aliás, as próprias HQs). O que no trabalho original de Miller constituía uma reconfiguração de dados cinematográficos, para integrar a criação de um universo próprio, por assim dizer, no caminho inverso para o filme perde sua significação e cai num emaranhado de imagens que sustentam pouco mais do que sua própria plasticidade. A estética de luz e sombra do nanquim sobre o papel está ali traduzida perfeitamente num uso impressionante do registro em digital de alta resolução aliado ao CGI. No entanto, o cinema, que já conhece o universo noir embalado por uma narração em off do protagonista masculino amargurado e politicamente incorreto e repleto de femmes fatales, assim como a violência extremada de um submundo que foge de qualquer tipo de lei, recebe a narrativa de Sin City de forma fria e seca, meio sem vida. A ele não foi solicitado um entrecruzamento com o meio dos quadrinhos para além da imagem, como, por exemplo, um achatamento de referências cinematográficas com que o filme inevitavelmente dialoga.

O imaginário da cidade sem lei, que a Christopher Nolan rende em Batman Begins comentários acerca do real, baseados na sociologização e psicologização da violência e do medo, apresenta-se em Sin City como um todo praticamente auto-sustentável, no qual nem a violência gráfica gratuita e absurda nem os estereótipos mergulhados numa idéia de “pecado generalizado” são pensados em termos de representação em relação ao meio que os veicula. O trabalhar de imagens de Rodriguez não entra no campo representativo e narrativo, talvez por conta mesmo de seu profundo desejo de fidelidade a toda a criação de Miller, cuja co-direção do filme assegurou a perfeita re-criação de sua obra. Aparentado a um autêntico capricho de fã, Sin City não apresenta, pois, nada muito além de um farto deleite técnico-visual.

Tatiana Monassa