"As
mentes limitadas imaginam que o extremo do gosto não
combina com a energia"
Paul Valéry
Podemos tranqüilamente ver Seven Swords como
um filme convencional, mas toda sua força só
pode ser apreendida se ele for visto como o que verdadeiramente
é: uma cintilação. Tsui
Hark hoje é talvez o único cineasta em
atividade que pode requerar a filiação
ao ideal de total motricidade do cinema de Dziga Vertov,
nem mais nem menos. E Seven Swords, primeiro
volume de um projeto megalomaníaco semelhante
à hexalogia Era uma Vez na China, é
o primeiro projeto desde O Tempo e a Maré
(2000) em que Tsui conseguiu dedicar todos os seus esforços
e sua atenção para fazer o que mais lhe
interessa: um balé de movimentos vertiginosos,
uma torrente de imagens que nos fazem ter uma recepção
propriamente física do ritmo do filme, uma composição
e uma estruturação propriamente dinâmica
do espaço cinematográfico. Seu cinema
é cinético, e vai rápido. Mais
rápido, às vezes, até do que nossas
percepções da história. Quem é
o bom, quem é o mau, quem fica com quem, quem
é quem? Tsui Hark não se preocupa em responder
nenhuma dessas perguntas em seus filmes, e tampouco
em instalar personagens, realçar suas caracterizações,
nada disso. Seu interesse é a ação
(não confundir "ação"
unicamente com as cenas de ação), a emoção,
e é para ela que ele organiza seus filmes. Não
são filmes plácida e harmonicamente estruturados
com pausas, crescendos, grandes momentos de clímax.
Como os filmes de Samuel Fuller, os filmes de Tsui Hark
são excessivos, desajeitados, bruscos, cheios
de arestas: enfim, pessoais, únicos e cheios
de vitalidade.
Seven Swords é um filme que chega aos
circuitos de cinema num momento em que já se
espera do cinema de ação do eixo China/Hong
Kong algo semelhante a Herói e O Clã
das Adagas Voadoras, ambos dirigidos pelo floreador
chapa-branca Zhang Yimou. Ora, é um automatismo
tão irônico quanto perverso: Tsui faz parte
da primeira geração de renovadores do
cinema wuxia pian (filme de cavaleiro andante),
a partir do começo da década de 80. E,
como tal, seu cinema deve muito pouco às duas
obras de Zhang vistas nos cinemas em 2004. E, como não
poderia deixar de ser, supera-as de longe. Nada do monumentalismo
pesado de Herói ou da colônia de
rosas recheada de abusos de CGI chamada O Clã
das Adagas Voadoras. Aqui, o principal interesse
não é criar um suplemento "de arte"
para dar conta do universo do cinema de artes marciais
(essa a maior artificialidade dos dois filmes de ZY),
mas fazer a arte brotar do movimento, da ação,
da velocidade. A diferença é enorme.
Seven Swords, a esse respeito, é um grande banho
refrescante para lavar a alma: até dentro do
próprio cinema de Tsui Hark, não foram
tantas as vezes em que ele consegui equilibrar com tanto
cuidado o lirismo e a rapidez, a delicadeza e puerilidade,
a atenção ao detalhe e a instalação
da urgência permanente diante do filme.
Não adianta muito descrever a história.
Seven Swords é como um filme abstrato
(porquie abstrata é a arte de Tsui Hark: ritmo,
movimento, montagem, alterações no plano):
pouco importa o que é contado, o essencial ainda
fica na imagem, intransferível. Importa, sim,
declarar que em todas as cenas de ação
diante da tela grande, tamanha é a quantidade
de informações que aparecem na tela, tão
preciso é o estabelecimento dos espaços,
tão meticulosos são os enquadramentos
e a duração de cada plano que os músculos
se retesam imperceptivelmente e o coração
vai à boca. Há muitos cineastas que quebram
o "esquema sensório-motor" do cinema
de ação pela lentidão (Antonioni,
Tarkovski, ou hoje Vincent Gallo), mas não há
muitos que o rompem pelo excesso. Não, ao menos
no cinema narrativo. Resultado: ao fim de cada uma das
cenas mais agitadas, e só aí, nos deparamos
com a intensa velocidade em que fomos instalados. Alteração
do ritmo de nossa consciência que nos faz desaguar
numa experiência física, numa condição
diferente de percepção.
Um tal apuro de linguagem meta-experimental e ao mesmo
tempo um espécime regular de gênero cinematográfico,
o máximo da delicadeza junto com o burlesco grosseiro
(o riso de hiena do vilão Firewind), o trivial
e o filosófico (alguns cortes são de antologia:
o plano geral da cidade devastada logo após uma
luta vitoriosa dentro de um galpão; as crianças
sendo vistas em seguida aos guerreiros mercenários
enquanto Firewind faz o nexo entre os dois), uma forma
arrojada e especulativa dentro de um grande espetáculo
popular, tudo isso tende a traçar um paralelo
singular no cinema de hoje, ou talvez tendo como
único companheiro M. Night Shyamalan com
o cinema de John Ford. Curiosamente, o tema da comunidade,
sua sobrevivência, suas leis e sua exceção,
fordiano por excelência, é um dos focos
de Seven Swords. Naturalmente, isso os aproxima,
mas todo o resto os afasta. Ford fazia um cinema de
instalação, de sedimentação
(a vivência comum que deixa o fugaz e vira História
ou mito), enquanto Tsui faz um cinema do fluxo, do elogio
do instante. Ele só consegue instalar seus personagens
quando em êxodo: a cidade que precisa se transformar
em comunidade nômade para não morrer. É
uma bela metáfora do cinema de Tsui Hark: ou
se move, ou morre.
Cinema dinâmico, pois. Como em toda dinâmica,
não importa só o movimento percorrido,
mas também o corpo, o móbil, suas características.
Seria falso supor que, só porque Tsui é
um cineasta do fluxo, os corpos mesmo importem pouco.
E, para que tudo se movimente, é preciso primeiramente
que exista. E Seven Swords é cheio de
uma profunda fisicalidade, nas locações
que o filme emprega ao invés de usar o CGI (os
mundinhos de videogame de O Clã das
Adagas Voadoras, Senhor dos Anéis,
Matrix), na fragilidade dos corpos, submetidos
às ações dos objetos sobre eles
(um gancho próximo ao olho, muitos cortes na
pele, alguns desmembramentos, braços e pernas
do herói presos por corda a cavalos prontos para
galopar), e talvez sobretudo na individualização
das espadas que dão título ao filme. Elas
têm suas personalidades, seus modos de usar, seu
fascínio próprio, tão grande quanto
os dos próprios personagens. Possuir as duas
ao mesmo tempo pode ser a ruína (como acaba de
fato sendo, ao final), porque o importante num duelo
e, mais ainda, o importante para Tsui Hark
é que elas estejam em lados separados para que
possa haver o choque. Afiadas e em movimento, essas
espadas cortam e superam pela velocidade uma série
de imagens e de filmes, dos já mencionados filmes
de Zhang Yimou, chegando até Wong Kar-wai e Tarantino.
Poetas do estático, tremei: o fluxo há
de instabilizar tudo, e assim criar uma verdadeira sensação
de experiência vertiginosa. Pois o ideal do cinema
de Tsui Hark, um cinema intransigente com aquilo que
ele não quer filmar historinhas, planos
meramente descritivos , idiossincrático
com aquilo que de fato filma um cavaleiro se
despedindo de seu cavalo, o amor entre o exímio
espadachim e a escrava , mas sempre certeiro em
fazer de tudo pura ação. Essas sete espadas
são afiadas. Como no ideal de João Cabral
de Mello Neto, a faca aqui é só lâmina.
Tsui Hark deu cabo do cabo.
Ruy Gardnier
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