O SENHOR DA GUERRA
Andrew Niccol, Lord of War, EUA, 2005

Poderíamos chamar O Senhor da Guerra de documentário? Dificilmente, mesmo que Nanook, um clássico dessa seara de filmes, tenha uma relação tão semelhante com a realidade. Mas o que interessa aqui é o fato de que as principais virtudes desse filme de Andrew Niccol são aquelas que se espera de um bom documentário informativo/jornalístico: apresentação e exaustão de um tema complexo e pouco considerado, veemência e relevância em torno de um tema social da maior importância (e ainda mais num momento oportuno de discussão na sociedade brasileira), mostrar as contradições inerentes na relação entre o business dos países e a defesa que fazem da paz e da democracia, etc. Um problema se coloca – e de certa forma se coloca da mesma forma que nas discussões sobre a validade do cinema de Michael Moore –: para quê, então, fazer um filme de ficção? A resposta, nos dois casos, tenta se justificar (tanto a ficção quanto no caso desse filme ou a linguagem televisiva-pegadinha-trash do cinema de Moore) pela maior receptividade e aceitação de público. Mais um motivo de aproximar isso tudo da questão do documentário, porque é acima de tudo uma tentativa de vínculo social que se tenta estabelecer entre produtores conscientizados e público interessado.

Afora isso, não há muito mais coisas que o filme revela. Podemos louvar O Senhor da Guerra por construir seu personagem entre Estados Unidos e Ucrânia (é aí que reencontramos a Little Odessa, gueto ucraniano em Nova York que havíamos conhecido com o incrivelmente superior Fuga para Odessa de James Gray), entre os valores de "livre empreendimento" do capitalismo americano e o desmonte do armamento pesado ucraniano a partir da dissolução da União Soviética. Podemos gostar da maneira que o filme mostra como os grandes megaempresários circulam de maneira muito harmônica entre as figuras do glamour (Ava Fontaine, também saída de Little Odessa e transformada em megamodelo, vira a esposa do protagonista Yuri Orlov) e os chefes de estado, sejam eles ditadores sanguinários da África, sejam os soturnos engravatados do oficialato americano. Podemos, finalmente, apreciar a forma como o filme relaciona as maiores potências mundiais ao tráfico ilegal de armas, e como ao final mostra que a atividade ilegal é não só tolerada pelos governos, mas incentivada porque também lateralmente os ajuda, tanto política quanto economicamente.

No entanto, podemos gostar de tudo isso, e ainda assim O Senhor da Guerra só se sustenta nesses termos. Toda a preocupação de mise-en-scène que um filme como Gattaca, seu primeiro longa, mostrava reduz-se aqui a efeitos não muito distantes do cinema mais pirotécnico e infantil de um Michael Bay ou de um Peter Jackson. Contemplemos a "sacada genial": na seqüência de abertura, filmar do ponto de vista de um projétil o caminho que vai desde sua feitura na fábrica até a colocação numa embalagem, passando por aviões, chegando ao tambor da arma propriamente dita e indo terminar na testa de um adolescente negro com cara de vítima. Genial ou grotesco? Até onde podemos ir com nossas boas intenções? Devemos vender uma idéia como se vende um produto, sensibilizando apenas pelo sensacionalismo, como se algo como a razão não fosse interessante o suficiente? São perguntas que tocam profundamente a construção de imagens hoje, dos filmes à publicidade (e é particularmente chocante ver a estupidez das publicidades pró-Sim e pró-Não na campanha para o referendo do desarmamento) e que Andrew Niccol não consegue equacionar minimamente com o seu filme. Se dirigir filmes como Gattaca e S1m0ne, além de roteirizar e produzir O Show de Truman colocavam Niccol como uma figura verdadeiramente interessada na contemporaneidade, a partir de O Senhor das Armas mais parece que temos diante de nós um novo Stanley Kramer, ou um novo Oliver Stone: um diretor que parasita um tema importante para compensar a insuficiência estilística.


Ruy Gardnier