Pode-se
argumentar que já passou o tempo em que se buscava
a especificidade do cinema em relação
às outras artes, e se praticava uma espécie
de policiamento em torno do que era particularmente
"teatral", "literário", "pictural"
em tal ou tal filme, com a conseqüente intenção
de minar os méritos essencialmente cinematográficos
do dado projeto. É nesse momento que sempre surge
um Manoel de Oliveira para embaralhar todos os nossos
pressupostos, fazendo muito cinema ao mesmo tempo
que faz muita literatura ou muito teatro
(coisa que, aparentemente, ele herda das reflexões
entre teatro e cinema de Dreyer ou então
simplesmente ambos chegaram às mesmas conclusões
separadamente). Mas não é toda
vez que um prodígio desses acontece, e no mais
das vezes nós temos que lidar mesmo com material
porcamente "adaptado" de um meio para outro.
Em aspas o adaptado, porque quase sempre o que se vê
é um mero registro. Não é o caso
de Selva, mas seu diretor parece recair num procedimento
ainda mais escabroso, do outro lado: apelar para uma
forma "arrojada", que apareça como
ousada para aqueles que já esperam produtos dessa
fatura.
Acontece que Selva é um filme que pode
tranqüilamente ser visto sem que se tire uma única
vez o olho das legendas. Mais parece uma transposição
tal qual de um livro de contos que só
contenha diálogos. O procedimento de filmagem
é igual em todos os episódios: câmera
ziguezagueando de um personagem para o outro em planos
longos ou (raros) cortes bruscos. Primeiro esquete:
numa casa em que duas namoradas moram, uma delas traz
para dentro um sujeito que vai se suicidar; logo após,
dois mecânicos conversam sobre o que parece ser
uma boneca inflável; posteriormente, um pai parece
muito pouco à vontade com a transformação
de sua filha em adolescente. Esses três exemplos
já são suficientes para perceber que Selva
é montado para caber todos os atributos do que
é considerado in num determinado circuito
de filmes: lesbianismo, suicídio por uma causa,
alienação familiar, sexo transformado
em mercadoria, pedofilia. Tudo isso muito bem emoldurado
por uma seqüência inicial que volta também
como última seqüência: os personagens
reunidos numa estação de metrô,
entre outros anônimos. Uns anônimos para
os outros, e, no começo do filme, todos anônimos
para nós. Qual seria a grande moral da história,
então? "Contemplemos o grande mosaico da
existência humana"? Mais nos parece que o
filme opta, ao contrário, pela paranóica
e exoticizante "Como tem gente estranha no mundo,
e uma delas pode estar a seu lado"
Não haveria, no fundo, muito mais semelhanças
do que diferenças entre Selva, com seu
aparente anti-humanismo e seus joguetes para transformar
todas as pessoas em seres asquerosos, e um filme como
Eu, Você e Todos Nós, presente aqui
na mesma mostra, que exibe pessoas solitárias
e de bom coração, apenas com defeitos
e esquisitices que cada um tem, professando ao contrário
um frouxo humanismo de LBV (mas todo humanismo é
frouxo, já dizia o finado Foucault) com profundo
cheiro de genuflexório? Entre o malvadinho de
plantão disposto a épater les bourgeouis
e a mocinha simpática que choca para depois enternecer
(mais próxima da pieguice de Hal Hartley do que
das boutades metidas a besta de Todd Solondz),
há em comum o hábito bastante desagradável
de ficar vendendo "o humano", dizer que ele
é isso, que ele é aquilo. O que se diz,
pouco importa (quer dizer, para aquele que vai ver o
filme esperando ver um mundo bonzinho ou um malzinho,
talvez importe): o que importa é que o relato
não consegue ir mais longe que isso, que a ficção
não passa da corroboração de um
olhar totalizante sobre a humanidade. E, como não
poderia deixar de ser, já que o interesse é
pela "mensagem" e não pelo processo
artístico em si, basta que a câmera enquadre
os atores, que suas falas sejam plausíveis, que
a luz e os cortes sejam adequados, etc. Enfim, se falta
ficção no nível do relato, falta
invenção no nível da organização
visual. Mas há de sobra discurso sobre o humano.
Como não poderia deixar de ser, há mais
discurso que humano. Fora!
Ruy Gardnier
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