SELVA
Benedek Fliegauf, Rengeteg, Hungria, 2001

Pode-se argumentar que já passou o tempo em que se buscava a especificidade do cinema em relação às outras artes, e se praticava uma espécie de policiamento em torno do que era particularmente "teatral", "literário", "pictural" em tal ou tal filme, com a conseqüente intenção de minar os méritos essencialmente cinematográficos do dado projeto. É nesse momento que sempre surge um Manoel de Oliveira para embaralhar todos os nossos pressupostos, fazendo muito cinema ao mesmo tempo que faz muita literatura ou muito teatro (coisa que, aparentemente, ele herda das reflexões entre teatro e cinema de Dreyer – ou então simplesmente ambos chegaram às mesmas conclusões separadamente). Mas não é toda vez que um prodígio desses acontece, e no mais das vezes nós temos que lidar mesmo com material porcamente "adaptado" de um meio para outro. Em aspas o adaptado, porque quase sempre o que se vê é um mero registro. Não é o caso de Selva, mas seu diretor parece recair num procedimento ainda mais escabroso, do outro lado: apelar para uma forma "arrojada", que apareça como ousada para aqueles que já esperam produtos dessa fatura.

Acontece que Selva é um filme que pode tranqüilamente ser visto sem que se tire uma única vez o olho das legendas. Mais parece uma transposição tal qual de um livro de contos que só contenha diálogos. O procedimento de filmagem é igual em todos os episódios: câmera ziguezagueando de um personagem para o outro em planos longos ou (raros) cortes bruscos. Primeiro esquete: numa casa em que duas namoradas moram, uma delas traz para dentro um sujeito que vai se suicidar; logo após, dois mecânicos conversam sobre o que parece ser uma boneca inflável; posteriormente, um pai parece muito pouco à vontade com a transformação de sua filha em adolescente. Esses três exemplos já são suficientes para perceber que Selva é montado para caber todos os atributos do que é considerado in num determinado circuito de filmes: lesbianismo, suicídio por uma causa, alienação familiar, sexo transformado em mercadoria, pedofilia. Tudo isso muito bem emoldurado por uma seqüência inicial que volta também como última seqüência: os personagens reunidos numa estação de metrô, entre outros anônimos. Uns anônimos para os outros, e, no começo do filme, todos anônimos para nós. Qual seria a grande moral da história, então? "Contemplemos o grande mosaico da existência humana"? Mais nos parece que o filme opta, ao contrário, pela paranóica e exoticizante "Como tem gente estranha no mundo, e uma delas pode estar a seu lado"

Não haveria, no fundo, muito mais semelhanças do que diferenças entre Selva, com seu aparente anti-humanismo e seus joguetes para transformar todas as pessoas em seres asquerosos, e um filme como Eu, Você e Todos Nós, presente aqui na mesma mostra, que exibe pessoas solitárias e de bom coração, apenas com defeitos e esquisitices que cada um tem, professando ao contrário um frouxo humanismo de LBV (mas todo humanismo é frouxo, já dizia o finado Foucault) com profundo cheiro de genuflexório? Entre o malvadinho de plantão disposto a épater les bourgeouis e a mocinha simpática que choca para depois enternecer (mais próxima da pieguice de Hal Hartley do que das boutades metidas a besta de Todd Solondz), há em comum o hábito bastante desagradável de ficar vendendo "o humano", dizer que ele é isso, que ele é aquilo. O que se diz, pouco importa (quer dizer, para aquele que vai ver o filme esperando ver um mundo bonzinho ou um malzinho, talvez importe): o que importa é que o relato não consegue ir mais longe que isso, que a ficção não passa da corroboração de um olhar totalizante sobre a humanidade. E, como não poderia deixar de ser, já que o interesse é pela "mensagem" e não pelo processo artístico em si, basta que a câmera enquadre os atores, que suas falas sejam plausíveis, que a luz e os cortes sejam adequados, etc. Enfim, se falta ficção no nível do relato, falta invenção no nível da organização visual. Mas há de sobra discurso sobre o humano. Como não poderia deixar de ser, há mais discurso que humano. Fora!

Ruy Gardnier