Em
homenagem a Jean-Claude Biette
Pensar o cinema: não defini-lo. Definir o cinema
seria como definir a arte, ou alguma coisa ainda mais
vasta, definir o indefinível, a vida mesma. De
qualquer forma eu evoco Aristóteles quando ele
diz: "O espírito (a alma) nunca pensa
sem imagens".
Quanto a mim, uma vez realizador de filmes, eu poderia
dizer que jamais freqüentei uma escola de cinema.
Essa afirmação seria um pouco mentirosa,
no entanto, mesmo se, à minha época, as
escolas de cinema ainda não existissem. Porque
decerto freqüentei uma escola, aquela à
qual meu pai me conduzia de mãos dadas, aquela
das salas de cinema. Foi assim que vi os Lumière,
os Méliès, os Max Linder, e, em seus filmes,
as três fórmulas cinematográficas:
o realismo, o imaginário e o cômico. Que
melhor escola, que melhor aprendizado poderia haver
além daquele dos grandes mestres e dos que se
lhes seguiram, multiplicando as formas e as composições,
e elevando o cinema justo à categoria de arte?
Aprendi o cinema olhando para a tela. Minha principal
e melhor bagagem de cinema me vem da herança
desses grandes pioneiros franceses. Depois vieram os
suecos e os dinamarqueses, os alemães, os italianos
e os russos. É a Paz dos Reis que pertence a
honra de ter sido o primeiro cineasta português
a se lançar sobre os rastros de Lumière,
no ano seguinte àquele da invenção
(1). Aliás, descobri recentemente
uma coincidência tão triste quanto estranha:
Paz dos Reis morreu exatamente no mesmo ano, e no mesmo
dia, 21 de setembro de 1931, em que foi projetado pela
primeira vez meu primeiro filme, o documentário
Douro, Faina Fluvial. Era ocasião do quinto
Congresso internacional da crítica, e aquilo
se passou no cinema Central, que ainda existe até
hoje, exatamente como era na época.
Mas a origem da invenção do cinema, tentemos
descobri-la. Eis o que direi sobre isso. Houve Leonardo
da Vinci que, ao imitar os pássaros, teve a ambição
de voar, tão forte, que ele chegou a tentar fazê-lo
por conta própria. Não conseguiu. Mas
se ele tentou fazê-lo, foi impelido pela força
desse desejo latente, esse desejo superior que submete
os corpos a ultrapassar sua simples condição
humana, esse desejo de poder e de céu. A idéia
de introduzir o movimento nas imagens, que, desde sempre,
se apresentavam imóveis, é a mesma coisa.
É o reflexo de tantas outras aspirações
humanas, remontando a tempos remotos, à obra
a que uns chamam evolução, outros progresso,
e ainda outros ação civilizadora. É
uma vontade muito antiga, na qual a invenção
do cinema representa apenas um projeto recente. Não
seria ele um certo efeito que certos pintores já
perseguiam com aquela implacável dificuldade,
a animação de suas composições?
Alguns sugeriam o movimento afetando tal parte ou o
todo de seus quadros, fixando tal expressão,
à maneira de um instantâneo, como um momento
ativo em que se evocaria a síntese. Em todo caso,
tratou-se de um desejo bastante tenaz, de geração
em geração, até que ele terminasse
por se concretizar, após diversas e múltiplas
tentativas, com a chegada dos resultados obtidos por
Edison, e aqueles de Lumière, ainda mais conclusivos,
dos quais já falamos.
O cinema nasceu, portanto, sob o signo de uma obsessão,
aquela do movimento. Por conseguinte, a idéia
do movimento se tornou uma espécie de psicose,
que ela mesma devia conduzir à idéia de
que o cinema era movimento. Donde aquela máquina
primitiva que foi imaginada por Edison e Dickson ter
recebido o nome "kinetographo", termo que
designa o movimento, que se tornou o conceito maior
do cinema, alguns, ainda hoje, continuando a lhe dar
essa importância.
Graças, contudo, aos primeiros mestres do cinema,
que tinham ao mesmo tempo a paixão da arte e
a da novidade, o processo evoluiu, modificando a idéia
simplista de movimento em benefício de
certas outras que trouxeram à idéia de
cinema riquezas surpreendentes, que o elevaram justo
à categoria de Sétima Arte.
A ciência, as artes, as sociedades, a vida enfim,
conheceram, com a passagem do tempo, uma evolução
natural. A partir do começo dos anos trinta,
o cinema se enriqueceu com a chegada do som, e já
não era mais aquele assunto que não concernia
senão aos olhos; os ouvidos agora tinham lá
sua parte.
Para certos puristas, essa passagem pareceu, e em parte
comprovadamente, como uma desnaturação
do caráter original do cinema. Alguns dos realizadores
mais ilustres a rejeitaram porque eles viam ali uma
traição de seu ideal do cinema enquanto
Arte do Silêncio. A chegada do sonoro lhes parecia
a corrupção de uma pureza original. Corrupção
daquilo que tinha nascido mudo e tinha por isso mesmo
se libertado de todo tipo de matéria residual
teatral ou literária.
E eu, por aquilo que via, lia ou ressentia, estava profundamente
atrelado a esse tipo de expressão, e acompanhei
o passo dos opositores do sonoro que viam nas imagens
mudas e seu jogo de montagem alguma coisa de específico.
Foi com os filmes dessa primeira fase do cinema que
eu recebi as primeiras lições, os fundamentos
de minha educação cinematográfica.
Entretanto, como eu disse, no início dos anos
trinta, e, justamente, após um período
de apogeu do cinema mudo, surge o som e, em seguida,
a palavra. Uma verdadeira revolução da
idéia do cinema que se tinha naquela época,
ainda agravada com a aparição das imagens
em cores, ao passo anteriormente tudo se dera em silêncio
e em preto e branco, como nos sonhos.
Não se tardou a reconhecer que esse lado onírico
do cinema ganhava em troca um novo potencial de ilusão
– aquele da aparência do real concreto.
A idéia do kinetographo, a idéia do movimento
como indissoluvelmente ligado à invenção
do cinema, e estimulando essa outra, essa mesma idéia
que leva certamente os americanos a chamarem seus primeiros
filmes sonoros de "talkie-movies",
continua enraizada, vê-se bem, no subconsciente.
A idéia do movimento como característica
fundamental do cinema.
Seja qual for, abandonei minha concepção
anterior, e parei de combater a introdução
do som, da palavra e da cor. O mundo tinha mudado, e
ainda muda, e as mentalidades com ele. O cinema tinha
evoluído conseqüentemente e se enriquecera
de novas técnicas que haviam modificado esse
substrato de cinematógrafo baseado no
movimento e na montagem. Era preciso que o cinema adquirisse
um novo conceito, e que o precedente se tornasse obsoleto.
Foi assim que o cinema se tornou, mais do que nunca,
uma síntese de todas as artes, que ele se pôs
a englobar os quatro elementos – a saber: imagens (quer
elas estejam ou não em movimento, ou em cores),
sons, palavras e música. Como o teatro, aliás.
Mas Jean-François Lyotard definiu bem sua diferença:
o teatro é material, porque ele comporta
a presença física de cenários e
de atores, enquanto o cinema é imaterial,
pois embora a máquina de projeção
e a tela possuam de fato uma consistência física,
ou seja, material, as imagens projetadas não
estão lá, são imateriais.
Desse modo, se filmamos um evento real, a realidade
que será projetada sobre a tela não será
o evento ele mesmo, mas o fantasma dessa realidade passada,
jamais a realidade em si, seja ela de um evento ou de
um simples objeto. Ou que se trate ainda de imagens
de ficção. Trata-se mesmo, no ato da filmagem,
de uma realidade filmada, mas tão-logo as imagens
são projetadas numa tela de cinema ou de televisão,
não estamos mais diante dessa realidade anterior,
estamos somente vendo o fantasma da coisa filmada. É
assim que todas as imagens de qualquer realidade, autêntica
ou ficcional que seja, são sempre transpostas
pelo fantasma dessas duas realidades.
Gilles Deleuze analisou o cinema por meio de um conceito
de imagem-tempo, da mesma forma que anteriormente
seu discurso desenvolvia um primeiro conceito de imagem-movimento.
No fundo, é curioso: num primeiro momento, ele
começou por ligar a imagem ao movimento,
depois, numa segunda fase, ele a religou ao tempo.
Com efeito, se encaramos o movimento no sentido físico,
ele consome tempo, ele nem mesmo existe sem gasto de
tempo, mesmo quando se trata de um movimento que não
sai do lugar, como é o caso ao se agitar uma
coisa qualquer sem que ela todavia saia de sua posição.
Ou quando num certo espaço uma pessoa, ou um
objeto, descreve um movimento, ao se deslocar de um
ponto a outro.
Acabamos de falar da imagem em relação
ao movimento e ao tempo. Mas a palavra
falada ou lida implica também um gasto de
tempo, uma duração mais ou
mentos estendida, segundo a extensão maior ou
menor da palavra, que necessariamente corresponde a
um tempo, e do que o movimento dos lábios na
visão do surdo seria a prefiguração
no cinema mudo. O cinema hoje é tão visual
quanto oral, quero dizer sonoro, e seu funcionamento
concerne, eu já disse, tanto aos olhos quanto
aos ouvidos.
É estranho que Molière tenha dito, há
mais de trezentos anos: "A palavra serve para
explicar o pensamento, mas a palavra é também
o retrato das coisas, e da mesma forma, o retrato do
pensamento". Sem repetir exatamente as mesmas
palavras, Molière se aproxima aqui do que dizia
Aristóteles de outra forma: "O espírito
nunca pensa sem imagem".
Assim poderíamos dizer que pensamento
e palavra são também imagem. Pois
não é da palavra que vem o retrato
das coisas? Se eu digo "cadeira", formo
uma imagem cerebral equivalente ao retrato do
conceito de cadeira.
A palavra serve também como expressão
de sentimentos, segundo um modelo bastante preciso e
claro, eu diria, de explicação, e segundo
um procedimento implicando quase o mesmo tempo que um
rosto levaria para exprimir tais sentimentos.
Movimento e tempo vão de braços dados;
quanto a palavra e imagem, finalmente, se elas não
se confundem, eu diria que elas se fundem, o que poderá
nos levar a dizer que o tempo é também
movimento e que a palavra é também
imagem.
A imagem fixa, aquela da pintura ou da fotografia, por
exemplo, na medida em que lhe falta o movimento,
não nos dá uma impressão de tempo,
mas ela ocupará sempre um tempo, que não
será senão aquele que gastamos a olhá-la.
Ao cinema, é cada imagem que tem sua duração,
e o filme tem o tempo de sua projeção.
É então estranho que Gilles Deleuze não
evoque o elemento sonoro no título de nenhum
dos seus dois volumes. Nem no primeiro, A Imagem-movimento,
nem no segundo, A Imagem-tempo. E minha lógica
nessa tentativa de "repensar o cinema" é
refletir sobre o título de seu segundo livro,
Cinema 2: A Imagem-tempo.
Isso significaria que a palavra seria não apenas
movimento e tempo, mas também imagem, no fim
das contas, e também cinema?
Repensando-o, eu vejo, eu repito, a utilização
de quatro elementos nos filmes, dos quais três
não são a imagem, e que paradoxalmente,
cada um à sua maneira distinta, podem se inscrever
como imagem, sem sê-lo. O que significa que temos:
1) a imagem, 2) a palavra, 3) o som,
4) a música. Esses quatro elementos estão
compactados no conceito deleuziano de Tempo-Imagem,
e são os elementos que caracterizam o cinema
de hoje, em que cada um desses quatro elementos pode
se tornar a todo momento o mais forte, o elemento preponderante,
e ao limite o mais enriquecedor, o mais iluminador,
de acordo com o papel que o realizador lhe dará.
Como acabamos de ver, tudo se resume em Tempo-Imagem
seja no campo do audível ou no campo do visível.
De resto, de certa maneira, o audível tem seu
substrato no visível, ou ainda, como é
o caso na música, comporta uma vibração
sentimental particular, específica. O que parece
significar, embora paradoxalmente, repito, que o conjunto
do elemento sonoro, no limite, é também
da imagem.
E tudo isso me reconduz à questão da fixidez
da imagem para opô-la à colocação
da imagem em movimento. Ou seja, ao uso do plano
fixo, com a imagem fixa, como é o caso na
pintura clássica. Retorno então a Leonardo
e agora a seu quadro A Gioconda. Toda a força
desse quadro vem da total fixidez de todos seus elementos.
Seu Anunciação é ainda mais
forte. Mesmo as asas dos anjos, que portanto evocam
o vôo, estão ali fixadas na sua pausa,
assim como a Virgem e todo o espaço em torno
dela, onde domina igualmente uma total fixidez, o que
contraria a idéia de cinema-movimento.
Mas é precisamente, nós o veremos, dessa
estaticidade totalitária que advém toda
a força mágica do quadro. E onde quero
chegar com tudo isso? Ao fato de que o tempo e
o movimento se equivalem já que respectivamente
eles se aplicam à sua circunstância apropriada.
Essa atitude faz se evaporar diante de nós a
idéia de movimento, e mesmo a de tempo, pois
ela faz a imagem repousar sobre um substrato de equivalência
a uma percepção da eternidade.
Ao fim da introdução de A Imagem-movimento,
Gilles Deleuze nos diz: "Nós não
apresentamos nenhuma reprodução que venha
a ilustrar nosso texto porque é nosso texto ao
contrário que gostaria de ser apenas uma ilustração
de grandes filmes dos quais cada um de nós tem
mais ou menos a lembrança, a emoção
ou a percepção".
À guisa de conclusão eu diria então:
se devemos admitir com Aristóteles que "o
espírito não pensa nunca sem imagem",
fazendo imagem do pensamento, e se, como diz Molière,
"a palavra serve para explicar o pensamento,
e ela é ao mesmo tempo o retrato do pensamento
e das coisas", nós daí extrairemos
que o acento não deve ser colocado sobre o movimento,
mas sobre a imagem. Uma vez que pensamento e palavra
são igualmente imagem, segue-se que o cinema
enquanto imagem é a mistura do pensamento e da
palavra.
Portanto, a idéia que tenho hoje do cinema, ou
aquela que, digamos, utilizo na concepção
de meus filmes, e que vejo utilizada nos filmes de outros
realizadores, é a seguinte: os filmes se compõem
de quatro elementos, a imagem, a palavra, o som e a
música. Quatro elementos redutíveis ao
conceito de Tempo-Movimento, e que considero
elementos característicos do cinema de hoje.
A palavra, em certas situações, pode ser
o elemento mais forte e mais enriquecedor, assim como,
sempre em certas circunstâncias, o meio mais rápido
e mais eficaz de chegar às idéias ou aos
sentimentos, ou de aprofundar os dois.
Eu não gostaria de terminar sem deixar uma amostra
um pouco figurativa dessa visão que tenho atualmente
desse monumento que para mim representa o cinema. Não
falo de meus filmes, refiro-me aos filmes em geral,
ao cinema, à soma toda. Vejo esse monumento composto
de quatro colunas – cada uma representando um dos quatro
elementos, autônomos e independentes – que sustentam
um pórtico, à maneira de um templo grego.
Como já mencionei, a primeira coluna seria aquela
da imagem, a segunda a da palavra, a terceira a do som
e a quarta a da música. E o pórtico frontal,
que repousa sobre essas quatro colunas, representa a
idéia que os engendra, que lhes dá sentido
e unidade.
Manoel de Oliveira
(Originalmente publicado em Trafic nº 50. Traduzido
do francês por Luiz Carlos Oliveira Jr.)
*
Texto adaptado por Oliveira de um discurso que ele fez
ao ser recebido na Universidade Nova de Lisboa como
doutor "honoris causa".
1.
Aurélio Paz dos Reis (1862-1931), horticultor
simples e cidadão do Porto, foi o verdadeiro
pioneiro do cinema português. Fotógrafo
amador, sensível á inovação
técnica, Paz dos Reis adquiriu em Paris um cinematógrafo
Lumière, e o utilizou para filmar cenas típicas
da vida no Porto àquela época. Em 1896
ele realiza uma "Saída das usinas Confiança",
filme diretamente inspirado no modelo Lumière.
Manoel de Oliveira expressamente lhe rende homenagem
em Porto de Minha Infância (2001), representando
ele mesmo o papel de Paz dos Reis. (Nota de João
Mário Grilo)
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