PÍLULAS
(em ordem alfabética)

Agnes e seus Irmãos, de Oskar Roehler
Oskar und seine brüder, Alemanha, 2004
Mais uma prova cabal de que o cinema alemão morreu junto com Fassbinder. Oskar Roehler dramatiza (ou melhor, “dramalhiza”) as dificuldades enfrentadas por três irmãos em seus cotidianos: o bibliotecário viciado em sexo que não consegue se relacionar com as mulheres e que gosta de ser humilhado; o político influente do Partido Verde que, com hábitos higiênicos pouco ortodoxos, vive às turras com a esposa e o com o filho mais velho; e o transexual que, abandonado pelos homens que amou, está à beira da morte devido a complicações na cirurgia de mudança de sexo. Na origem de todos os males da família, claro, encontra-se o pai autoritário que, em teoria, estuprou Agnes quando criança. Exploração do sofrimento alheio, animalização dos personagens: Agnes e Seus Irmãos representa o pior que o cinema de psicologia barata pode oferecer. (Paulo Ricardo de Almeida)

Alma Mater, de Alvaro Buela
Alma mater, Uruguai, 2004
Longa uruguaio que mistura temas como religião e romance (no caso do segundo, a ausência de um), abordando-os, via um olhar de mistério, com personagens que vêm e vão, construindo uma narrativa confusa - mas principalmente inepta. Acompanhando uma mulher bastante solitária e ultra religiosa, que começa a receber avisos que podem estar vindo de entidades supremas, o que torna o texto, que já tende ao equivocado, em algo praticamente risível é a completa ineptude do cineasta em encenar a mais simples das cenas, além de optar por um fotografia carregada que dá um tom ainda mais sério para um conjunto tão tosco. A título de interesse, Werner Schünneman é coadjuvante como um pastor, praticamente possuindo apenas monólogos, onde alterna entre o espanhol e o português abruptamente, muitas vezes soando como se literalmente avacalhasse com o filme, embora isso nunca chegue a ficar explícito. Nada se salva aqui. (Guilherme Martins)

O Bigode,
de Emmanuel Carrère
La moustache, França, 2005
Emmanuel Carrère, escritor por profissão, estréia no longa de ficção adaptando um romance seu, que impõe no mínimo um desafio e tanto: seu drama central está posto com menos de dez minutos, e mal parece suficiente para dar conta da narrativa de um curta, o que dirá de um filme de 90 minutos. O simples fato de, estreante, ele conseguir dar conta mais que satisfatoriamente de manter o interesse do espectador por este enredo, já seria elogiável. Mas, ele consegue mais do que isso, criando um autêntico filme de horror do cotidiano, com um uso bastante inteligente da trilha sonora. Carrère, na sua fábula sobre perda de identidade, insere ainda um outro tema bastante subrepticiamente: a questão da “verdade” da imagem no cinema, onde a narrativa constantemente põe em questão aquilo que vimos anteriormente (e, ao vermos, aceitamos como “fato”). Reproduzindo para o espectador o estado de confusão de seu protagonista, Carrère foge ainda de uma armadilha perigosa: a aparente impossibilidade de “fechamento” que seu enredo cria. Consegue dar conta do seu final da melhor maneira possível, e cria expectativa mais do que positiva para suas próximas incursões no cinema. (Eduardo Valente)

Bloom, de Sean Walsh
Bloom, Inglaterra, 2003
Adaptação do “Ulysses” de James Joyce pelas mãos do estreante britânico Sean Walsh, Bloom talvez seja a maior coleção de equivocos em um longa-metragem em muito tempo. Tudo isso, claro, com uma roupagem supostamente ambiciosa onde se tentaria encontrar um limite entre o literário e o cinematográfico. Boa parte do filme são monólogos em off, onde alguns personagens, após rápida introdução do filme, vagam com o olhar perdido e solitário, e neste tempo formulam pensamentos sobre assuntos variados de seu cotidiano. Com uma fotografia grosseira e amarelada, que toma caminhos ainda mais equivocados numa seqüência de sonho/alucinação, com a encenação completamente perdida entre estilos de registro, sem se adaptar bem ao conceito de todo o desenrolar da cena estar no som off, gerando diversos momentos que beiram o patético, inclusive tornando momentos corriqueiros em motivos de piadas pouquíssimo inspiradas. A narrativa se perde na tentativa de mostrar apenas pequenos trechos da obra de Joyce, tornando tudo ainda mais perdido e desinteressante. (Guilherme Martins)

Como Arnold Conquistou o Oeste,
de Alex Cooke
How Arnold won the west, Inglaterra/França, 2004
Para quem leia a Carta Capital, ver Arnold Conquistou o Oeste deixa um sentimento semelhante na boca: nem o escracho à beira da canalhice de Michael Moore, nem uma discussão verdadeiramente séria dos problemas em que toca. Este documentário, como a revista, faz questão de deixar claro de saída sua posição sobre o que retrata (o que não é mau), assume uma primeira pessoa bastante premente (mas não egomaníaca, como Moore), mas constantemente perde o foco, deriva em assuntos menos importantes e em tiradas mais fáceis, e não raro assume as mesmas ferramentas discursivas que critica no “adversário” (o uso do termo não é absurdo, dada a maneira de retratar os lados da questão). Perde a chance de um investimento maior num tema absolutamente fascinante (a política como espetáculo), e acaba refém de um certo casuísmo. Mas, inegavelmente o trabalho informa, no que tem seu grande trunfo, e conclama à reflexão mesmo no desacordo com ele (talvez a melhor de suas características). (Eduardo Valente)

Um Dia Perfeito,
de Joana Hadjithomas e Khalil Joreige
A perfect day, França/Líbano, 2005
O dia perfeito do título é o dia em que Malek e sua mãe vão ao escritório do advogado declarar o pai e marido desaparecido há 15 anos como morto. Embalado pela falta que sente e por uma espécie de melancolia urbana advinda da alienação e solidão disseminadas, Malek perambula com sua narcolepsia pela cidade preenchida de publicidades e videoclipes, na qual os celulares são o principal meio de contato, com toda a angústia que podem trazer pela ilusão da presença constante, pela criação de uma expectativa e intensificação de uma espera. A inevitabilidade da tragédia advinda dos conflitos que permeiam a região (foi a Guerra do Líbano que levou o pai de Malek) pauta a placidez com que o movimento nas ruas é observado. A quase impossibilidade de conviver com uma realidade de ausência é sublimada pelos espaços vazios e pelas atividades cotidianas dos vizinhos, que informam que as coisas em volta prosseguem apesar de tudo. A inexpressividade significativa dos personagens colabora com a distensão narrativa que procura transformar o espaço e movimentos urbanos em cenário de reflexão sentimental do “vazio”. Assim sendo, a imagem do filme é diversas vezes incorporada por planos subjetivos, como no súbito adormecimento de Malek, que escurece a imagem e abaixa o som, e na visão desfocada de sua namorada, que transforma as luzes urbanas em bolas coloridas. Todo este adormecimento estratégico, no entanto, não apenas esvazia o filme de qualquer capacidade de provocar maiores empatias, como revela uma construção um tanto comum e desprovida de atrativos originais, que, mesmo bem-realizada, é incapaz de atrair muita atenção. (Tatiana Monassa)

Edmond,
de Stuart Gordon
Edmond, EUA, 2005
Veterano do cinema fantástico americano, Stuart Gordon estabeleceu-se no meio da década de 80 dentro desse universo através de seu talento em ilustrar com rigor textos do gênero (de H. P. Lovecraft principalmente, mas também posteriormente de Edgar Allan Poe), constantemente acertando a mão nestas investidas (como Re-Animator, um cult máximo nquela década, e Do Além, de longe seu filme mais forte). Em Edmond, Gordon se arrisca a ilustrar um texto bastante diferente (e controverso), a peça de mesmo nome de David Mamet (a adaptação para o roteiro é do próprio Mamet), que tem não só assuntos e situações complicadas e mesmo perigosas, e onde um personagem entediado com sua vida pacata conservadora se perde em uma noite aonde seu desejo de fugir da rotina só é menor que seus conceitos reacionários do mundo. O resultado é irregular, filmado corretamente, mas para um projeto que aponta com ambições tão sensíveis, Edmond não possui qualquer tipo de alma, e é ilustrado de forma fria. Ainda que tenha lá seus bons momentos, contando com o esforço de William H. Macy no papel-título, a coisa toda não funciona e termina tendo um tom ambicioso, que em nada casa com o envolvimento que as imagens parecem ter com o que mostram. (Guilherme Martins)

Habana Blues,
de Benito Zambrano
Habana Blues, Espanha/Cuba/França, 2005
Os amigos e músicos Ruy e Tito desejam sair de Cuba. Quando descobrem que produtores espanhóis estão á procura de talentos desconhecidos para gravar CD com vendagem internacional, candidatam-se – no entanto, o contrato extorsivo a que são submetidos acaba por desuni-los. Neste meio tempo, enquanto a esposa de Ruy está prestes a fugir para os EUA com os filhos, a avó de Tito teme ficar sozinha na ilha. É impossível não enxergar Habana Blues como a versão pop e mainstream de Buena Vista Social Club (que, por sua vez, já era pop e mainstream): trata-se de ressaltar a alegria da música cubana que nasce das agruras pessoais, com um toque de política, do dia-a-dia. Embora Benito Zambrano erre em todos os videoclipes da miséria (que consistem em pessoas lindas e felizes em ambientes pouco – mas bem pouco – sujos e desolados) que conduzem a narrativa, suas incursões pelo melodrama são capazes de emocionar aos que estejam propensos à choradeira. (Paulo Ricardo de Almeida)

Holy Lola,
de Bertrand Tavernier
Holy Lola, França, 2005
Mesmo que vez por outra consiga fazer filmes medianamente interessantes, Bertrand Tavernier é um veterano cineasta de uma escola acadêmica do cinema francês a quem o tempo cada vez mais só faz acentuar os vícios inerentes às suas limitações formais. Nesse Holy Lola Tavernier vai ao Camboja para filmar a história de um casal jovem francês de classe média que parte em busca de um bebê para adotar. Os dois hospedam-se num hotel onde se encontram outros casais europeus que partilham uma longa espera pela tão desejada criança. Tema idêntico ao do recente A Casa dos Bebês, do americano John Sayles, passado em país indefinido na América Latina. Mas diversamente de Sayles, que mesmo não sendo de todo bem sucedido em sua proposta, tenta pincelar um painel das razões que levam à adoção e também do universo de onde viriam as crianças a serem adotadas, Tavernier limita-se a impor uma visão paternalista e superior, típica de colonizador recalcado. Não resiste à tentação de fazer com seu filme uma exploração desnecessária dos males do terceiro-mundo, como miséria, corrupção e burocracia. Só que tão ou mais burocrata que os funcionários cambojanos retratados no filme é o próprio diretor, que nada faz além de ilustrar, sem impor qualquer resquício de imaginação, um roteiro demasiado esquemático que se limita a apresentar uma infinita sucessão dos obstáculos que o casal tem que atravessar, primeiro para encontrar a criança, depois para legalizar a adoção e finalmente para retornar a seu país. (Gilberto Silva Jr.)

O Inferninho,
de Chus Gutierrez
El Calentito, Espanha, 2005
Evocação da chamada "movida madrilenha", momento no início da década de 80 quando, respirando ares de liberdade após décadas de ditadura franquista, os jovens espanhóis se atiram em intensa vida noturna. Sara, uma garota de família tradicional e repressora, após ser rechaçada pelo namorado em um bar - o Calentito do título original - toma um porre e se junta a uma banda pós-punk composta por outras garotas, conhecendo assim um novo mundo e enfrentando o momento da tão desejada perda da virgindade. O filme centra seu foco temático em uma busca pela liberdade, não só a de Sara frente a sua família, mas também da liberdade de expressão pela banda, prestes a ser contratada por uma gravadora, e também pela liberalização da sociedade espanhola, utilizando-se do pano de fundo verídico de uma tentativa de golpe militar. Visto assim pode parecer um pouco sério demais. Só que a cineasta opta por uma abordagem bastante próxima das comédias adolescentes de Hollywood, preservando uma série de clichês do gênero e aproveitando um clima nostálgico de evocação da época. Não falta uma homenagem a Pedro Almodóvar, figura de proa no cenário da movida, com a inclusão de imagens do seu filme Labirinto de Paixões. A direção de Chus Gutiérrez, no entanto, aproxima-se mais do clima de indigência apregoado pela letra de uma das canções da banda: “Dançamos tão mal, cantamos pior que mal!”. Apesar, ou mesmo por causa disso, o filme guarda um certo encanto naif que pode ajudar a pegar pelo pé espectadores dispostos a embarcar na sua onda, divertindo-se com seu clima de Sessão da Tarde. E fazer de O Inferninho um candidato em potencial a “cult-boboca” do festival. (Gilberto Silva Jr.)

Meu Encontro com Drew Barrymore,
de Jon Gunn, Brian Hezlinger e Brett Winn
My date with Drew, EUA, 2004
Seguindo um formato bastante semelhante a um programa televisivo, Brian Hezlinger faz uma espécie de cine-diário que registra sua busca fanática por um encontro com sua musa de infância, Drew Barrymore. O périplo ecoa a realização de um “sonho americano”, a luta de um homem comum (aqui um típico “bobão” americano) pela conquista do que acredita. Carismático e bem-intencionado, Brian cumpre bem o papel de atrair simpatia para sua causa – seja a das pessoas que encontra, seja a do espectador. Meu encontro com Drew Barrymore é no todo um filme bem-humorado, com um feel-good inegável, e sua narrativa pontuada por momentos de expectativa, suspense e situações cômicas é conduzida com habilidade, demonstrando um domínio de roteiro. Há uma certa reflexividade (até certo ponto natural, em tratando-se de um diário) interessante a respeito das condições que geraram o filme e dos próprios meios que o tornaram possível, que acaba também ecoando questões sobre as possibilidades expressivas alimentadas pelo boom das câmeras digitais. O filme desfila constantes comentários sobre sua realização como um meio para que seu próprio objeto (a busca pelo encontro) possa existir, como quando os diretores perdem a câmera que estavam utilizando e o registro passa a se dar em fotografias, até que outra câmera seja conseguida. Tal expediente não apenas reforça esta relação filme-objeto, como confere extrema veracidade ao que assistimos (independentemente de quão forjada a representação possa ser), propagando um grande sentimento de “aqui-agora”. (Tatiana Monassa)

Uma Noite, de Niki Karimi
Yek shab, Irã, 2005
Ao voltar do trabalho, Negar é recebida com o pedido da mãe para que passe a noite na casa de alguém, pois marcou um encontro amoroso. Aparentemente acostumada com o fato, ela, contrariada, resolve vagar pelas ruas até o amanhecer. Sua perambulação, assim como diversas outras de filmes oriundos da região, apresenta-se como uma questão primordialmente de tempo e não de espaço. Observa-se o tempo das ruas e dos acontecimentos e como ele impregna as vidas e afeta os personagens. Em Uma Noite, a grande cidade (Teerã) é um lugar hostil, de solidão e violência, de problemáticas sociais, econômicas e políticas – aspectos que a personagem nos vai revelando no decurso de sua lenta peregrinação sem destino, pois o tempo de uma madrugada de movimentos escassos e suspeitos é alongado. A emulação do dispositivo kiarostamiano do carro como mote para o estabelecimento de uma situação de “companhia”, na qual longas e amplas conversas se dão, serve de meio didático para a reflexão sobre questões de uma contemporaneidade que afeta negativamente a vida urbana. As mudanças experimentadas no dia-a-dia são comentadas em meio a questionamentos sobre destino e felicidade que ecoam um quê das discussões morais kieslowskianas. A companhia anônima das caronas que Negar pega (enfrentando um perigo latente que cerca essa noite) configura uma forma enviesada de relacionamento, contribuindo para a sensação de isolamento solitário provocado pelas relações humanas tornadas frias. Nestas amizades momentâneas e fugazes, em que podem-se ao menos trocar palavras, todos os comentários políticos que a diretora deseja tecer sobre a realidade encontram espaço de manifestação. Este entrecruzamento entre estratégias fílmicas desgastadas, claro “empréstimo” de dispositivo e atmosfera do mais eminente diretor iraniano e intenção de comentários sobre a realidade local colocados de forma altamente explícita, torna Uma Noite um filme extremamente tedioso e óbvio. (Tatiana Monassa)

A Noiva do Silêncio,
de Doan Minh Phuong e Doan Thanh Nghia
Hat mua roi bao lau, Vietnã/Alemanha/Austrália, 2005
O único cineasta do Vietnã que conseguiu exibição no circuito brasileiro foi Tran Anh Hung, com O Cheiro do Papaia Verde, O Ciclista e As Luzes de Um Verão. O Festival do Rio permite que se conheçam Doan Minh Phuong e Doan Thanh Nghia, que, da mesma forma que o nome mais famoso do país, exercitam o que se pode chamar de “cinema genérico de arte”. Em A Noiva do Silêncio estão presentes os mesmos planos longos, lentos e contemplativos, enquadrados com absoluto esmero plástico, mas que não significam nada para a narrativa ou para a expressividade da obra, valendo tão somente pelo valor fetichista que tentam conquistar do espectador. A trama – que pode ser resumida como três solteirões, uma mãe e um bebê – estabelece a busca do herói pela progenitora, que não vê desde a infância, através dos pontos de vista conflituosos dos “tios” que o criaram. Cada um apresenta sua própria versão da história, a fim de ocultar a verdade do filho órfão, que enfim lhe é revelada por um monge budista: como sua mãe serviu de objeto sexual aos três irmãos que a salvaram da morte na aldeia, como ela causou a desestruturação do relacionamento fraterno. Salvo a seqüência em que se conjugam imagens das águas do rio com a música orquestral (pois todas as canções são terríveis), que pelo menos introduzem certo sentido trágico para o fecho da narrativa, A Noiva do Silencio não desperta mais do que desinteresse – e sono, muito sono. (Paulo Ricardo de Almeida)

A Poesia da Guerra, de Rick King
Voices in wartime, EUA, 2005
Se o tema desperta curiosidade (sobrepor a linguagem poética ao tema da guerra) logo de saída a musiquinha melosa e os intertítulos que identificam os entrevistados ("The Doctor", "The Soldier", "The Daughter", etc) jogam por terra qualquer esperança de um vôo mais arriscado. Trata-se de fato de um típico documentário televisivo norte-americano, de cunho eminentemente democrata-anti Bush, que nos piores momentos é pouco melhor que um infomercial brega sobre um grupo de poetas americanos e o seu movimento contra a guerra no Iraque (infomercial não é inadequado, porque o filme termina indicando o endereço de um site). É verdade que há até momentos mais interessantes, não por acaso os mais informativos e menos, aham, "poéticos", onde se fala sobre a diferença entre os tipos de guerra historicamente e os poetas que as cantaram e/ou combateram. Só que fica tudo no campo da superficialidade - quando se se desejasse mesmo ir fundo, só o personagem do professor militar de West Point, que prepara cadetes para irem para a guerra lendo poemas anti-bélicos, já valeria um filme por si só. (Eduardo Valente)

A Sombra do Andarilho, de Ciro Guerra
La sombra del caminante, Colômbia, 2004
Contando a história da improvável amizade de deficiente físico com misterioso andarilho que, com cadeira às costas, transporta passageiros pelas ruas de Bogotá, A Sombra do Andarilho se torna ainda mais inverossímil quando se descobre da relação que ambos, sem saber, tiveram no passado: antigo combatente do exército, o caminhante assassinou os pais de seu novo amigo, ao varrer do mapa vilarejo onde moravam na floresta colombiana. Através de personagens simbólicos – o deficiente representa as vítimas e as feridas abertas da violência, enquanto o andarilho aponta para a consciência em crise da nação, madrasta com seus habitantes –, Ciro Guerra pretende refletir sobre a guerra generalizada entre governo, traficantes e guerrilheiros que destrói o tecido social, moral e político da Colômbia. No entanto, a errônea tentativa de inserir a alegoria sobre a dor e a morte na crueza de uma realidade pobre em preto e branco (visíveis na incapacidade do diretor em escolher onde a câmera deve ficar e quando ela precisa se mover, além da apelação para música melodramática que apenas guia o foco do espectador quanto aos acontecimentos), bem como o discurso final do assassino (no qual, ao confessar e se arrepender dos crimes que praticou, acaba por exorcizar os pecados que o afligem), não somente tornam o filme ridículo, como também o fazem conivente com a guerra que supostamente critica, na medida em que dá a mesma importância aos sofrimentos da vítima e do agressor. (Paulo Ricardo de Almeida)

Sou Feia mas Tô na Moda, de Denise Garcia
Brasil, 2005
Denise Garcia revela duas grandes qualidades neste trabalho: primeiro de tudo, um olhar sobre o universo escolhido (o funk) que não tenta enquadrá-lo vindo nem de cima (“piedoso”), nem debaixo (“endeusador”). A segunda qualidade, que é claramente uma consequência desta primeira, é a de conseguir extrair daqueles que entrevista uma intimidade e uma confiança que levam aos melhores momentos do filme. Atirando para vários lados ao mesmo tempo (contar uma breve história do funk no Rio de Janeiro, mapear a geografia da criação deste hoje, traçar os paralelos do movimento com a questão social, cultural e de gêneros), o filme consegue na sua curta duração dar conta de quase todos eles satisfatoriamente (o que não é desafio pequeno). E em dois momentos, mostra que é muito mais do que apenas uma reportagem bem realizada, ao esticar o tempo do plano e buscar sentidos políticos mesmo neste movimento (quando Cidinho e Doca cantam à capela o “Rap da Felicidade”, e quando o taxista de Gana escuta o funk no seu rádio do carro, em Londres). São belos momentos que providenciam a cereja no topo deste documentário que é ainda um libelo pela produção independente, fruto do desejo de falar de algo mesmo que não haja intere$$e direto de patrocinadores no tema. (Eduardo Valente)

Todas as Crianças Invisíveis,
de Mehdi Charef, Emir Kusturica, Spike Lee, Kátia Lund, Ridley Scott & Jordan Scott, Stefanio Veneruso e John Woo
All the invisible children, Itália, 2005
Longa coletivo, realizado por cineastas de diversas nacionalidades, que busca olhares variados que apontem caminhos para a infância. Os temas variam desde crianças envolvidas com a violência, crime, pobreza, trabalho infantil, AIDS, temas recorrentes sobre crianças envolvidas com dificuldades financeiras. Todos eles, tocados com um tom moralista pesado, com muitos dos cineastas envolvidos aparentando estarem no piloto automático, completamente desleixados. O mais interessante episódio é o de Spike Lee, que ao menos traça uma linha que não seja banalmente moralista, mas que para além desse avanço em relação aos outros é tão ou mais desleixado e equivocado quanto os demais. Kátia Lund tem um dos melhores textos do projeto, mas erra a mão quando o assunto é câmera e corte. Woo se mostra meio perdido com o material, faz planos que são corpos completamente estranhos dentro do conjunto do episódio, e não consegue converter os exageros do texto em imagens fortes, pelo contrário. Os outros quatro são tão nulos quanto ruins. Num conjunto geral, tudo um desastre, que varia entre o muito mal filmado e o simplesmente ineficiente, com diferentes estilos de registros tendo em comum pelo menos uma coisa: sua fraqueza. (Guilherme Martins)

O Trapezista,
de Revel Fox
The flyer, África do Sul, 2005
Menino de rua negro, na África do Sul, é adotado por ex-trapezista que, impossibilitado de “voar” após fracasso no salto mortal quádruplo, ensina-lhe os segredos da profissão. Além do pai adotivo, Kieren sofre pressões do irmão mais velho, que tenta levá-lo à criminalidade, e da namorada ambiciosa, que faz tudo pela fama. Conflitos raciais, pobreza, submundo e crime organizado são diluídos no enredo do underdog que dá a volta por cima, redimindo-se dos sofrimentos pelos quais passou. Sentimental, acadêmico e piegas, O Trapezista se mostra apenas mais uma variação de Rocky, Um Lutador, herdando de seu predecessor – e de filmes homônimos, como Karate Kid e Billy Elliot – inclusive a relação dura-porém-carinhosa entre mestre e aprendiz. Revel Fox, pelo menos, podia ter poupado o espectador das câmeras lentas nos momentos de suposta maior tensão narrativa. (Paulo Ricardo de Almeida)

O Vento, de Bennet Rathnayake
Sulanga, Sri Lanka, 2004
Mistura de drama familiar novelesco com crônica sentimental que ecoa comentários econômico-sociais, O Vento permite-nos vislumbrar temas recorrentes nas cinematografias da região, especialmente a indiana (mais profícua e difundida). O filme se esforça para matizar pontos de vista diversificados sobre um mesmo acontecimento (a separação de um casal por uma suposta traição do marido) e analisar nuances dos comportamentos dos personagens (a reflexão que abre e fecha a narrativa é a da juíza no tribunal ponderando sobre a impossibilidade de se assertar uma Verdade), numa situação que, numa narrativa mais clássica, seria desenvolvida a partir de estereótipos e a priori. Desta forma, ele esmiúça o íntimo da esposa, do marido e da suposta "amante vagabunda", valorizando os sentimentos de cada um deles. Construção com objetivos bastante ingênuos e anacrônicos aos nossos olhos, esta narrativa parece ser, de alguma forma, ainda "necessária" por aquelas bandas. Pois a grande posição do filme, no final das contas, é a defesa da mulher (sem direito à igualdade de sentimentos e de escolhas, à liberdade e à autonomia), o que ele faz lançando mão de uma estrutura conciliatória e apaziguadora e de um drama equilibrado e bem-comportado, bastante palatável para as platéias acostumadas às narrativas consideradas "machistas" por correntes feministas do pensamento cinematográfico pós-68, basicamente o cinema americano clássico. (Tatiana Monassa)

Willenbrock Comprou uma Arma, de Andreas Dresen
Willenbrock, Alemanha, 2004
Ex-Alemanha Oriental. Berndt, depois de abandonar a aviação, estabelece-se como proprietário de revendedora de automóveis. Leva vida medíocre, que consiste em trair a mulher com qualquer mulher que apareça, enquanto se mantém estritamente ligado aos negócios e bem longe de manifestações artísticas, tais quais pintura e literatura. Seu cotidiano insosso, contudo, vira de ponta cabeça quando tem a casa de campo assaltada, uma vez que o casamento acaba por ruir com a paranóia da esposa em relação à segurança. Em Willenbrock Comprou Uma Arma, Andreas Dresen pretende falar da morte para exaltar a vida, discorrer sobre as misérias humanas a fim de revelar o que há de maravilhoso na existência, tratar dos rompimentos afetivos que apontam para a reconciliação. No entanto, com conflitos tão arquitetados e previsíveis e com enquadramentos absolutamente calculados, que abusam da movimentação da câmera com grua, Willenbrock Comprou Uma Arma apenas enfileira discursos pomposos e mortos enquanto maltrata sadicamente os personagens - que, por sua vez, são cada um pior que o outro. Faltou ao cineasta a percepção de que, para criar o jogo intricado de espelhos que o filme propõe, seria necessário partir de blocos brutos e não-lapidados do real (como Kiarostami, por exemplo, em O Vento Nos Levará ou O Gosto da Cereja) ao invés de se basear nas idéias cristãs de culpa, de pecado e de punição, que não somente julgam, como também pautam os atos de Berndt, que desde o início já se considera – conforme explicita o próprio herói na voz off que abre o filme – o pior dos vermes desprezíveis sobre a terra. (Paulo Ricardo de Almeida)