A
geração de Gu Changwei não é
a mesma de Jia Zhang-ke e Yu Lik-wai. Ele veio antes,
junto com o que depois se chamou de "quinta geração
do cinema chinês", surgida justamente na
época em que a China saía da Revolução
Cultural. Era o final dos anos setenta e nomes como
Zhang Yimou e Chen Kaige compunham a primeira turma
a freqüentar uma escola de cinema em Pequim, de
onde Gu também sairia para ser, enquanto diretor
de fotografia de filmes como Sorgo Vermelho e
Adeus, Minha Concubina, um dos grandes responsáveis
pela coloração tão característica
dos trabalhos premiados dessa geração.
Pavão, primeiro filme que ele dirige,
tem um veio melodramático e artisticamente requintado
– um tanto acadêmico, mesmo que dentro dos padrões
específicos de um certo cinema asiático
– que remete diretamente a seus colegas de turma. Trata-se
de uma aposta tanto na secura de acompanhar cenas fortes
resguardando sua duração extenuante, com
a câmera preferencialmente parada, quanto no embelezamento
de momentos prosaicos que a música sentimental
e o tom naïf dos personagens ajudam a adocicar.
Gu sem dúvida conhece os procedimentos do cinema
a que se filia: uso recorrente do plano-seqüência
(rendendo belas cenas como aquela em que a família
assiste ao carvão, uma das fontes de sustento,
dissolver-se e ser levado pela chuva torrencial), resolução
dramática através do plano de conjunto
e da profundidade de campo, trabalho pictórico
das cores, gestos sentimentalóides preenchendo
as fissuras de um "mundo cão". Seu
empenho fica quase que inteiramente restrito à
composição dos quadros, com poucos momentos
em que a encenação realmente revela uma
força para além do já visto e comentado
– dez ou quinze anos atrás, quando os filmes
que ele fotografava encantavam as platéias dos
festivais europeus.
Ao contar a história de três irmãos
que vivem numa pequena cidade chinesa, revezando-se
nos pontos de vista de cada um deles, Pavão
pouco a pouco perfaz uma visão de mundo ao
mesmo tempo desiludida e encantada. As três partes
do filme começam com uma narração
em off de um dos irmãos, que introduzem
o ponto de vista de que serão condutores com
frases que dizem praticamente a mesma coisa: aqueles
tempos que compõem a narrativa foram os mais
difíceis da vida deles, mas também foram
os que mais lhes renderam memórias e aprendizados.
O que tira Pavão do limbo em alguns momentos
é o próprio "pitoresco" das
situações que o filme constrói:
o irmão mais velho, obeso e abobalhado, levando
uma margarida para entregar à menina de quem
está gostando; ele depois se estapeando com a
jovem que sua mãe havia arranjado para forjar
um romance (e com quem acaba se casando); a irmã
e o irmão mais novo depois lhe presenteando com
um filhote de cisne. Como contraponto à parte
terna do filme, existe um plano como aquele em que um
cisne morre envenenado diante de uma câmera dura
e impassível, que assiste à sua agonia
sem se mexer nem variar a tomada de vista. A cena ocorre
durante o almoço, quando a mãe usa o mesmo
veneno com que os irmãos mais novos tinham tentado
matar o mais velho para torturá-los com aquela
imagem angustiante.
Pavão busca matizes para seus personagens
e mesmo para a forma do relato (adaptação
literária que envolve passagens de franca abstração
e fantasia). Quem é ingênuo no início
não necessariamente continuará uma eterna
vítima do mundo – o irmão mais velho não
caindo na lábia do rapaz que tripudiava dele
e que depois quer pegar seu dinheiro "emprestado"
é um bom exemplo da fuga, nem sempre bem-sucedida,
de certos lugares-comuns. Entre o começo e o
fim, o pássaro que dá título ao
filme sai da versão figurada por um pára-quedas
amarrado a uma bicicleta em movimento e chega à
penúltima imagem vista no filme, que consiste
num pavão de verdade exibindo as penas para a
câmera de Gu Changwei – coisa que leva tempo,
e que a ave não fez enquanto os personagens do
filme estavam em quadro: a beleza do mundo permanece
sempre escondida para eles, que precisam aprender a
viver na lama, na labuta, no inverno. Filmar gente sofrida
mas que não desiste de sonhar: fórmula
batida e sem renovação nas mãos
de Gu Changwei, cujo talento está diretamente
associado ao saber-fazer um cinema que os festivais
internacionais conhecem e geralmente aprovam.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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