PAVÃO
Gu Changwei, Kong Que, China/Taiwan, 2005

A geração de Gu Changwei não é a mesma de Jia Zhang-ke e Yu Lik-wai. Ele veio antes, junto com o que depois se chamou de "quinta geração do cinema chinês", surgida justamente na época em que a China saía da Revolução Cultural. Era o final dos anos setenta e nomes como Zhang Yimou e Chen Kaige compunham a primeira turma a freqüentar uma escola de cinema em Pequim, de onde Gu também sairia para ser, enquanto diretor de fotografia de filmes como Sorgo Vermelho e Adeus, Minha Concubina, um dos grandes responsáveis pela coloração tão característica dos trabalhos premiados dessa geração. Pavão, primeiro filme que ele dirige, tem um veio melodramático e artisticamente requintado – um tanto acadêmico, mesmo que dentro dos padrões específicos de um certo cinema asiático – que remete diretamente a seus colegas de turma. Trata-se de uma aposta tanto na secura de acompanhar cenas fortes resguardando sua duração extenuante, com a câmera preferencialmente parada, quanto no embelezamento de momentos prosaicos que a música sentimental e o tom naïf dos personagens ajudam a adocicar.

Gu sem dúvida conhece os procedimentos do cinema a que se filia: uso recorrente do plano-seqüência (rendendo belas cenas como aquela em que a família assiste ao carvão, uma das fontes de sustento, dissolver-se e ser levado pela chuva torrencial), resolução dramática através do plano de conjunto e da profundidade de campo, trabalho pictórico das cores, gestos sentimentalóides preenchendo as fissuras de um "mundo cão". Seu empenho fica quase que inteiramente restrito à composição dos quadros, com poucos momentos em que a encenação realmente revela uma força para além do já visto e comentado – dez ou quinze anos atrás, quando os filmes que ele fotografava encantavam as platéias dos festivais europeus.

Ao contar a história de três irmãos que vivem numa pequena cidade chinesa, revezando-se nos pontos de vista de cada um deles, Pavão pouco a pouco perfaz uma visão de mundo ao mesmo tempo desiludida e encantada. As três partes do filme começam com uma narração em off de um dos irmãos, que introduzem o ponto de vista de que serão condutores com frases que dizem praticamente a mesma coisa: aqueles tempos que compõem a narrativa foram os mais difíceis da vida deles, mas também foram os que mais lhes renderam memórias e aprendizados. O que tira Pavão do limbo em alguns momentos é o próprio "pitoresco" das situações que o filme constrói: o irmão mais velho, obeso e abobalhado, levando uma margarida para entregar à menina de quem está gostando; ele depois se estapeando com a jovem que sua mãe havia arranjado para forjar um romance (e com quem acaba se casando); a irmã e o irmão mais novo depois lhe presenteando com um filhote de cisne. Como contraponto à parte terna do filme, existe um plano como aquele em que um cisne morre envenenado diante de uma câmera dura e impassível, que assiste à sua agonia sem se mexer nem variar a tomada de vista. A cena ocorre durante o almoço, quando a mãe usa o mesmo veneno com que os irmãos mais novos tinham tentado matar o mais velho para torturá-los com aquela imagem angustiante.

Pavão busca matizes para seus personagens e mesmo para a forma do relato (adaptação literária que envolve passagens de franca abstração e fantasia). Quem é ingênuo no início não necessariamente continuará uma eterna vítima do mundo – o irmão mais velho não caindo na lábia do rapaz que tripudiava dele e que depois quer pegar seu dinheiro "emprestado" é um bom exemplo da fuga, nem sempre bem-sucedida, de certos lugares-comuns. Entre o começo e o fim, o pássaro que dá título ao filme sai da versão figurada por um pára-quedas amarrado a uma bicicleta em movimento e chega à penúltima imagem vista no filme, que consiste num pavão de verdade exibindo as penas para a câmera de Gu Changwei – coisa que leva tempo, e que a ave não fez enquanto os personagens do filme estavam em quadro: a beleza do mundo permanece sempre escondida para eles, que precisam aprender a viver na lama, na labuta, no inverno. Filmar gente sofrida mas que não desiste de sonhar: fórmula batida e sem renovação nas mãos de Gu Changwei, cujo talento está diretamente associado ao saber-fazer um cinema que os festivais internacionais conhecem e geralmente aprovam.


Luiz Carlos Oliveira Jr.