PALINDROMES
Todd Solondz, Palindromes, EUA, 2005

Palindromes leva o cinema de Todd Solondz a uma estética de achatamento cuja radicalização estava mais ou menos prefigurada em Histórias Proibidas. Por um lado retornam, ainda mais disformes, os elementos que começavam a ser problematizados no filme anterior: a inocência e seu abuso pela monstruosidade (a proto-imagem de Palindromes é sem dúvida a boneca catada no lixo, com uma garrafa cravada em seu traseiro e o escrito "Fuck me" no peito), a náusea ressentida de losers de todo tipo, a daguerreotipia dos personagens, a grosseria da encenação. Mas aqui com um detalhe em nada irrelevante: a abolição do espaço cênico. O que Solondz filma desta vez são caricaturas em fundo branco, uma estética da superfície em que a estranheza existe simplesmente por existir, sem interação com algum ambiente. O enredo é apagado pela completa aleatoriedade de eventos que se acavalam como esquetes televisivos; os personagens se trocam por borrões; o espaço é subjugado pelos excessos das fisionomias e do figurino; o prazer da ficção é atropelado pela amargura do discurso. Assistir a Palindromes é folhear o caderno de um aluno que se isola na quina da sala de aula e rumina seu ódio pelo resto da turma: desenhos, garranchos, desabafos, sentimentos constipados. Filme ainda mais desencantado, ainda mais desgostoso com o mundo do que os anteriores do diretor.

Ou talvez não seja desgosto, e sim um atestado de falência total. Diferente de Bem-vindo à Casa de Bonecas e Felicidade – que buscavam uma forma de representação crítica para um mundo visto sob um ângulo bastante particular (principalmente no primeiro, que faz uma imersão no isolamento gradual da pré-adolescente que o protagoniza) –, Palindromes não se quer analítico, não quer ter ponto de vista. Não é mais a vingança dos nerds, a crítica – em si mesma deprimente – a uma sujeira que os subúrbios americanos recalcam. Pelo contrário: Palindromes é um filme assumidamente frio e insensível, que convida o espectador a rir de defeitos (físicos, mentais, comportamentais) sem disfarçar que não está empenhado senão em reproduzi-los com a qualidade de um mimeógrafo vagabundo. Cinema moralista porque o cineasta, ele mesmo, se acha superior, não admite em momento algum fazer parte daquela sujeira ou lidar de forma tão patética com aquele conjunto de aberrações. Solondz não quer estar do lado de ninguém. O segredo do seu relativo sucesso é fazer passar por humor politicamente incorreto todo o moralismo de sua receita.

Histórias Proibidas já mostrava um olhar que se pressupunha auto-crítico para esconder sua auto-indulgência, e agora a inscrição de Solondz em seu próprio filme se dá de maneira ainda mais clara, porém completamente digna de pena. Palindromes é um filme profundamente resignado, um hino de desistência e indiferença que se compõe a partir de Aviva (nome que – assim como a estrutura do filme – lido de traz para frente se mantém o mesmo), a personagem-conceito interpretada por várias atrizes de diferentes tipos físicos e psicológicos. Criança disléxica, adolescente que se apaixona por um caminhoneiro que a despreza, negra obesa, menina anoréxica, menina com complexo de feiúra: o que as une é alguma forma de rejeição. O filme parte do princípio de que o destino é sempre igual para todos os freaks. Aviva, representada alternadamente por todos esses clichês, foge de casa após seus pais a terem forçado a abortar o filho que esperava de Judah, adolescente que vive rodeado de filmes-pornô e pôsteres de mulher pelada. Na parte mais significativa do filme, Aviva acha em meio à floresta uma comunidade gospel liderada pela hospitaleira Mama Sunshine. A comunidade rapidamente se mostra um palco privilegiado para o cinema de Solondz, em que o grotesco é o único modo de existência.

Na primeira seqüência do filme é lido o epitáfio de uma moça problemática que cometeu suicídio. O aborto, posteriormente, será imposto à criança que nasceria da comunhão entre dois adolescentes. É melhor prevenir do que remediar: que não nasça mais um suicida. Se o mundo não consegue acolher seus seres-problema, é preciso cortar o mal pela raiz, impedi-los de vir à luz. Mas sem esquecer de fraturar também o lar dos "corretos", a exemplo do médico que faz abortos e é assassinado pelo caminhoneiro. Na parte final, Aviva (naquele momento a cargo de Jennifer Jason Leigh) conversa com o primo que mal conhece, Mark Wiener, personagem secundário que volta ao filme para falar em nome do seu diretor (Solondz tenta pateticamente responder aos seus detratores). Ele é acusado de pedofilia e se defende dizendo que não pode ser pedófilo "porque os pedófilos amam as crianças". Para um cinema que não ama nem as crianças nem os adultos, o aborto e o suicídio se tornam gestos fundadores: Palindromes é o filme em que Todd Solondz diz o que ele realmente espera de seus personagens.


Luiz Carlos Oliveira Jr.