Palindromes
leva o cinema de Todd Solondz a uma estética
de achatamento cuja radicalização estava
mais ou menos prefigurada em Histórias Proibidas.
Por um lado retornam, ainda mais disformes, os elementos
que começavam a ser problematizados no filme
anterior: a inocência e seu abuso pela monstruosidade
(a proto-imagem de Palindromes é sem dúvida
a boneca catada no lixo, com uma garrafa cravada em
seu traseiro e o escrito "Fuck me" no peito),
a náusea ressentida de losers de todo
tipo, a daguerreotipia dos personagens, a grosseria
da encenação. Mas aqui com um detalhe
em nada irrelevante: a abolição do espaço
cênico. O que Solondz filma desta vez são
caricaturas em fundo branco, uma estética da
superfície em que a estranheza existe simplesmente
por existir, sem interação com algum ambiente.
O enredo é apagado pela completa aleatoriedade
de eventos que se acavalam como esquetes televisivos;
os personagens se trocam por borrões; o espaço
é subjugado pelos excessos das fisionomias e
do figurino; o prazer da ficção é
atropelado pela amargura do discurso. Assistir a Palindromes
é folhear o caderno de um aluno que se isola
na quina da sala de aula e rumina seu ódio pelo
resto da turma: desenhos, garranchos, desabafos, sentimentos
constipados. Filme ainda mais desencantado, ainda mais
desgostoso com o mundo do que os anteriores do diretor.
Ou talvez não seja desgosto, e sim um atestado
de falência total. Diferente de Bem-vindo à
Casa de Bonecas e Felicidade – que buscavam
uma forma de representação crítica
para um mundo visto sob um ângulo bastante particular
(principalmente no primeiro, que faz uma imersão
no isolamento gradual da pré-adolescente que
o protagoniza) –, Palindromes não se quer
analítico, não quer ter ponto de vista.
Não é mais a vingança dos nerds,
a crítica – em si mesma deprimente – a uma sujeira
que os subúrbios americanos recalcam. Pelo contrário:
Palindromes é um filme assumidamente frio
e insensível, que convida o espectador a rir
de defeitos (físicos, mentais, comportamentais)
sem disfarçar que não está empenhado
senão em reproduzi-los com a qualidade de um
mimeógrafo vagabundo. Cinema moralista porque
o cineasta, ele mesmo, se acha superior, não
admite em momento algum fazer parte daquela sujeira
ou lidar de forma tão patética com aquele
conjunto de aberrações. Solondz não
quer estar do lado de ninguém. O segredo do seu
relativo sucesso é fazer passar por humor politicamente
incorreto todo o moralismo de sua receita.
Histórias Proibidas já mostrava
um olhar que se pressupunha auto-crítico para
esconder sua auto-indulgência, e agora a inscrição
de Solondz em seu próprio filme se dá
de maneira ainda mais clara, porém completamente
digna de pena. Palindromes é um filme
profundamente resignado, um hino de desistência
e indiferença que se compõe a partir de
Aviva (nome que – assim como a estrutura do filme –
lido de traz para frente se mantém o mesmo),
a personagem-conceito interpretada por várias
atrizes de diferentes tipos físicos e psicológicos.
Criança disléxica, adolescente que se
apaixona por um caminhoneiro que a despreza, negra obesa,
menina anoréxica, menina com complexo de feiúra:
o que as une é alguma forma de rejeição.
O filme parte do princípio de que o destino é
sempre igual para todos os freaks. Aviva, representada
alternadamente por todos esses clichês, foge de
casa após seus pais a terem forçado a
abortar o filho que esperava de Judah, adolescente que
vive rodeado de filmes-pornô e pôsteres
de mulher pelada. Na parte mais significativa do filme,
Aviva acha em meio à floresta uma comunidade
gospel liderada pela hospitaleira Mama Sunshine. A comunidade
rapidamente se mostra um palco privilegiado para o cinema
de Solondz, em que o grotesco é o único
modo de existência.
Na primeira seqüência do filme é lido
o epitáfio de uma moça problemática
que cometeu suicídio. O aborto, posteriormente,
será imposto à criança que nasceria
da comunhão entre dois adolescentes. É
melhor prevenir do que remediar: que não nasça
mais um suicida. Se o mundo não consegue acolher
seus seres-problema, é preciso cortar o mal pela
raiz, impedi-los de vir à luz. Mas sem esquecer
de fraturar também o lar dos "corretos",
a exemplo do médico que faz abortos e é
assassinado pelo caminhoneiro. Na parte final, Aviva
(naquele momento a cargo de Jennifer Jason Leigh) conversa
com o primo que mal conhece, Mark Wiener, personagem
secundário que volta ao filme para falar em nome
do seu diretor (Solondz tenta pateticamente responder
aos seus detratores). Ele é acusado de pedofilia
e se defende dizendo que não pode ser pedófilo
"porque os pedófilos amam as crianças".
Para um cinema que não ama nem as crianças
nem os adultos, o aborto e o suicídio se tornam
gestos fundadores: Palindromes é o filme
em que Todd Solondz diz o que ele realmente espera de
seus personagens.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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