MORRO DA CONCEIÇÃO
Cristiana Grumbach, Brasil, 2005

A grande questão a respeito de Morro da Conceição é a sua construção de objeto. O filme é marcado por uma tensão absolutamente determinante entre dois traços, tensão essa expressada em dois critérios de montagem. O primeiro é a óbvia inclinação, expressada sobretudo no jogo de iluminação que inicia e encerra o filme e nas inserções de planos de ruas e praças da região título, de se fazer uma geografia. Ora, Morro da Conceição se diz, desde o título, um filme sobre o espaço ou sobre uma espacialidade conceitual. O Morro da Conceição, nos arredores da Praça Mauá, Centro do Rio, é um espaço simbólico em relação ao espaço. Sua existência é, de certa forma, um desafio ao Centro do Rio, já que destoa dele por ser uma área residencial colada ao centro nervos(íssim)o da cidade. O segundo é o fato de que o filme é, no final das contas, um recorte. Nas mãos de Cristiana Grumbach a região vira um espaço simbólico também em relação ao tempo. Em vez de fazer uma sociologia do local, ela resolveu fazer uma antropologia da longevidade: ela colhe depoimentos apenas de idosos. Ela seleciona apenas um tipo de morador do local que escolheu para sua geografia (por mais humana que esta seja). É nas mãos deles que fica a tarefa de construir o local narrativamente. Daí o bairro e suas ruas se tornarem uma área para se pensar "um Rio que não existe mais", quer ele tenha mudado fisicamente quer a visão dos entrevistados tenha mudado ela mesma (pela passagem do tempo ou pelas lentes da nostalgia, que invariavelmente cegam um narrador). As memórias dos moradores servem não apenas para se fazer uma crônica da Zona Portuária carioca, mas também para mostrar como o homem exercita o poder narrativo quando ao mesmo tempo tem (nas costas) e não tem (no horizonte) todo o tempo do mundo.

Daí ser inevitável uma comparação, por vários motivos: Morro da Conceição é um filme que se aproxima de O fim e o Princípio, de Eduardo Coutinho. Um dos motivos óbvios dessa comparação é o fato de Cristiana Grumbach trabalhar com Coutinho em todos os seus últimos filmes, inclusive em O Fim e o Princípio. Outro é o fato de que as filmagens do filme dela são anteriores às do de Coutinho, o que pode apontar uma certa influência de um sobre o outro. Mas o fato é que ambos falam sobre a finitude da vida e sobre os horizontes da memória observados em ilhas de eternidade. No filme de Coutinho, em uma comunidade no Nordeste; no de Cristiana Grumbach, em um bairro que parece deslocado da lógica de uma cidade grande e cosmopolita.

Os dois filmes são realmente muito próximos porque problematizam a relação entre memória e proximidade da morte a partir da produção de (ou do encontro com) ilhas de eternidade no meio do oceano de aceleração do mundo contemporâneo. Mas Morro da Conceição parte de uma opção de montagem: o filme escolhe apenas os personagens mais velhos e faz, com isso, um filme sobre a visão que um determinado tipo de morador tem de uma localidade. Seu recorte no mínimo limita o filme. Sobretudo na contradição dessa opção com a clara vontade de fazer a "geografia humana do local". Não é, segundo o próprio subtítulo ("Morro da Conceição. E do Seu Chapéu, e da Dona Nenê" etc), apenas um filme sobre o local, mas também sobre as pessoas.

Não é, entretanto, sobre todas as pessoas. É só sobre algumas, no sentido em que é apenas sobre uma de suas categorias de pessoas. Não é preciso dizer que a totalização possível a respeito do local vai por água abaixo com esse flerte com o emocional. Sim, porque a opção do filme é claramente por uma afetividade: ali não moram só velhinhos, mas os velhinhos são mais expressivos, mais memorialistas, mais nostálgicos, mais tocantes. O filme seria, então – descobrimos quando notamos que apenas eles, apenas os moradores mais antigos terão voz – sobre a busca de uma memória do lugar. A questão passa a ser o conteúdo intrínseco das falas deles: "o passado era melhor", "o carnaval acabou", "por que tudo tem mudar?", "a velhice é dolorida", "o importante é viver" etc. Isso, idosos de outros locais poderiam dizer, fossem do Grajaú, fossem da Cidade de Deus (estes últimos, claro, com os componentes de outra nostalgia, mas a questão, no final das contas, é existencial, não social).

Na comparação com O Fim e o Princípio, a produção da ilha de eternidade do filme, o espaço em que o tempo é gerido pela memória e por pouca perspectiva de futuro, Coutinho vai aonde a velhice é regra, com raras exceções: no interior do Nordeste, o jovem está indo embora e, por hierarquia, quem fala é quem está à frente da família. Os jovens que ficam, poucos, ficam velhos em sua própria lógica. A menina-guia destoa tanto dos entrevistados que virou guia, parte dos entrevistadores, uma tradutora de "idosês". Morro da Conceição, não, recorta os idosos da ambiência da região, que é coalhada de crianças e jovens.

Se é um filme sobre esses idosos, então, a opção pelo uso da livre fala fez ficarem apenas insinuados os elementos que fazem daqueles personagens singulares: mais do que refletirem o passado de uma região, eles têm um passado, ligado a uma das regiões que compuseram e ainda compõem, um certo submundo da cidade grande. O Morro da Conceição não é apenas um espaço idílico do Centro, é também um campo de referências da Zona Portuária, um correlato da Lapa mítica de Madama Satã (que é citado por um dos entrevistados, aliás). E é no passado desses personagens que está o filme, embora sua montagem não tenha encontrado a maneira de externalizar isso, que aparece insinuado em várias falas. "Eu tentei matar um homem", "Eu ia pro corso e me acabava", "Brigava, naquele tempo se dava de navalha", "Conheci o Madame Satã", "Os homens passavam a mão na gente no baile".

Ora, a velhice costuma produzir um passado mais doce, um passado mítico em que tudo se perdoa, tudo vira "a vida". Idosos, os personagens ainda são pessoas cheias de contradições e cuja juventude foi expressivamente rica, mas a dimensão emocional de sua idade, a suposta sabedoria que vem com a velhice doma a câmera e o final cut. Não estou dizendo, com isso, que o filme deveria ter forçado os idosos a "deixar cair máscaras" e nem estou propondo o meu filme no lugar do de Cristiana Grumbach. Quero dizer, em vez disso, que o material traz esse conteúdo intrinsecamente e era a chave para fazer o filme escapar de uma certa tendência afetiva do documentarismo que acaba por prejudicar o que há de documental mesmo nos filmes.

Ora, era mais ou menos claro, antes de filmar, que ali, não se estaria diante de idosos quaisquer. É como se fazer um filme em Vila Aliança. É claro que vários dos personagens terão passados ligados à criminalidade. Se não se pode pré-estabelecer o documentário, também não se pode ignorar esse conhecimento prévio. O mito da generosidade absoluta do documentarista, da fuga da semiologia imposta pelo diretor, levado ao limite, ou produz uma certa inocência no diretor mesmo ou pressupõe a mesma inocência no espectador. Claro, a comparação com a Vila Aliança é apenas por contigüidade conceitual. Não é de banditismo que se fala em Morro da Conceição, mas é igualmente de uma relação com a moralidade e com a história.

E o fato de Cristiana Grumbach ser jovem ainda traz uma vantagem a seu filme: ela é jovem. Ser jovem é estar (estatisticamente) longe da morte e ter a possibilidade de desafiá-la, rir dela. Ela é diferente de Coutinho diante dos idosos no Nordeste. Ele pergunta se eles têm medo da morte e recebe de volta: "E o senhor, não tem?". Não se trata de respeitar ou não os entrevistados, mas é claro que 94 anos de vida trazem mais, muito mais do que a experiência de rezadeira e ter visto o jornal A Noite ser invadido! Há pessoas que nasceram na primeira década do século passado. É gente que viu a cidade ser transformada a ferro e a fogo e que teve posições políticas em relação a cada ferro e a cada fogo que modificou a cidade. Os ecos do passado, entretanto, preferem ser doces.

Como arqueologia de almas, entretanto, o filme aponta para uma bela contradição poderosa: essa dimensão todo-idoso-é-igual que pulsa em cada entrevista contrasta com a vontade de singularidade que cada um manifesta. Nesse sentido, a opção de câmera de Jacques Cheuiche que a realizadora utilizou é determinante. Não pelas claques geográficas, mas pela relação com o olhar. A câmera sempre procura a permanência do olhar, sempre procura dar a chance de cada um ser apenas um. E esse é o grande mérito do filme, sua vontade de humanização, sem falseamento.


Alexandre Werneck