UMA MULHER COREANA
Im Sang-Soo, Baramnan gajok, Coréia do Sul, 2003

A arte e o mundo (traços de um desconhecido)

O cinema, na maioria das vezes, não é tratado como elemento na cadeia da história da arte, não é muito conectado com as questões que movem os que trabalham mais com o campo plástico e de representatividade imagética. No entanto, apesar de extremamente multifacetada e maleável, a forma cinematográfica está sim ligada às formas de expressão humana que a precederam. E sua conexão complicada com a técnica e a ciência não a afasta disso, muito pelo contrário, a faz mergulhar irremediavelmente na história de precedentes arqueológicos insuspeitos, para os quais a arte era um ofício de investigação do mundo, por um lado, e utilitário, por outro. Tendo isso em mente, torna-se no mínimo curiosa a abordagem mais corrente da cultura fílmica mundial. A divisão entre cinema comercial e cinema de arte, entre cinema ficcional e cinema documentário, entre cinema e vídeo, entre cinema desenvolvido e cinema subdesenvolvido, entre cinema ocidental e cinema oriental. Costumamos atribuir características expressivas a cada uma destas "classificações" e nos relacionarmos com os filmes de acordo com a roupagem que parece mais lhes convir. Mas talvez deixemos, com isso, de enxergar outros tipos de conexões entre eles e o mundo do qual derivam... E a consciência do caráter de representatividade que o filme carrega também parece ser extremamente pré-direcionada e não suficientemente alargada, em todas as suas implicações – significantes, circunstanciais, relativas à natureza do meio e ao contato com um público específico.

Os cinemas dos países asiáticos, apresentados com vigor ao mundo ocidental em festivais, na janelinha que abrem para culturas um tanto desconhecidas da nossa educação eurocêntrica, freqüentemente causam-nos algo entre fascínio e incompreensão, entre adesão e distanciamento. Reverenciados como "belos" e "sensíveis", categorias privilegiadas no nosso entendimento de objeto artístico, eles raramente conseguem se livrar satisfatoriamente da sombra da curiosidade antropológica, da atração pelo exotismo e de serem pesadamente referendados a um entendimento prévio do uso do meio cinematográfico. E como as relações interculturais são um terreno minado e perigoso, em suas economias de trocas e influências, buscar entender como objetos oriundos de culturas desconhecidas, que constituem em certa medida artigos transnacionais, constroem seus processos de significação e representação e sua relação com o mundo é entrar num labirinto arriscado, sem respostas garantidas, mas com a possibilidade de criar mosaicos fascinantes. Especialmente se derrubarmos a compartimentalização do nosso olhar, que enquadra o mundo e o cinema e prescreve nossas relações com eles. Dito isto, a aventura de percorrer de forma investigativa e lúdica o que já se conhece e o que ainda não se conhece ganha novos contornos, talvez mais estimulantes.

Dos filmes orientais que chegam até nós, os coreanos são uma novidade mais recente e à primeira vista apresentam particularidades marcantes, especialmente no tocante às questões de representação. Um traço bastante recorrente é uma certa abstração narrativa em favor de simbolismos estilizados, desenhados quase grosseiramente, nos quais os personagens são peças funcionais retratadas com extremo realismo. Disto resulta um naturalismo um tanto cru, quem sabe menos relacionado com o nosso ilusionismo cinematográfico e mais afeito a estruturas arquetípicas que entoam narrativas ilustrativas sobre os homens, para os homens. A naturalidade e espontaneidade do sexo e da violência, assim como de gestos cotidianos simples, tampouco ecoa expedientes do neo-realismo ou de outros cinemas modernos que conhecemos.

Assistindo a um filme como Uma mulher coreana, de Im Sang-Soo, essas características se evidenciam. Como um ritual de representação do cotidiano, observamos o desfile de diversas atividades corriqueiras dos personagens. Não há um trabalho de identificação público-personagem nem um aprofundamento psicológico. Não há nem mesmo dramatização narrativa. O que o curso do filme parece querer provocar são efeitos. Efeitos oriundos da exposição àquelas imagens. Daí a "ilustração" ser o caráter predominante. A um limite, todos os feitos parecem estar simbolizando sensações e sentimentos, quando não apenas reproduzindo-os. Vemos o relacionamento de Sooin, filho adotivo, com seus pais, vemos o flerte de sua mãe, Ho-jeong, com o vizinho jovem e o caso de seu pai, Young-jak, com a fotógrafa. Vemos diversas cenas de sexo, algumas mais satisfatórias do que outras, vemos Sooin questionar a mãe sobre ela ter-lhe revelado sua condição de adotado, assim como sua relação muito próxima e afetuosa. E, em meio a coisas como escovar os dentes, tomar banho, dançar, andar de bicicleta, trabalhar, gozar e se irritar, temos a morte. O corpo com dias contados do pai de Young-jak, os esqueletos dos que sofreram torturados com a ditadura. E, também, o ponto culminante deste "tracejo" de pessoas, desejos e pulsões, encharcados de um batimento cardíaco que parece soar como um metrônomo surdo, temos a cena do "assassinato" de Sooin.

De um realismo quase absurdo, o grande choque que o acontecimento traz é majoritariamente por sua falta de encaminhamento prévio e por se dar de forma tão súbita quanto violenta. Acompanhamos ao som de uma música de compasso animado, aquele estranho bêbado subir um prédio inacabado, carregando o menino – descontraído, chupando um pirulito – como uma trouxa. Ao chegar no topo, Sooin pergunta: "o senhor não vai me jogar, né?!". E mal terminada a frase, o vemos sendo atirado prédio abaixo. Ficamos com o homem que chora e grita desesperadamente no lado esquerdo do quadro, enquanto um tilt revela o corpo ensangüentado da criança lá embaixo. Havíamos presenciado sua encantadora espontaneidade infantil e sua envolvente relação carinhosa com a mãe... Mas não há drama; e a estupefação é tanta que quase não acreditamos que o filme irá reconhecer tal fato. Um pouco como se ele pudesse eliminar, cuspir fora, estes planos, como quem sacode a cabeça para espantar um devaneio indesejado. Mas, em seguida, vemos Ho-jeong no hospital indo ver o corpo do filho. E, ao levantar o lençol que o cobre, sua reação imediata é vomitar. Como talvez qualquer um de nós fizesse. Mas como dificilmente vemos tal situação representada. Pois que além de ser representativa, esta é uma imagem visceral. E, por outro lado, além de existir narrativamente, ela constitui uma abstração.

Abstrata como uma caricatura, que isola e exalta traços proeminentes e na qual o importante é reconhecer e, não, entender; e visceral com a intensidade de comportamentos humanos movidos a funções orgânicas, que se manifestam sem pedir licença, no dia-a-dia de todos. Combinação inusitada, esta forma parece pedir do espectador um outro tipo de interação – talvez o motor maior do fascínio que ela nos provoca –, um emparelhar-se com o que acontece (e não um identificar-se, pois não somos chamados a nos colocar no lugar dos personagens e, sim, ecoar o que eles fazem e sentem). Reconhecer traços de existência comuns e se entreter, sentir prazer, com este espelhamento "indireto". O filme ganha um papel quase ritualístico neste sentido: ele parece integrar a vivência diária de quem com ele se relaciona constantemente. No entanto, não com uma função catártica ou escapista e, sim, como uma ilustração, reconhecida e admirada como tal. Ilustração do que nos move: impulsos, desejos, medos, vergonhas, atitudes, gestos, fluidos e palavras – vida; e sua outra metade, a morte.

Uma mulher coreana não é um "filme de costumes", como talvez se esperasse de um título como este, um "bom retrato" da Coréia, no qual se possa "conhecer" os hábitos e características distintivas dos habitantes do país – o que talvez tenha sido o grande apelo do "cinema iraniano", ao despertar uma febre de adoração, quem sabe apenas porque continha em suas imagens um povo do qual não tínhamos imagens. Diferentemente, Im Sang-Soo e outros cineastas coreanos parecem nos informar muito mais sobre uma arte coreana. Uma forma coreana de se relacionar com o mundo e com a representação deste, na qual podemos até nos arriscar de vislumbrar a resposta dos destinatários desta representação. O público, que lá vive e consome cinema entre outros produtos culturais. E buscar formas de contato, de intimidade com esta expressividade (para que um afeto seja possível) e, por fim, de aproximação com o mundo que a envolve.


Tatiana Monassa