PARALELAS E TRANSVERSAIS
Geminis, de Albertina Carri
Orlando Vargas, de Juan Pittaluga


Geminis, Argentina/França, 2005
Orlando Vargas, Uruguai/França, 2005


E eis que o cinema latino-americano descobriu seu nicho nos festivais internacionais, para além dos exotismos mais explorados, num processo que tem seu ápice com o reconhecimento (merecido) de Lucrecia Martel no circuito dos principais eventos de cinema do mundo. Só que, como todo fenômeno do tipo, este logo cria seus entes “parasitários”, que arrancam o que podem do momento, sem de fato oferecer nada em troca. Geminis e Orlando Vargas, não por acaso ambos exibidos no último Festival de Cannes (o primeiro na Quinzena dos Realizadores, o segundo na Semana da Crítica), são exemplos do fenômeno acima notado.

O primeiro, em especial, até pela nacionalidade argentina (claro, em co-produção européia, como manda o figurino atual) e por ser dirigido por uma jovem diretora, é o que mais diretamente remete ao exemplo de Martel. Mas, não somente pelas coincidências geográficas ou de faixa etária e sexo da diretora: assim como os filmes de Martel, Geminis deseja jogar um olhar sobre a sua realidade a partir das relações familiares e, essencialmente, dos impulsos sexuais e seus desvios, especialmente os da juventude. Podia-se falar em influência, mas o caso aqui é de traição mesmo: porque tudo que Albertina Carri faz aqui é o oposto do que Martel faz nos seus filmes. Patologiza os personagens em suas “taras” (onde a mãe é o exemplo maior), torna o seio familiar corrompido em espaço da tragédia, e acima de tudo, dá “legendagem” social ao seu discurso, com um filme que ousa terminar com um diálogo que acusa o “país de merda!”. Com isso, apenas deixa claro aquilo que sua câmera não escondia em nenhum momento: filma tudo de longe, com asco – ou seja, como dissemos, o oposto de Martel.

Aliás, a filmagem de Carri é onde ela mais se entrega no seu verdadeiro objetivo: o de ser reconhecida como uma “artista”. Auto-importante, cheia de micromovimentos inúteis para além do embelezamento frio, abusando dos cromatismos mais rasteiros, cada plano de Geminis pesa uma tonelada. E sinaliza, para quem duvidasse ainda, a dificuldade e o talento das empreitadas que Martel empreende, com sua câmera tão estudada e ao mesmo tempo tão orgânica. O filme de Carri nos mostra como seria fácil perder a mão neste desafio, onde o mecanicismo e a pré-concepção sobre o que se mostra na tela não possui qualquer contraponto de vida, de tensão. Assim, em minutos, os seres humanos na tela viram insetos a serem estudados, dissecados, pisados.

É no estilo que peca também Orlando Vargas, do uruguaio Juan Pittaluga (e adivinhou quem apostou numa co-produção européia), ainda que de forma bem distinta. Seu filme, se não causa o asco do filme argentino, acaba caindo na outra armadilha do “cinema de arte versão século 21”: o completo desinteresse. Pegando uma página direto do manual do filme de arte, o desejo de Pittaluga é o do esgarçamento narrativo à beira da inexistência da trama. Página esta que hoje é dominada como ninguém por Gus Van Sant, mas que é tão difícil de copiar quanto a de Martel. Porque se os personagens não oferecem informações ou explicações sobre seus atos, se a narrativa não deseja evoluir e sim dar voltas em torno do próprio rabo, se se deseja investir num clima de mistério e confusão, o que Pittaluga parece ignorar é que de algum lugar ele deve arrancar a adesão do espectador. E aí, o que em Van Sant é um hipnótico transe audiovisual, aqui em Orlando Vargas é um sonífero de doses avançadas. É quando a sua convicção de investir na não-informação vira pura teimosia: um jogo de “eu não vou te dizer nada”, onde no final o espectador só pode responder “eu não estou nem aí”. Tudo isso engarrafado numa assepsia visual extrema, num estilo de atuação zumbi, gerando um resultado onde o pouco som e fúria significam nada. Tipo de afetação diferente, mas ainda assim afetação e nada mais.

É verdade que, enquanto surfam a onda do momento, não se pode negar que Orlando Vargas e Geminis cumprem o seu intento: arranjam vagas em Cannes, passam em festivais mundo afora, acham seu nicho de micro-mercado. Parabéns para eles, claro – mas o tempo não promete ser muito clemente com o seu interesse para além da própria satisfação momentânea: o cinema não ganha muito com eles.

Eduardo Valente