EU, VOCÊ E TODOS NÓS
Miranda July, Me and You and Everyone We Know, EUA, 2005

A força do carinho

Não são poucas as armadilhas das quais foge a estreante Miranda July no seu premiado filme, ganhador da Câmera de Ouro em Cannes, Um verdadeiro aglomerado de alguns dos piores vícios do cinema contemporâneo, especialmente do cinema independente americano, parecem rondar a todo tempo sua narrativa: o filme-painel, a história de personagens que se cruzam, as falas "inteligentes" na boca de seus personagens todos, os conflitos geracionais, e até mesmo a "pós-modernice" temática (comunicação pela internet e arte contemporânea e digital surgem como alguns dos ambientes explorados pelo filme). Sejamos sinceros: tinha tudo para dar errado. No entanto, dá certo, e cada vez mais certo a cada cena, num crescendo impressionante – e o motivo é bem simples: July filma personagens que realmente a interessam, e que ganham vida própria para além de todas as já citadas armadilhas.

Podemos escolher uma cena como a mais exemplar: a do encontro de dois personagens num banco de praça (não convém dizer quais, sob risco da leitura por alguém que ainda não viu o filme). Nela, se concentram todas as possibilidades de July errar na mão: a junção de linhas narrativas que até então não se cruzavam, o fechamento da trama que se referia à comunicação por internet através de um equívoco de identidade, e um encontro que se presta facilmente a um olhar que deseje ridicularizá-lo. No entanto, a cineasta resolve a cena como faz em todos os outros casos: da maneira mais compreensiva sobre o quanto ainda há de possibilidades do encontro entre seres humanos, para além de todas as distâncias possíveis (de idade, classe social, gêneros, o que for).

O beijo que fecha esta cena, com a canção em fade in progressivo revela ainda algo mais sobre July: sua falta de vergonha de levar até o fim o seu verdadeiro romantismo. Seu filme poderia, inclusive, facilmente ser chamado de ingênuo ou exagerado, mas ela não foge desta possibilidade nem por um momento. Chamar seu filme de "exagerado" equivale a chamar a música de um Nick Drake ou de um Leonard Cohen de "exageradas" na sua entrega: é não perceber o domínio plenamente auto-consciente das teclas que se deseja pressionar, das cordas que se quer tocar. E July não se exime de tocar nenhuma delas.

A metáfora musical pode ser útil ainda para desconsiderar uma "sombra" que acompanhava o filme de July: a de ser um Todd Solondz de saias. Compará-la ao colega um pouco mais velho é como dizer que Jimi Hendrix e Yngwie Malmsteen seriam semelhantes porque tocavam a mesma marca de guitarra. Pois que sejam cineastas independentes americanos que enfocam a vida nos subúrbios urbanos a partir de personagens pouco usuais ou "glamurosos" faz deles tão semelhantes quanto o guitarrista americano visceral e o presepeiro sueco. Especialmente no mesmo ano em que Solondz nos apresenta o que talvez seja seu filme mais deplorável, sob todos os aspectos, soa a compreensão muito rasa sequer mencionar os dois cineastas na mesma frase. July não merece ser conhecida nem como a anti-Solondz, porque com um filme já se mostra muito mais importante do que ele. Que Solondz seja, então, o anti-July.

Dizer mais do filme de July seria ressaltar o trabalho comovente de seus atores, todos revelações completas (talvez nenhum mais do que o sósia de Vincent Gallo, John Hawkes), elogiar as construções dramáticas absolutamente envolventes (onde as cenas de conversa pelo computador são especialmente pungentes e bem resolvidas) ou ficar citando cenas de extrema precisão de encenação (todas as tentativas de contato entre o pai e seus dois filhos, a conversa do garoto e da garota deitados no chão do quarto, a cena do duplo boquete) ou de escritura fina de diálogos que nunca soam forçados, pelo menos nåo mais do que eram forçados os diálogos sempre brilhantes de um Billy Wilder (para quem achar a comparação exagerada, basta pegar o timing da cena entre as duas jovens e o homem gordo na porta da casa deste).

Fiquemos, porém, apenas com três delas: o já citado encontro no banco, o trajeto do peixinho dourado pelos tetos dos carros e a caminhada do casal principal do filme da loja de sapatos até seus carros. Nestas três cenas há mais cinema e mais sentimento do que em boa parte do que se produz em arte hoje no mundo.


Eduardo Valente